Jamie e Lottie estavam estranhamente parados à porta do quarto dela. Os seus uniformes estavam imundos, mas o dele parecia natural, como se fizesse todo o sentido que ele estivesse coberto de lama.
Lottie sentiu-se quase a rebentar de preocupação. Estava completamente aterrorizada com a reação de Ellie ao trazer Jamie para o quarto delas, além de que era sua culpa ele estar ali. Depois da sua pequena queda no caminho secreto, tinham conversado e o verdadeiro motivo para a presença de Jamie em Rosewood Hall tinha vindo à luz.
Tinha sido enviado pela família de Ellie, para perceber exatamente o que se passava e porque é que os jornais davam notícia de que a princesa maradoviana estava numa escola em Inglaterra. Ele sempre soubera que Lottie não era a princesa maradoviana, o que explicava a sua atitude para com ela e isso deixara Lottie absolutamente mortificada.
– Sou a princesa maradoviana… mas podes chamar-me Lottie.
Se ela pudesse voltar atrás no tempo, seria esse o momento que escolheria para se automutilar. Ao perceber que ele sabia que ela mentia, tinha corado intensamente e perguntou-se se podia enfiar a cabeça na areia e talvez nunca, mas nunca voltar a tirá-la. Viveria assim para sempre e nunca mais teria hipótese de se envergonhar a si própria.
– Não estou arrependido de te ter envergonhado; acho que merecias – tinha dito firmemente e Lottie não podia deixar de concordar com ele.
A ala oeste do dormitório era o lado das raparigas e não era suposto os rapazes lá irem. Jamie era claramente um rapaz e se alguém, em especial a professora Devine, os apanhasse, estariam em grandes apuros. O que levou ao atual dilema. Lottie não queria mais nada além de estar segura no conforto do seu quarto onde podia atirar Jamie pela varanda, se um professor viesse ver como estavam. Ele podia partir uma perna ou coisa do género, mas era um pequeno preço a pagar pelo seu registo escolar imaculado. Podia explicar que tinha caído na lama e tivera de voltar a correr para se mudar e tudo ficaria bem.
Mas não se conseguia decidir a abrir a porta. Estava demasiado mortificada com todos aqueles acontecimentos. A decisão dela de não corrigir esta confusão da princesa, poderia ter resultado em Ellie ser enfiada num avião de volta a Maradova e Lottie sentia que a culpa era sua. Quantas vezes vou dar comigo nervosa à porta do 221?, questionou-se, arrependida.
– E se calhar abrir portas sozinha também é contra as regras de uma princesa, menina Pumpkin? – O sarcasmo vinha de Jamie, que fazia questão de bater com o pé impacientemente.
Todas as suas preocupações rapidamente mudaram para nova irritação. Havia algo particularmente irritante na forma elegante como ele falava, o que acrescentava cerca de mais 50 por cento de exasperação a toda a experiência.
– Sabes… – Lottie voltou-se para Jamie, cerrando o punho em frustração. – Estou a ficar farta do teu tom sarcástico.
Jamie não perdeu a oportunidade.
– E eu estou a ficar farto de esperar que abras a porta.
– Bom, ia mesmo fazê-lo. – Lottie encheu as bochechas de ar numa demonstração infantil de teimosia, fazendo Jamie revirar os olhos.
Ouviram a maçaneta girar e a porta começou a abrir-se. Voltaram os dois a cabeça ao mesmo tempo e depararam-se com Ellie a olhar confusa para a imagem dos dois cobertos de lama.
– Lottie? – Ellie pestanejou como se estivesse a acordar de um sonho e a sua expressão mudou de choque para irritação.
– O QUE… – começou a gritar, mas Lottie e Jamie tiveram ambos a mesma reação e empurraram Ellie para dentro do quarto e taparam-lhe a boca para que não gritasse.
– Xiu – sussurrou Jamie enquanto fechava a porta atrás deles. – Queres que sejamos apanhados? Tens de pensar no teu registo escolar.
Lottie riu enfadada.
Jamie voltou a revirar os olhos e Lottie teve o pressentimento de que o veria fazer isto muitas vezes.
Lottie sentiu uma mão agarrar-lhe no braço e puxá-la para trás. Ellie colocou-se entre Lottie e Jamie, formando um muro entre eles. Havia um olhar no seu rosto, o mesmo fogo de quando derrubara Anastacia no outro dia no campo. Lottie afastou-se para sair de trás dela, mas Ellie estendeu o braço protetoramente, empurrando Lottie para trás. Lottie olhou para ela e Ellie ofereceu-lhe o seu pequeno sorriso amarelo característico e com carinho tirou um ramo de um caracol do seu cabelo louro.
– Vejo que conheceste o meu amigo de infância, Jamie Volk.
Ellie voltou-se para Jamie e, por um ínfimo segundo, Lottie teve a certeza de que lhe dirigiu um olhar aceso, algo como um aviso zangado, mas não conseguiu perceber porquê. A atmosfera no quarto tinha-se tornado desconfortavelmente pesada. Toda a interação era muito confusa. Jamie dissera que conhecia Ellie toda a sua vida; certamente ela ficaria feliz por o ver?
– Jamie – Ellie disse o seu nome apressadamente. Por breves segundos, olharam um para o outro, avaliando-se mutuamente pela primeira vez desde o reencontro, tinham ambos ao pescoço os medalhões Wolfson perfeitamente alinhados.
– Não enviaste uma única carta. Os teus pais têm estado preocupadíssimos – disse Jamie inexpressivamente. Ellie desviou o olhar e Lottie conseguiu vê-la morder o lábio nervosa. – Já para não dizer que tens faltado às aulas e quebrado a hora de recolher e…
– Não interessa! – protestou Ellie de repente. – Lottie tem uma assiduidade perfeita e, tanto quanto se sabe, é ela a princesa maradoviana, pelo que eu posso fazer o que quiser. – Ellie tentou proferir estas palavras com humor mas não obteve o efeito desejado.
– Sabes que não é assim, Ellie – respondeu Jamie friamente, o seu tom era a perfeita antítese da atitude apática de Ellie.
– Mas e se fosse? – Havia um pequeno traço de desespero na voz de Ellie que fez Lottie encolher-se.
– Tu sabes que não podemos…
– Mas ela é praticamente uma p…
– Briktah! – urrou Jamie.
Oh oh, pensou Lottie. Aquela definitivamente não era uma boa palavra.
Ellie bateu o pé com força, fazendo Lottie saltar. Rugiu algo noutra língua, que Lottie pensou que devia ser um antigo dialeto maradoviano e começou a esbracejar profusamente com as mãos. Lottie nunca a tinha visto assim e era quase assustador. O seu tom era completamente diferente e Lottie recordava-se de quão intensas podiam ser as alterações de humor de Ellie.
Era uma visão estranha, observar este rapaz coberto de lama a discutir com uma furiosa tempestade em forma de rapariga, num bonito cenário pintado de cor-de-rosa no lado do quarto de Lottie. Havia mesmo algo de hilariante mas, apesar de não conseguir perceber a língua, as palavras «Lottie» e «guardião» eram constantes e era óbvio que discutiam algo grave. Lottie perguntou-se se os devia deixar sozinhos, mas quando se moveu para o lado, Ellie instintivamente a puxou de volta sem a olhar.
Finalmente, o que quer que fosse que discutiam, pareceram chegar a um impasse. Era impossível dizer quem tinha ganho, já que ambos pareciam frustrados. Jamie passou as mãos pelo cabelo, exasperado, e sentou-se na cama de Lottie. Pegou no seu porco de peluche, o Sr. Truffles, e para espanto de Lottie começou a afagar a sua cabeça, com a mente ausente, antes de gesticular com a outra mão como se desse autorização a Ellie para fazer algo.
De repente, Ellie voltou-se para Lottie e o seu rosto estava tão desfigurado que parecia estar quase apreensiva; Lottie sentiu-se muito desconfortável.
– Lottie, sabes o que é um partisan? – Ellie perguntou desconfortável.
Lottie reagiu de imediato perante a palavra.
– Sim, sei – disse, orgulhosa. – Na verdade, a Binah explicou-me no primeiro dia. São uma espécie de guarda-costas elegantes… – O ar sério dos rostos de ambos fez com que Lottie duvidasse dela própria. – Acho eu – acrescentou, hesitante.
– Não, não… Quero dizer, sim… São.
Ellie olhou para Jamie e algo de estranho passou pelo seu rosto, algo que se assemelhava a arrependimento e que de forma rápida foi substituído pela sua habitual máscara de confiança.
– Hoje em dia, qualquer pessoa que esteja disposta a passar pelo árduo processo e pelos rigorosos critérios pode treinar para ser um partisan, mas um verdadeiro partisan é criado para a sua função desde o nascimento. Aperfeiçoado desde criança para ser um protetor letal, leal apenas ao seu mestre, é muito eficaz e muito perigoso, mas, mais importante de tudo, é discreto.
Ellie olhou novamente para Lottie com um brilho nos olhos. Lottie reparou que ela estava a suster a respiração. Binah tinha dito que os partisans pareciam românticos e agora percebia o que ela queria dizer. Eram como algo saído de um romance. Assassinos letais e dedicados, treinados desde o nascimento para proteger o seu senhor ou senhora. Quantas vezes se apaixonarão uns pelos outros?, perguntou-se Lottie.
– Uau! – disse Lottie alto. Ocorreu-lhe um pensamento e questionou curiosa. – Tens um?
Jamie e Ellie voltaram-se um para o outro e trocaram olhares. Pareciam partilhar uma espécie de conversa telepática a que Jamie respondeu com um aceno rápido. Ellie voltou-se para Lottie e começou a esfregar a nuca embaraçada, como se tivesse vergonha de continuar.
– O Jamie… O Jamie é o meu partisan. – Mostrou os dentes num pequeno sorriso como se esta informação não fosse nada de especial. – O acordo era que eles o enviariam se algo corresse mal e bem…
Um milhão de perguntas assaltou a mente de Lottie e não sabia por onde começar. Quem mais teria um partisan na escola? Os pais de Jamie também eram partisans? Jamie já tinha morto alguém? Rapidamente, ignorou aquele último pensamento ao sentir um desagradável arrepio na espinha.
– Lottie? – chamou Ellie preocupada.
Lottie sentou-se pesadamente na cama de Ellie, sentindo-se um pouco tonta.
– Desculpa, isto é muito para assimilar – respondeu ainda em transe. Olhou apreensiva para Jamie. Se já parecera estranho na metade cor-de-rosa do quarto de Lottie, agora parecia um peixe no deserto. Não admirava que tivesse sido tão frio e intenso quando se conheceram. Este rapaz fora criado desde que nascera para protegera a princesa Eleanor Wolfson de Maradova e Lottie, quase inadvertidamente, a expusera e tinha-a posto em perigo. Para Jamie, Lottie devia representar tudo aquilo de que passara a vida a proteger. Porque é que ele o fazia sentir-se tão nervosa?
– Tens o teu passaporte contigo?
A pergunta veio de Jamie, enquanto evitava manter contacto visual com o outro lado do quarto, parecendo tentar concentrar-se em algo à sua frente.
– Sim… tenho. Está na minha mesa-de-cabeceira. – As palavras saíram um pouco mais ásperas do que esperava e percebeu que não havia forma de disfarçar o seu incómodo perante ele.
– Ainda bem – respondeu Jamie. – Vais precisar dele.
Jamie levantou-se e Lottie estremeceu. Agora ele parecia-lhe completamente diferente desde que soubera que era uma máquina assassina.
– O que é que isso quer dizer? – questionou Lottie da forma mais calma possível.
– Lottie, significa… – Jamie caminhou até junto da sua cama, abriu a gaveta para retirar o passaporte e os seus dedos percorreram a capa rosada com um sorriso nos lábios –, que vais a Maradova.
Era a última coisa que Lottie esperara ouvir.