Katie olhou para o sinal luminoso no Aeroporto Internacional de San Francisco. Uma horda de passageiros apressados empurrava carrinhos de bagagem nas proximidades e, em frente ao aeroporto, circulava uma agitada procissão de táxis, micro-ônibus e ônibus. Um carro buzinou duas vezes. Faróis acenderam. Uma porta bateu. E, mais além, o rugido da decolagem de um avião encheu o ar.
Ela tirou o celular do bolso, digitou um número e entrou no aeroporto.
Ed atendeu. Ela ouviu uma torneira aberta ao fundo e o imaginou fazendo a barba em frente à pia.
– Sou eu. – Fazia dois dias que não telefonava para ninguém e se assustou com a debilidade da própria voz. Limpou a garganta. – Estou no aeroporto.
– Onde?
– San Francisco. – Ela hesitou. – Estou voltando para casa.
Ela ouviu a torneira fechar.
– O que houve? Está tudo bem com você?
No mesmo instante em que comunicara a viagem para Ed ela se apercebera de que ele questionaria o bom senso de tal decisão. Uma coisa era Mia viajar pelos cantos mais distantes do mundo, outra coisa bem diferente era Katie fazer isso, e ele tinha lá suas dúvidas de que ela pudesse lidar com isso após a perda da irmã.
– Não consigo fazer isso – ela admitiu.
– Katie...
– Eu queria muito. Não suporto pensar que... – Ela caiu em prantos e as lágrimas rolaram pelo rosto.
– Está tudo bem, querida.
Ela enxugou as lágrimas com o dorso da mão. Nada estava bem. Permanecera nos Estados Unidos apenas por doze dias. E, ao sair da Inglaterra, estava totalmente segura de que se retraçasse a rota de Mia ficaria mais perto de entender o que tinha acontecido, mas durante a viagem sentiu-se ainda mais distante de Mia. Ela não tinha dançado no centro de San Francisco até o dia amanhecer e não tinha nadado de calcinha e sutiã nas águas do Pacífico; não se animara a caminhar no Parque Nacional de Yosemite apenas para apreciar a paisagem do alto das cachoeiras e admirar as antigas sequoias; não tivera sequer a coragem de se hospedar nos coloridos albergues onde Mia e Finn haviam se hospedado ou de armar uma barraca apenas para olhar as estrelas no céu. Não era capaz de viajar, da mesma forma que a irmã não era capaz entendê-la.
Muito pelo contrário, se deslocara de hotel a hotel, solicitando fast-food ou, serviço de quarto para não comer na rua e assistindo a longos filmes pela noite adentro simplesmente para adiar o sono. Passava os dias no volante de um carro ao longo de estradas vazias e depois estacionava e sentava-se no capô do carro, com um cobertor em volta dos ombros enquanto ouvia as ondas a se quebrar em espumas contra as rochas.
As lembranças de Mia enchiam os dias de Katie. Algumas ela recebia de bom grado para se reconfortar, como se pudesse suportar o frio da ausência da irmã abrigando-se em tais lembranças. Outras chegavam sem pedir licença, trazidas pelo odor da brisa ou pelas músicas que soavam no rádio ou pelos gestos de um estranho.
– Era muito cedo para viajar – disse Ed em tom gentil e não de repreensão.
Ele estava certo – o tempo todo estivera certo.
– Já comprou a passagem?
– Não.
– Quero que entre no próximo voo e venha para cá. Não se preocupe com o preço. Cuidarei disso. Só quero que retorne em segurança para casa.
– Muito obrigada.
– Meu Deus, como eu senti saudades de você. Que tal se eu tirasse um tempo de férias? Poderíamos nos trancar no meu apartamento. Eu poderia cozinhar para você. Assistiríamos a DVDs antigos. Sairíamos para fazer longas caminhadas... Já estamos quase na primavera.
– É sério? – ela perguntou distraída.
– Seus amigos ficariam contentes. Os que estão preocupados com você. Você nem faz ideia de como minha caixa de e-mails está cheia! Vai se sentir bem melhor quando chegar aqui. Prometo.
Retornar para Londres, para o apartamento dele, para os braços dele, era tudo de que ela precisava. Estaria com os amigos por perto, onde pudesse encontrar um supermercado sem recorrer a mapas, onde soubesse os horários do cinema e da academia, onde pudesse preencher cada hora livre. O novo mundo onde estava era grande demais, longe demais do mundo que conhecia.
– Telefone logo que marcar a passagem. Vou pegá-la no aeroporto. – Ele fez uma pausa. – Katie, eu mal posso esperar para vê-la.
– Eu também – ela disse, mas quando desligou sentiu uma estranha decepção no peito.
Já habituada à técnica de jogar a mochila sobre os ombros, ergueu-a e saiu em direção à fila para o balcão de passagens. A fila serpenteava ao longo de um labirinto de obstáculos e ela se postou atrás de uma família cujo filho pequeno jazia sonolento sobre uma pilha de malas pretas no carrinho de bagagem.
A fila se moveu para a frente e Katie a acompanhou. A fila se deteve e ela abriu o zíper do bolso lateral da mochila e tirou o diário de Mia de dentro. Passou o dedo pelos cantos arranhados e pela lombada desgastada. Folheou as páginas antes cor de creme e agora grossas, enrugadas e amarronzadas pela ação da cerveja derramada.
Katie fazia questão de guardar muito bem guardada cada palavra daquele precioso diário, que era como um presente. Lia um relato por dia, mas agora que deixava o caminho de Mia para trás não havia mais razão para manter esse hábito. De todo modo, fixou os olhos na página onde terminara a última leitura – Mia e Finn atravessavam o Vale da Morte de carro – e se pôs a ler.
Ficou sabendo da beleza realizada pelas mãos do homem na represa de Hoover Dam e de uma pequena barraca de estrada, onde Mia encontrara os melhores tacos de carne do mundo. Leu que Mia e Finn partilharam uma cerveja quente enquanto observavam o voo em círculos de um urubu-de-cabeça-vermelha sobre o Grande Canyon. E também leu que eles fizeram algumas caminhadas no Parque Nacional de Jodhua Tree, onde haviam escalado pedras gigantescas para apreciar a paisagem.
Você parecia tão feliz, Mia: o que aconteceu? Mesmo depois de ter vivenciado todas essas coisas incríveis com Finn, saiu em viagem para Bali sozinha. Por que você foi para o alto daquele penhasco naquela noite? Será que estava se apoquentando com tudo que lhe disse? Você fez aquilo, Mia? Você pulou? Por Deus, o que aconteceu com você, Mia?
Ela se manteve de olhos fixos no diário enquanto folheava página após página. Isso era como abrir o peito de Mia, era como revirar os ossos e a carne e olhar direto no coração da irmã. Tudo o que Mia sentira e vivenciara estava exposto naquelas páginas. Ignorando o peso da mochila sobre os ombros, Katie percorreu sentença após sentença, engolindo relatos inteiros com avidez e impaciência a fim de entender. Até que de repente se deparou com um nome que de tão surpreendente a fez tapar a boca para conter um suspiro.
Mick.
Mia anotara que planejava visitar o pai a quem as duas filhas tinham visto pela última vez vinte e poucos anos antes. O nome de Mick era um peso tão desalentador para a mãe que Mia e Katie jamais demonstraram qualquer desejo de vê-lo. Pelo menos até então. Ela continuou lendo na esperança de que a ideia de visitá-lo não tivesse passado de um mero capricho de Mia.
Mas seguiram-se outros detalhes. Algo escrito em uma tira de papel enfiada entre duas páginas que provavelmente era o endereço dele. Ao redor do papel, alguns salpicos de palavras, fatos e meditações de Mia. E ainda duas interrogações rodeadas por um traço de tinta preta. “Quem é Mick?” e “Quem sou eu?”. As interrogações fervilharam na cabeça de Katie, até que lhe trouxeram uma súbita lembrança.
Dois meses antes da viagem, Mia a tinha acordado às três da madrugada.
– Perdi minhas chaves – disse com a voz arrastada e pondo um dedo sobre os lábios. Estava com os olhos borrados pelo traçado do khol e com os sapatos altos dependurados na mão.
– Oh, Mia – suspirou Katie, amparando-a enquanto atravessavam a porta. – Por que faz isso com você?
– Porque sou uma fodida – respondeu Mia, cambaleando em direção à sala.
Katie deixou-a por um momento e se dirigiu à cozinha. Apoiou-se na beirada fria da pia e fechou os olhos. Naquela mesma semana já tinha encontrado diversas evidências de noites iguais – a batida da porta principal às altas horas, a caixa de remédios revirada e sem alguns comprimidos para dor de cabeça, restos de lanches noturnos pela bancada da cozinha. Mas como a bebida e o humor sombrio se deviam à perda da mãe, deixava de lado as insônias da irmã e a bagunça que limpava a cada manhã.
Era a irmã mais velha, e os sacrifícios que fazia por Mia se justificavam. Quando aos 6 anos Mia esqueceu a fala na peça de Natal, Katie é que a acudiu atrás do palco, acariciando suas mãos suadas e dizendo-lhe palavras de conforto. Quando aos 17 anos Mia pensou que estivesse grávida, Katie é que saiu correndo da universidade de volta para casa e perdeu o baile de verão. Quando Mia gastou o dinheiro da bolsa de estudos numa viagem ao México e não pôde devolvê-lo, Katie é que lhe emprestou o dinheiro – apesar de ser curto para ela própria. Os dois temperamentos pareciam se equilibrar em uma gangorra: Mia se impelia selvagem para o alto enquanto Katie era deixada no chão. Katie amava a irmã de todo coração, mas acabou se ressentindo com ela.
De repente, a música ecoou alta da sala e na mesma hora Katie pensou no casal de vizinhos com um bebê do andar de baixo.
– Mia! – exclamou, entrando na sala... E detendo-se em seguida.
Mia dançava no vão entre o sofá e a mesa de centro, com os cabelos balançando nas costas. Rodopiava enquanto era levada de olhos fechados pelo soul de um dos velhos discos da mãe. Acariciava o ar com os dedos, como se abrindo o caminho ao fluir das notas. Ela então girou e a saia do vestido se inflou de ar. Logo abriu os olhos, sorriu e estendeu a mão para Katie.
Por um momento Katie se viu diante de Mia de 8 anos que dançava no jardim coberta de lama sob uma chuva de verão. Depois, se viu dando um passo à frente, arrastada pela música, arrastada pela irmã. Seus ombros relaxaram e seus quadris rebolaram ao toque sedoso da camisola de seda. Sorriu quando Mia ergueu sua mão e a rodopiou por baixo do braço erguido.
Elas provocaram risadas uma na outra, com movimentos abestalhados e gestos ultrajantes. Mia pulou para cima do sofá, fazendo-o de pódio e afundando no estofado de couro com os pés descalços e as pontas dos dedos esticadas para o teto. Katie se lembrou de uma sequência de passos de uma dança que estava na moda nos seus tempos de criança e que tinha aprendido na frente do espelho do quarto junto com a irmã. Fez os mesmos passos com a apurada precisão de quando ainda tinha 10 anos. Elas caíram no sofá aos risos. Mia pôs os braços em volta de Katie, que aceitou o gesto pelo que realmente significava – um raro arroubo de afeição possível graças ao álcool.
A faixa acabou e fez-se silêncio na sala. Elas continuaram abraçadas e com o coração aos saltos pelo exercício.
– Você me faz lembrar tanto da mamãe – disse Mia na penumbra.
– Faço mesmo? – disse Katie suavemente, com medo de espantar a intimidade que as banhava como um raio de sol.
– Vocês duas podiam ser irmãs.
Estendeu-se um longo silêncio entre elas, quebrado com uma pergunta lançada por Mia:
– Você nunca se pergunta por que Mick nos abandonou?
Katie sentou-se, pega de surpresa.
– Ele nos abandonou porque era um egoísta.
– Talvez houvesse mais que isso.
– Claro – continuou Katie. – Ele não era perfeito. – As luzes azuis de um carro de polícia entraram pela janela. – Por que estamos aqui falando dele? Ele nunca se preocupou com ninguém além de si mesmo.
– Como podemos ter certeza?
– Ele nos abandonou; só isso responde. – Katie se pôs de pé.
Mia jogou os pés para o lado e a irmã viu que estavam imundos.
– Tome um copo d’água antes de dormir.
Katie fez menção de sair da sala e ouviu outra pergunta:
– E se eu fosse igual a ele?
Katie se deteve por um instante, sem saber ao certo se tinha ouvido direito. Mia não disse mais nada, e ela então saiu andando até seu quarto.
Na ocasião, descartara a pergunta como conversa de bêbado, sem considerar que talvez a irmã estivesse expressando um medo real. Agora, ansiosa para acompanhar o relato sobre Mick no diário de Mia, apressou-se em virar a página.
No reverso da página em branco encontrava-se o canhoto do cartão de embarque de um voo para Maui. Mia e Finn tinham estado naquele lugar um dia após a página ter sido escrita.
– Em que posso ajudá-la? – Uma mulher com um vistoso lenço amarelo amarrado sobre a blusa sorriu atrás do balcão de passagens. Katie já era a primeira da fila.
– Quero marcar um voo, por favor.
– Claro. E para onde quer voar?
Ela olhou para o diário e se perguntou se a decisão de Mia de ver Mick não estaria ligada ao que tinha acontecido em Bali. Se voltasse para casa, não teria outra escolha senão aceitar o relato das autoridades sobre a morte de Mia. E assim nunca saberia a verdade.
Ela fechou o diário lentamente.
– Quero uma passagem para Maui.
Já era madrugada quando Katie saiu do avião em meio à atmosfera doce e úmida de Maui. Enquanto os agentes turísticos colocavam colares de hibiscos no pescoço dos turistas, Katie atravessava em silêncio a perfumada multidão e pegava um táxi.
Abaixou o vidro da janela e sentiu-se aliviada da tensão localizada no pescoço e nos ombros com o calor do ar. Foi deixada no Pineapple Hostel, na costa norte da ilha.
– O dormitório 4 está vazio. Siga pelo corredor e suba a escada que logo estará lá. O banheiro fica do outro lado. Divirta-se, Mahalo – disse o proprietário, que exibia três aros de prata no lábio inferior.
Katie agradeceu e seguiu por um corredor pintado com cores vivas enquanto olhava fotos com molduras baratas de windsurfistas em ondas gigantescas; na parte inferior de cada foto se lia impresso em letras brancas: MAUI. Só então se deu conta do surrealismo da situação, uma vez que não sabia quase nada a respeito da ilha quando poucas horas antes uma decisão diferente a levaria de volta às temperaturas geladas de Londres.
Era a primeira vez que se hospedava num albergue e sentiu-se aliviada quando viu que o dormitório era limpo e arejado. Colocou a mochila na parte de baixo de uma das quatro camas-beliche cobertas de lençóis verdes brilhantes e travesseiros amarelos.
Fazia tempo que ela e Mia tinham pedido beliches amarelo-canário de presente de Natal. Estavam respectivamente com 9 e 6 anos. Na época, nem precisavam dividir um quarto porque a casa dispunha de dois quartos vagos. Mas Katie queria ter alguém por perto quando caísse no sono e Mia queria ter alguma coisa de madeira no quarto onde pudesse escalar. Não brigaram para definir quem dormiria em cima e embaixo: Katie preferiu o leito de baixo porque poderia enfiar um lençol nos cantos do colchão de cima de maneira a simular o dossel de um quarto de princesa, e Mia se encantou em dormir no leito de cima para fazer de conta que estava no alto do convés de um navio. Estrelas grudadas no teto representaram o céu e um tapete azul do banheiro representou o mar. Mia chamava Katie que subia com todo cuidado porque não confiava na firmeza da escada e, sentadas de pernas cruzadas na cama de cima, descreviam as coisas que viam na água.
Já no dormitório, Katie tirou o celular da mochila e o ligou. O aparelho soou de imediato, registrando três novas mensagens de Ed. Ela sentou-se na beira do colchão do beliche de pescoço esticado para frente e ligou para ele.
– Katie! Onde você está? Já estava preocupado com você.
– Meu voo saiu logo depois. Não tive tempo...
– Já está no Heathrow? Já chegou?
– Não. Preste atenção, Ed. – Ela pôs a mão na testa. – Eu pensei melhor. E decidi continuar com a viagem.
– Onde você está?
– Em Maui.
– Maui? Que raio de coisa está acontecendo?
– Achei errado desistir.
– Você simplesmente não pode pegar um avião sabe Deus para onde sem avisar! Não é seguro. Está agindo igual à Mia.
Ela percebeu que a comparação era uma forma de puni-la, mas por dentro sentiu-se feliz. Enquanto conversava, se livrava das botas de cano alto e das meias e pisava o piso de madeira do dormitório de pés descalços. Foi uma sensação maravilhosamente fria.
– Uma decisão como essa devia ser tomada junto comigo – ele continuou. – Você precisa falar comigo.
– Desculpe-me, você tem razão. Eu mesma odeio ser colocada à parte, realmente odeio. É que só agora me dei conta de que realmente preciso fazer isso.
– Algumas horas atrás você me telefonou e disse que estava voltando para casa. E agora está em Maui e tudo voltou de novo. Honestamente, já não tenho certeza de que você está mentalmente sã para fazer isso.
– O que está querendo dizer?
– A Katie que conheço é decidida e equilibrada.
– Sim, ela é isso. Mas ela também acaba de perder a irmã e merece um pouco de paciência.
– Não estou brigando com você, Katie.
– Então, trate de demonstrar o seu apoio.
– Apoio tudo o que você faz. É que está sendo difícil me convencer de que viajar sozinha agora é a melhor coisa para você. Fico preocupado em vê-la à caça de fantasmas.
– E o que me preocupa é a possibilidade de deixar Mia para trás, se voltar para casa agora – ela rebateu um tanto exaltada.
Fez-se um silêncio constrangedor. Ela girou o anel de noivado com os dedos e o diamante brilhou contra a luz.
– Os convites ficaram prontos hoje – disse Ed.
Ela os tinha encomendado a uma empresa de design que fazia um excelente trabalho com flores bordadas a laser nas bordas. Não lhe passou pela cabeça que ficariam prontos tão cedo.
– O casamento é daqui a quatro meses – ele continuou.
– Eu sei.
– Vai voltar a tempo?
– É óbvio que sim.
– Porque se não estiver aqui – ele acrescentou em tom mais suave –, não faço a menor ideia do que farei com cem castiçais Cath Kidston.
Ela sorriu.
– Não se preocupe, estarei em casa.
Ela desligou, largou o celular e deitou-se sobre o lençol verde com o diário de Mia. Apesar da preocupação de Ed, pela primeira vez desde que saíra da Inglaterra sentia que estava pensando com mais clareza.
Abriu o diário na página onde estava o endereço de Mick e passou o dedo indicador nas palavras desconhecidas. Foi estranho pensar no pai tão próximo; imaginou uma casa moderna e grande, um homem de cabelos grisalhos e um armário repleto de ternos.
Na infância, às vezes Katie e Mia conversavam baixinho no escuro do quarto sobre o pai. Mia se debruçava na beira do beliche, enfiava a cabeça por dentro do dossel de princesa e perguntava: “Como você acha que papai é?” Katie, que se achava mais esperta em fazer comparações abstratas que deixavam Mia confusa por dias, respondia: “Ele é como Moby Dick” ou “Ele me lembra as músicas daquele disco do David Bowie da mamãe”. Às vezes Mia queria saber o sentido dessas palavras e Katie se limitava a dar de ombros, aconselhando a irmã a ler o livro ou ouvir o disco.
A verdadeira razão que a impedia de responder certo era não saber como o pai era de verdade. Suas recordações eram peças de dois quebra-cabeças diferentes que não se encaixavam. Algumas recordações eram inesquecíveis – como a que tinha acontecido na velha cozinha da casa ao norte de Londres, onde o piso de lajotas vermelhas gelava os pés até mesmo no verão. Ela devia estar dormindo, mas desceu até o andar de baixo para pedir um copo de leite. Não encontrou nem o pai nem a mãe na sala e se dirigiu à cozinha, de onde ecoava a música. A mãe girava nos braços do pai às risadas. Ela observou a cena por um momento; o brilho do relógio de ouro do pai alinhado ao punho da camisa, o cheiro da loção pós-barba mesclado ao cheiro doce do uísque, o cabelo da mãe se soltando do pregador de tartaruga. O pai então a viu e parou de dançar. Ela ficou com medo de ser repreendida por estar fora da cama e começou a bocejar, mas ele a pegou pela mão e também a fez girar. Ela riu do jeito que tinha visto a mãe rir, com a cabeça jogada para trás e de boca aberta.
Outras recordações, no entanto, Katie mantinha em segredo, como na vez em que Mia levou sete pontos na têmpora direita aos 2 anos. Katie assistia a um espetáculo de balé com a mãe e, durante o intervalo, enquanto fazia piruetas no salão de coquetel, ouviu soar o nome da mãe no alto-falante. “Grace Greene?”, disse o gerente do teatro no balcão de entrada. “Seu marido está ao telefone.” A mãe perdeu a cor e arregalou os olhos de medo quando levou o telefone ao ouvido.
Depois disso, as lembranças daquela tarde se fragmentaram em quadros, como as ilustrações de uma revista de quadrinhos. Lembrava-se da corrida de táxi pelas ruas escuras e do balcão de recepção do hospital que não conseguia alcançar, mesmo nas pontas dos pés. Lembrava-se da irmã deitada na cama ladeada de grades de metal e das mãos pálidas da mãe agarrando a bolsa enquanto conversava com o pai.
Segundo o pai, Mia tinha tropeçado no patamar e caído da escada, mas com o tempo outras pistas vieram à tona e sugeriram outra coisa bem diferente. Uma enfermeira mencionou uma motocicleta; um vizinho se referiu ao pai com a palavra “irresponsável”.
Quando elas saíram do hospital no dia seguinte, os pertences do pai não estavam mais na casa. Seguiram-se outras mudanças. Com o tempo, a mãe passou a se mostrar apática e vazia e, quando entrava no banheiro para tomar banho à noite, o ruído da água do chuveiro era abafado pelo choro dela.
Katie ainda era uma criança, mas a ligação entre o acidente de Mia e a partida do pai não lhe passou despercebida. Lembrava-se de ter chegado à soleira da porta do quarto dos pais e de ter perguntado para a mãe que passava um corretor de manchas nas olheiras escuras: “Papai partiu por causa da Mia?” A mãe largou o potinho dourado do corretor, deu três passos pelo tapete, agarrou-a pelo braço e lhe deu uma palmada atrás das coxas. Três meses depois todas as coisas foram encaixotadas e elas tomaram um ônibus para a Cornualha.
E agora, enquanto folheava o diário, Katie se via com a incômoda sensação de que, de alguma forma, aquele encontro com Mick se emaranhava com os acontecimentos seguintes na viagem de Mia. Estirou-se no beliche e leu rapidamente, mas com muita atenção. Nem reparou nos dois outros viajantes que entraram e saíram do quarto, assim como não ouviu a chuva tropical que começou a bater no vidro da janela. Simplesmente continuou lendo, absolutamente concentrada nas páginas do diário, na narrativa de Mia sobre os acontecimentos na noite em que chegou à casa do pai.