Mia caminhou trôpega ao longo da beira da praia, a vodca ainda circulava no organismo. Lamentou-se por não ter carregado a garrafa para beber até apagar. A tristeza profunda que brotara durante semanas arrebentou no peito.
Ela arrastou os pés na areia molhada, pensando na noite em que tinha sido tirada da água em Maui por Noah. Fez de tudo para resgatá-la porque não tinha feito o mesmo para salvar o irmão. Ele sentia uma culpa tão sombria e cavernosa quanto a dela.
Jez e Noah tinham trocado socos.
Ela e Katie, palavras.
Na cabeça de Mia ainda ecoava a voz de alguém que estava no grupo que assistia à luta e que comentou: “Mas vocês não são irmãos?” Como se isso fizesse diferença no ódio entre irmãos.
Já estava esgotada por tudo que tinha acontecido. Saiu da praia e fez o caminho de volta ao albergue. Chegou ao quarto e a porta estava entreaberta. Alguém tinha entrado lá. Escancarou a porta com cautela e entrou silenciosamente no quarto.
O mosquiteiro dependurado fazia uma sombra fantasmagórica sobre a cama e o abajur de vime ao lado estava aceso. Será que o tinha deixado aceso? Zanzou pelo quarto atentamente e examinando-o minuciosamente: a mochila ainda estava lá, mas havia alguma coisa diferente.
De repente, um estalo na cabeça: o diário de viagem. Jazia na mesinha de bambu onde o deixara aberto. E agora estava com a caneta em cima e a tampa retirada. Aproximou-se e só então notou alguns rabiscos – não dela – na página anteriormente em branco. Palavras sem capricho, mas precisas. Apenas rabiscos toscos e oblíquos.
Curvou-se para mais perto e observou a mancha escura na parte inferior da página.
Sangue.
Precisou de alguns segundos para digerir as palavras que logo dispararam e a desequilibraram. Agarrou-se à mesa para se manter de pé. O pânico explodiu no peito e uma flor ardente brotou pela garganta acima.
– Por favor, Deus – murmurou. – Por favor, não.
Mia rasgou a página do diário abruptamente. Apoiou-a contra o peito e, de pés descalços, saiu correndo do quarto pela noite adentro.
Enfiou a página rasgada no bolso traseiro do short para liberar as mãos enquanto subia ao longo do caminho em direção ao penhasco. As solas dos pés já estavam machucadas pelas pedras e as raízes pontiagudas do caminho, mas continuou correndo porque cada segundo era importante.
– Ei! Você está bem?
Ela girou assustada.
Era um casal que a observava do mirante a alguns metros de distância do caminho.
Já estava sem fôlego e o rosto queimava. E então viu a si mesma como uma mulher solitária que corria descalça pela noite.
O homem aproximou-se e perguntou.
– Precisa de ajuda?
– Não – respondeu Mia, abaixando a cabeça e desaparecendo apressada em meio à folhagem densa que cobria o percurso superior do penhasco. Abriu caminho por entre galhos retorcidos que arranhavam seus braços e pernas.
Somente alguns minutos depois é que descortinou o luar esparramado por entre uma lacuna nas árvores. Foi quando se deu conta de que estava quase chegando. Escalou a inclinação final encharcada de suor e chegou ao topo.
Noah estava em pé, próximo à borda do penhasco, como uma sentinela do mar, os ombros largos abertos e as costas eretas. Ela encontrara o bilhete escrito às pressas em uma das páginas do diário aberto. Algumas palavras esparsas de desespero, e abaixo uma nódoa de sangue borrava a página como um presságio. De Noah? De Jez?
– Noah – disse Mia em tom calmo, anunciando-se.
Ele girou levemente a cabeça.
– Não faça isso. – Ela pensou no próprio pai, o jovem de olhar intenso na foto da banda. E se alguém o tivesse encontrado a tempo... um vizinho, um senhorio cobrando o aluguel, com uma palavra gentil na hora certa que pudesse mudar tudo?
Quantos milhares de pessoas consideram um momento igual a esse? Uma borda de penhasco? Uma corda no teto? O telhado de um prédio alto? Uma arma carregada? Gente desesperada querendo deter o desespero, um fluxo que amarga a boca e os ouvidos de desesperança. Mia considerava. Fez um quadro de um ponto requintado no vazio onde eram detidas a pressa da culpa e a velocidade da dor. Morto. Ela deu um passo à frente...
– Não!
Congelou. Agora, estava a três metros de Noah, tão perto que avistou uma flor de sangue florescendo no ferimento da camiseta escura.
– Sai daqui – ele ordenou, sem se virar.
Ela entendia aquela culpa, sempre entendera aquela culpa. Era o que os ligava. Afastara-se das pessoas que amava – da cabeceira da mãe, da vida em comum com Katie e com Finn – porque afastar-se era mais fácil que permanecer. As pessoas com quem se importava poderiam enxergar o medo nos olhos dela. Mas não se afastaria de Noah.
– Não vou sair daqui.
– Não quero você aqui.
– Por que foi à praia hoje à noite? – ela perguntou.
– O quê?
– Você disse que estava saindo de Bali, mas não fez isso. Por quê?
Ele fechou os punhos.
– Não... Não consegui ir embora.
– Por causa do Jez?
– Sim – ele admitiu. – E por causa de você.
– Foi o que eu quis dizer quando disse que te amava.
Ele tombou a cabeça.
– Isso não faz diferença...
Ela ia dizer que fazia, mas ele continuou falando.
– Ele se afogou por minha causa. Eu não devia ter deixado que ele entrasse no mar... Ele não estava pronto.
Johnny.
– As ondas estavam muito altas. Nem sequer vi quando ele tombou.
– Você tentou salvá-lo.
– Não tentei, não. Não me esforcei. – Os ombros tremeram, como se estivesse chorando. – Ele estava de bruços quando o alcancei. Já morto. Nadei de volta com o corpo.
– Não foi culpa sua.
Ele não a ouviu.
– Jez estava certo. Bati nele por isso. Queria matá-lo – disse, com a voz embargada. – Sou como meu pai...
– Você é uma boa pessoa, Noah – ela disse. Acreditava nisso e precisava que ele também acreditasse. – Você não é seu pai. – Assim como não sou meu pai. Só agora entendia isso. Não era definida pelo legado sombrio de Harley, mas pelas próprias ações.
– Não posso viver assim...
O tom desesperado assustou Mia, que respirou com dificuldade e sentiu a vodca circulando no organismo e entorpecendo as bordas dos pensamentos. Era importante que estivesse lúcida... E que dissesse as palavras certas.
– A morte de Johnny foi um acidente trágico... um acidente terrível. Mas acha mesmo que ele ia querer isso para você?
Noah não respondeu.
– Se ele pudesse vê-lo, o que lhe diria agora?
Ele agarrou-se pela nuca e deixou a tatuagem à vista. Uma tatuagem antes linda, e agora mera tinta preta que penetrava na corrente sanguínea e o envenenava.
– Se ele tinha alguma coisa de você, certamente lhe diria para ficar longe da borda – ela disse.
– E o que isso importa agora? Ele está morto!
A bile subiu pela garganta de Mia. Ela respirou fundo. Precisava se concentrar, precisava afastá-lo da borda.
– E quanto ao Jez? – perguntou, imprimindo um tom calmo na voz. – Ficará sozinho se você fizer isso.
– Ficará melhor assim.
– Ele o ama.
– Não ama, não.
– Eu vi isso, Noah. Ele entrou na rebentação atrás de você. Estava morrendo de medo de perdê-lo – ela continuou. – A última lembrança dele será da briga entre vocês, e de ter culpado você pela morte de Johnny. E tudo o que você está sentindo agora, ele também vai sentir. Não estará acabando apenas com a sua vida... Estará também acabando com a vida do seu irmão.
Ela observou horrorizada enquanto ele andava em direção à borda do penhasco. Uma pedra soltou-se, rolou para frente e despencou pela escuridão abaixo. Estrondou contra as rochas lá embaixo, mas lá embaixo era o nada.
– Sinto muito – disse Noah simplesmente.
Ela entrou em pânico e aguçou os sentidos para um ponto: a ponta de uma pedra contra o arco do próprio pé. Sentiu o gosto de sal trazido do mar pelo vento e ouviu os próprios passos enquanto se movia para frente.
– Mia, não!
Mas ela já estava ao lado dele. Esperou até sentir-se firme e determinada. Depois, obrigou-se a olhar para baixo. O luar iluminou os anéis nos dedos dos pés e, a um centímetro à frente, não mais a borda do precipício e sim o vazio. A escuridão apagava as profundezas, mas lá embaixo as ondas quebravam nas sombras fantasmagóricas das pedras de granito.
Sem mais barganhas, exceto uma.
– Noah, se você está mesmo disposto a fazer isso, também farei. – Ela ergueu e girou a cabeça lentamente. Ele estava com lábios divididos e sangue seco no rosto.
– Não seja estúpida!
Ela entrou em completo silêncio enquanto combatia a onda de medo que subia pelo seu corpo.
– Afaste-se da borda!
– Só vou me afastar se você também se afastar.
– Você está blefando.
– Sabe muito bem que não estou. – Ela tirou o bilhete de suicídio do bolso com todo o cuidado. Ergueu a folha de papel. – Você nunca escreveu isso, Noah. Você nunca veio aqui. Pegue. Depois, saímos daqui. Esta noite nunca aconteceu.
Mia esperou. Uma brisa fresca enrolou-se em torno da mão e agitou a folha.
– Pegue logo, Noah.
O tempo parou. O mundo se reduziu àquele homem e àquela mulher na borda do penhasco. Ela se concentrou na própria respiração acelerada e alta, inspirando e expirando o ar, apenas para se dar conta de que estava por conta própria. O suor escorreu pelo lábio superior. Naquele momento o que mais desejava é que ele pegasse a folha e acabasse logo com aquilo.
De repente, o ar se deslocou e o braço sólido e forte de Noah se ergueu. Ele esticou os dedos em direção à folha de papel. Ela se sentiu suavemente libertada quando finalmente ele pegou o papel.
Foi um alívio instantâneo. A pressão contra os joelhos enrijecidos se desfez, e Mia os dobrou em um ângulo que a inclinou levemente para frente. O tempo encolheu. Ela carinhosamente agarrou o ar à frente em busca de equilíbrio. Mas de repente tudo era escuridão, vazio e um braço que oscilava por conta própria. Um impulso a fez se dobrar para frente a partir da cintura, e o outro braço também oscilou. As pulseiras tilintaram. Um redemoinho a fez girar na brisa.
O peso rolou para as almofadas dos pés e os calcanhares descascaram o penhasco. Ela estava na ponta dos pés. Soaram pedrinhas esmagadas quando Noah se arremeteu para acudi-la. Mia sentiu o toque dos dedos que tentavam alcançá-la.
Mas sabia que era tarde demais.
Ouviu o próprio nome sendo chamado. Mas já estava longe demais. Sentiu uma lufada de vento gelada no rosto seguida pelo lampejo das estrelas e o chamado hipnótico das ondas enquanto o corpo despencava tão leve quanto uma lágrima.