– Anastacia avisou a guarda. Vamos esperar aqui até eles chegarem.
Jamie tentava convencer uma Ellie trémula a voltar para dentro, mas ela recusava-se. Em vez disso, esfregava nervosamente os braços para se manter quente. Esconderam-se nas sombras da varanda, mantendo-se fora da vista da carrinha, mas espreitando de vez em quando, para confirmar que não estava a andar. Ellie tinha encontrado um taco de golfe algures e mantinha-o ao seu lado, aparentemente esperando usá-lo como arma.
– Mas e se nessa altura for demasiado tarde? – choramingou.
Jamie abanou a cabeça, sabendo o que ela estava a pensar, mas tentando manter-se o mais racional possível. De forma alguma ele poria a segurança de Lottie à frente da de Ellie. Não estava autorizado a isso, apesar de deixá-la estar a dar cabo dele. Tinha de proteger Ellie acima de tudo.
– Tenho de te manter em segurança, Ellie – disse firmemente, apesar de todas as células do seu corpo lhe dizerem para correr para a carrinha.
E então, assim que acabou de falar, ouviu o suave ruído de um motor a começar a trabalhar.
Ouviu-se um som de algo a rasgar-se e Jamie voltou-se para ver Ellie rasgar o vestido.
– Desculpa, Jamie, mas não vou arriscar – disse ela. E agarrou no taco de golfe.
Jamie esticou-se para a travar, mas era demasiado tarde. Ellie tinha atirado com os sapatos e saltado a parede da varanda, correndo em direção à carrinha.
Ellie corria para fazer aquilo que Jamie queria ter a liberdade de fazer. Correr para salvar Lottie.
*
Lottie tinha sido mudada para o assento da frente da carrinha, embrulhada num xaile para que os seus pulsos atados ficassem tapados. Tremia; não sabia se do frio ou do medo. As instruções eram simples. Tinha de parecer chateada, tão chateada que queria temporariamente sair do palácio e Saskia, uma partisan registada, tinha-se amavelmente oferecido para a levar a dar uma volta. Se Lottie não os conseguisse convencer, Saskia começaria a magoar pessoas.
Saskia tinha-se assegurado de que se alguém olhasse para as filmagens das câmaras de segurança, pareceria que estava simplesmente a ajudar a princesa alcoolizada. Uma história fácil de acreditar tendo em conta a reputação de Ellie e o seu encontro com Edmund. Era inteligente e batia de acordo com a história que tinham contado a Jamie e Ellie sobre não querer regressar ao baile.
Por favor, espero que eles tenham percebido o meu código.
Saskia olhou para o relógio, esperou mais uns segundos e colocou a chave na ignição.
– Okay, princesa, estás pronta para a tua atuação?
Lottie teria rido se não estivesse tão aterrorizada. Tenho estado a atuar o tempo todo.
Em vez disso, assentiu em silêncio; não ia ser difícil fingir que estava chateada.
E então a carrinha agitou-se por baixo delas e começaram a mover-se.
Acho que agora é de vez, pensou Lottie para si sem esperança.
Saskia levou-as para fora dali e pisou o acelerador, conduzindo-as para o caminho em direção ao portão. Poucos metros tinham avançado, quando tudo se tornou uma confusão.
Uma figura mergulhou na frente da carrinha, de braços estendidos, e um uivo selvagem saiu da sua boca.
– O que… – gritou Saskia ao colocar o pé no travão.
A carrinha parou de repente e Lottie foi impulsionada para a frente. A figura brilhou com a luz dos faróis, parecia uma massa desgrenhada de cabelo preto a voar em redor da cabeça e os dentes à mostra num rugido furioso. Era Ellie!
O seu vestido estava rasgado e ela estava parada, descalça e furiosa, na neve com um taco de golfe que agitava violentamente, destruindo um dos faróis enquanto gritava um temível grito de guerra para o ar. Parecia aterradora.
– O QUE É QUE FIZESTE? – gritou Saskia.
Lottie saltou quando Saskia a agarrou. Fraquejou, incapaz de responder. O que raio está Ellie a fazer?
– Eu não…
As suas palavras foram interrompidas, quando a janela do lado do condutor se estilhaçou e pedaços de vidro caíram em redor delas. Lottie gritou com o impacto e elas sentiram um remoinho gélido de ar a acompanhá-las.
– Saskia, sai JÁ do carro! – Ellie gritou as palavras num urro feroz, preparando-se para voltar a lançar o taco.
O rosto de Saskia tornou-se frio à frente de Lottie e um arrepio que nada tinha a ver com o vento percorreu-lhe o corpo. Saskia agarrou Lottie pelo cabelo e atirou-a para as traseiras da carrinha. Lottie gritou ao cair. Incapaz de amortecer a queda com as mãos atadas, tinha batido com a cabeça no chão e a sua tiara voara.
Ouviu a porta do condutor abrir-se e gritou para que Ellie corresse, enquanto tentava levantar-se.
As portas da carrinha abriram-se. Saskia estava parada, agarrando Ellie a quem tinha tirado o taco de golfe. Ellie atirou a cabeça para trás e bateu-lhe. Saskia soltou-a abruptamente e bateu-lhe com força na cara antes de a enfiar na carrinha junto de Lottie.
Ellie olhou para Sakia e riu sarcasticamente:
– Estás tão lixada – cacarejou, com o lábio a sangrar e a parecer que tinha acabado de se alimentar de um animal vivo.
Saskia franziu o sobrolho e Lottie percebeu o que Ellie queria dizer. Jamie avançava pelo trilho na neve tão depressa que era quase um borrão no gelo. O rosto de Saskia registou o perigo e Lottie observou-a enquanto ela rodou graciosamente, retirando algo de dentro do casaco e apontando à figura que se dirigia a ela.
– JAMIE, CUIDADO!
Lottie gritou as palavras desesperadas para o ar, mas não foram necessárias. Antes de Lottie conseguir perceber o que estava a acontecer, Jamie estava à frente delas, agachando-se para evitar o tiro e levantando-se.
Atirou a mão esquerda, afastando o cano da arma, seguida da mão direita, que atingiu o pulso de Saskia com força. Habilmente, manipulou a mão dela de modo a que a arma ficasse agora apontada a Saskia. Aconteceu tudo tão depressa que Lottie quase nem conseguiu processar o que estava a assistir.
Saskia reagiu pisando o pé de Jamie e rodando, fazendo com que ambos deixassem cair a arma. Pontapeou-a para fora do alcance. Se não podia ter a arma, estava melhor fora de alcance do que correr o risco de a ter apontada a si.
Jamie agarrou Saskia e afastou-a para o mais longe possível das duas raparigas antes de se atirar a ela. E a dança começou.
Os dois moviam-se numa mistura fluida de elegância e golpes de murros, uma sofisticação e precisão a cada momento que formava um bonito bailado mortal.
Lottie observou horrorizada quando caíram um sobre o outro, impressionada com a intrincada precisão do seu bailado. Era uma luta de partisans e era letal.
Pareciam estar perfeitamente empatados até Jamie bloquear o braço de Saskia com o ombro e conseguir dar-lhe um murro no estômago. Saskia dobrou-se e ele aproveitou a oportunidade para lhe dar uma joelhada no nariz. Lottie tapou a cara com o impacto, perturbada em como Jamie conseguia ser violento sem se esforçar. Então, antes de Saskia conseguir endireitar-se, Jamie mergulhou levemente no ar como se fosse uma pena. Levantando o joelho, rodou o corpo com facilidade para pontapear com força a cabeça de Saskia antes de aterrar no chão e tirar uma arma do casaco. Era claramente um golpe que podia ser letal se Saskia não tivesse conseguido levantar o braço numa última tentativa de defesa.
Saskia caiu de joelhos e lentamente levantou a cabeça para ver o cano da arma; tinha perdido toda a sua valentia. Olhou para Jamie, louca e sangrenta. Riu, mas o riso soou mais como um gemido. O som fez Lottie estremecer.
– És um perfeito partisan, não és?
Saía-lhe sangue da boca enquanto falava e ela cuspiu para o chão como se fosse uma serpente a cuspir veneno.
– Perdeste, Saskia – disse Jamie friamente, com o rosto tranquilo enquanto o vento gelado soprava em redor deles.
Saskia voltou a rir, e o som transformou-se numa pieira sibilante. Lottie encolheu-se, mas Jamie permaneceu inalterado, apontando a arma a Saksia sem hesitar.
– Não perdi nada – cacarejou ela. – Encontrei-me há muitos anos. Tu é que andas perdido.
Jamie não disse nada e não havia nenhum sinal de que o frio gélido tivesse efeito nele.
– Podias ver-te livre deles – continuou Saskia. – Podias usar o teu treino para lutar por uma causa justa em vez de o desperdiçares nestes tolos arrogantes.
Sob a luz da Lua encoberta, Lottie teve a certeza de ver lágrimas formarem-se nos olhos de Saskia.
– Eles não querem saber de nós. Somos apenas instrumentos para eles; toda a gente é um instrumento para eles. Nunca nos vão deixar viver como queremos. – Sakia estendeu uma mão desesperada. – Junta-te a nós.
Lottie susteve a respiração, sentiu o vento uivando entre eles, enquanto se sentava sem poder fazer nada na carrinha, sem saber no que Jamie pensava. O coração acelerou quando ele abriu a boca para falar e ela julgou ver a sua mão estremecer por um segundo.
Antes de Jamie poder responder, ouviu-se uma voz.
– Põe as mãos no ar de modo a que eu as possa ver.
Acenderam-se luzes em redor deles, tão fortes que quase cegaram Lottie, ao mesmo tempo que vinte ou mais figuras vestidas de preto os rodearam. Agarraram em Saskia e algemaram-na de imediato, empurrando-a contra a carrinha.
Cuidadosamente, Jamie pousou a arma no chão e sentou-se na carrinha ao lado de Lottie, nada afetado pelo cerco repentino, como se soubesse sempre que eles apareceriam.
*
Foram todos levados para a entrada do palácio e Lottie viu uma das figuras negras tirar a proteção da cabeça, revelando uma face desgastada com uma enorme cicatriz. O homem acenou a Jamie, que respondeu com uma saudação e este fez-lhe uma vénia.
Alguém soltou as mãos de Lottie e a envolveu num cobertor prateado. Tudo se desvaneceu num borrão quente e confuso de perguntas e vozes ansiosas. Jamie e Ellie afastaram os seus interrogadores e juntaram-se a Lottie.
– Estás bem? Estás ferida? Alguma de vocês… Ellie, o teu lábio! – Jamie andava louco à volta delas de uma maneira que não parecia nada dele.
Ellie abanou a cabeça, sem prestar realmente atenção, e afastou-o para agarrar Lottie e apertá-la num profundo abraço.
– Lottie! Oh, meu Deus, lamento tanto! Lamento tanto, tanto! – Ellie repetia as palavras enquanto a abraçava, mas Lottie foi distraída pelo que conseguia ver sobre o ombro dela.
Na porta do palácio, parada e atenta, estava Anastacia. Não olhava para Lottie, Ellie ou Jamie. Os seus olhos estavam postos em Saskia; no seu rosto havia um rasto de humidade, obscurecido pelo cabelo castanho e o vestido esvoaçava em redor dela formando uma chama vermelha profunda.
Saskia foi levada até Anastacia. Os seus guardas pararam junto de Anastacia e uma das figuras curvou-se.
– Vamos levá-la para a interrogar, minha senhora. O seu pai também será informado.
Anastacia não respondeu, limitou-se a olhar para Saskia com um fogo ardente nos olhos.
O rosto da partisan passou de raiva a algo semelhante a determinação. Começaram novamente a puxá-la e Saskia gritou:
– Ani, eu ia voltar para ti. Ani!
Mas Anastacia nem se voltou, enquanto a sua partisan era arrastada dali para fora. Cerrou os punhos com tanta força que até os nós dos dedos ficaram brancos. As lágrimas caíram numa onda incontrolável de tristeza. Não eram as lágrimas de uma jovem rapariga chocada; era algo mais.
A mente de Lottie recordou a fotografia das duas em Paris. E, de repente, percebeu e não conseguia acreditar que não tivesse entendido antes.
Elas estavam apaixonadas.