Katie deixou o diário de lado e levantou-se. Os joelhos enrijeceram e o pescoço doeu pelo tempo de leitura curvada. Olhou para a varanda e já era noite. Girou lentamente a cabeça e alongou os músculos do pescoço enquanto pensava no que acabara de ler: a chegada de Mia ao Nyang Palace; as estranhas observações de Jez na escada no escuro; o rosto de Mia açoitado pela chuva enquanto Noah era engolfado e ferido pelas ondas; a pontada de medo que queimou Mia quando se sentou na traseira da viatura policial. Só depois de ler sobre o suborno que Mia teria que pagar para Jez é que entendeu por que a irmã telefonara para lhe pedir dinheiro. Ruborizou envergonhada pela última conversa que tiveram.
Também havia lido sobre as visitas de Mia aos penhascos, memorizando os detalhes da parte inferior do caminho que levava ao mirante, e sobre o trabalho duro da irmã para atravessar o matagal que levava ao topo.
Ela tirou da bolsa o mapa que recebera de Richard Hastings e o enfiou no bolso do vestido. Apertou os dedos na dobra do papel que farfalhou. Vou lá, Mia. Logo, logo. Prometo a você.
Soou uma batida na porta. Ela atravessou o piso de madeira encerado, abriu a porta e a sua frente Finn segurava uma bandeja, com uma refeição e uma garrafa de vinho tinto.
– Achei que você estava com fome.
O aroma do arroz fumegante e das especiarias frescas entrou quarto adentro.
– Estou morrendo de fome. – Ela abriu espaço na penteadeira e ele colocou a bandeja ali.
O vinho gorgolejou ao ser servido. Ele estendeu um copo para ela.
– E como vai indo o diário?
– Mal consigo parar de ler.
– O que Mia disse de Bali?
– Disse que era um lugar bonito. E que adorava as praias, as pessoas e a comida.
– Ela sempre quis ir à Indonésia.
Queria isso? Eram tantas coisas que não sabia da irmã. Tantas coisas que nunca saberia.
– Noah ficou feliz ao vê-la?
– Surpreso, acho eu. E a princípio, talvez preocupado por estar sendo seguido. Mas também ficou feliz.
– Ela parecia feliz?
Katie pensou por um momento. Feixes claros de felicidade com o brilho e a intensidade do sol, como na descrição da tarde que Mia e Noah sentaram-se à sombra de uma palmeira e saborearam mangas maduras, cujo sumo doce escorria pelo queixo de ambos. Mas uma mudança significativa nas páginas seguintes ao acidente de Noah no mar, onde os pensamentos dela espelhavam a visão sombria dele. Inúmeros relatos ofuscados pela ansiedade em torno do relacionamento entre ambos. Mas não era isso o amor: a intensa exaltação da presença do ser amado seguida pela cruel depressão da dúvida?
– É difícil responder isso antes de ler tudo.
– Em que parte está? – perguntou Finn.
– Apenas a uma semana do...
Ele balançou a cabeça e deixou transparecer inquietude nos olhos, mas girou o corpo e colocou os pratos.
– Pedi goreng nasi. Tudo bem para você?
– Perfeito.
– Acabaram se esquecendo de colocar os talheres – ele acrescentou enquanto levantava um guardanapo. – Pegarei alguns.
Já com a porta fechada, Katie caminhou até a cama e puxou o diário para o colo de novo. Folheou as páginas. Ainda havia um bocado de páginas a serem lidas. Depois de um gole de vinho não se conteve e se pôs a ler.
Fiz algo terrível. Estava desesperada; não havia outra escolha. Não podia pedir dinheiro para Katie porque haveria muitas perguntas – por isso mandei um e-mail para Finn. Pedi dinheiro emprestado a ele. Disse que compraria a passagem e me juntaria a ele para resolver as coisas. Jesus, eu realmente quero resolver essa merda de situação. Odeio estarmos separados. Parece que falta uma parte minha. E há tantas coisas que preciso explicar.
Se ele mandar o dinheiro, terei o passaporte de volta. E depois espero, ESPERO que ainda reste algum para a passagem que me levará a ele.
Katie fechou os olhos. Ah, Mia. Como pôde? Depois de tudo que já o tinha feito passar, ainda pediu isso para ele. E quanto a mim? De um jeito ou de outro, parece que você tinha que procurá-lo primeiro. O que aconteceu: Finn disse não e por isso você telefonou para mim? Sua segunda escolha?
Ela pulou da cama quando Finn entrou com dois conjuntos de talheres nas mãos.
– Um garçom estava passando pelo corredor com os talheres. – Ele se dirigiu à penteadeira e pegou um prato. – Vou servir antes que esfrie.
Ela se perguntou por que ele não tinha dito que Mia lhe mandara um e-mail pedindo dinheiro. Talvez pela vergonha por ter recusado.
– Pegue – ele disse, estendendo o prato.
Ela pegou o prato e o colchão oscilou quando ele sentou-se ao lado com o prato no joelho. Esperou que ele desse uma garfada de arroz e legumes e disse:
– Finn?
Ele ergueu os olhos.
– Mia se comunicou com você quando estava em Bali? Pediu dinheiro emprestado a você?
Ele parou de mastigar e depois engoliu.
– Sim, ela fez isso.
– E você emprestou o dinheiro?
Ele deixou o garfo de lado, com uma cara séria.
– Ela disse que o dinheiro era para uma passagem de avião. Queria se encontrar comigo para resolver as coisas. Por isso eu mesmo providenciei a passagem.
– Oh, Finn! – Mesmo depois de tudo que Mia tinha feito, ele ainda teve a generosidade de dar uma segunda chance a ela. – Foi muita generosidade sua.
Ele esfregou a testa de um lado a outro.
– Esse é o problema, Katie – disse em tom monocórdio e assustador. – Não foi tanta generosidade assim.
O calor tornou-se abrasador no quarto. Ele saiu andando com a camiseta colada às costas e abriu as portas da varanda. A brisa quente da noite levantou a beirada das cortinas. Respirou profundamente para abrir os pulmões e sentir o gosto do mar.
– Finn?
Ele girou o corpo lentamente. Katie estava sentada de pés unidos na beira da cama. O prato estava de lado, e ela o olhava de olhos arregalados e atentos. Ele passou a palma da mão na testa de novo, sem saber por onde começar. Precisava ser honesto. Ela estava com o diário nas mãos e de qualquer maneira acabaria descobrindo.
– Recebi um e-mail de Mia – disse Finn. – Era óbvio que a estada em Bali não tinha sido lá essas coisas, e por isso ela queria voltar. Mas não me importei; só queria vê-la. Que patético; queria muito vê-la – acrescentou, balançando a cabeça. – Fiquei com medo que ela mudasse de ideia e, em vez de mandar o dinheiro para a passagem, eu mesmo reservei e marquei o voo.
– Mas ela nunca entrou nesse avião – disse Katie.
– Esperei no aeroporto durante seis horas. O voo atrasou.
Ele se lembrou de ter lido um jornal australiano de capa a capa, passando pelas notícias do críquete e pela descoberta de um novo sítio arqueológico australiano, com inscrições rupestres de 15 mil anos antes. Era preciso espairecer de algum jeito, apagar a insidiosa dúvida de que ela não chegaria. Até que o voo atrasado chegou e ele passou os olhos pelos exaustos passageiros no desembarque, mas ela não estava entre eles.
– Chequei os dados dela com o pessoal do aeroporto. E me disseram que ela não tinha embarcado naquele voo. Só podia ter havido um engano com a passagem. Fui até uma das cabines de internet do aeroporto para ver se ela havia se comunicado. Apenas uma mensagem. Apenas uma frase. Foi tudo que ela se deu ao trabalho de escrever. “Finn, ainda não posso voltar. Desculpe.”
Ele balançou a cabeça.
– Ela me usou, Katie.
– Ela não podia viajar. Jez estava com o passaporte dela.
– Jez? O irmão do Noah?
Katie balançou a cabeça.
– Por quê?
– Um incidente com a polícia daqui. Acabei de ler a respeito. Foi pega com maconha. Jez subornou os policiais para que a libertassem.
– Merda. – Ele passou a junta do dedo de lado a lado no queixo.
– Foi muito dinheiro. Jez só devolveria o passaporte depois que recebesse o dinheiro de volta.
– Foi por isso que ela precisava de tanta grana?
– Sim, mas ela também queria se encontrar com você. Ela escreveu isso. Esperava que sobrasse dinheiro para um voo.
O sangue drenou do rosto de Finn.
– Meu Deus, isso piora tudo.
– Piora?
– Fiquei furioso quando soube que ela não viria. Enviei um e-mail de volta. Eu devia ter esperado. Devia ter esfriado a cabeça. – Ele lembrou que bateu os dedos nas teclas como uma tempestade prestes a desabar.
– O que você disse?
– Mia ficou completamente fora de órbita quando descobriu que Harley era o pai dela.
– Eu sei – disse Katie. – Ela ficou com medo de ser igual a ele.
Finn a olhou fixamente.
– E com medo de que acabasse como ele. Tentei tranquilizá-la, dizendo que ela não era ele e que não tinha nada a ver com ele. Mas as características de Harley descritas por Mick a tinham convencido de que ela era igual ao pai.
– Por que está me dizendo isso?
– Escrevi no meu e-mail... – Ele hesitou, com os dentes trincados e uma forte pulsação na cabeça. A nódoa sombria e farpada que estava enterrada no peito arrastou-se pela garganta acima. – Escrevi, se não tomar cuidado, Mia, pode acabar sozinha, suplicando para saber o que aconteceu com todos que estavam ligados a você. Assim como seu pai.
Finn fechou os punhos como duas pedras.
– E dois dias depois ela está morta! Ela está morta! Suicídio. Foi o que disseram. E eu com aquelas malditas e obsessivas palavras na cabeça: assim como seu pai. – Apertou os punhos contra a parede e os antebraços retesaram. – Não pude dizer para ela que sentia muito por ter dito aquilo.
– Foi você?
Ele deixou as mãos caírem e olhou em volta.
– Foi você – ela repetiu. – Foi você que enviou a orquídea da lua para o funeral de Mia?
– O quê?
– Uma orquídea que enviaram para o funeral.
Ele olhou sem entender.
– Com um cartão junto. Um cartão que só dizia “desculpe”.
Ele balançou a cabeça.
– Não. Mas sinto muito. Porra, você não imagina como estou arrependido de tudo! Eu não devia ter deixado que ela fosse sozinha para Bali. Eu devia ter dito a você onde ela estava. E o dinheiro de que ela precisava... Eu devia ter dado a ela. Eu não devia ter comprado a porra daquela passagem de avião! – Ele apertou a cabeça entre as mãos. – Aquilo que eu escrevi... Deus, que insensível... Odeio só de pensar que ela acreditou... ou que estava pensando naquelas palavras quando...
– Pare! Não se atreva a dizer isso!
Finn abaixou a cabeça. Carregava essa culpa por meses a fio, e isso se tornara bem maior que ele.
– Katie – ele disse, agora em tom calmo. – Preciso saber como Mia se sentiu quando leu o meu e-mail.
Ele atravessou o quarto e pegou o diário na mesa de cabeceira. O tecido azul-marinho brilhou debaixo dos dedos dele. Lembrou-se de como ela o escrevia: o diário equilibrado nos joelhos enquanto percorriam a Califórnia; esparramados no chão da barraca enquanto ela escrevia à luz da lanterna; tempestades de areia pingando da lombada depois que ela escrevia na praia, apoiada no cotovelo.
– Isso deve estar aqui – ele disse, estendendo o diário. – Por favor, Katie, eu preciso saber o que ela escreveu.