PARTE I

Nas ruas



Parti para o Afeganistão depois que os bombardeios cessaram. De algum modo me sentia obrigada a tentar ajudar a recolher o que sobrara. Eu era uma nova-iorquina que sempre vivera no centro da cidade e, por um bom tempo após a queda das torres, experimentara momentos em que parecia ter perdido o rumo. Virava uma esquina e me sentia perdida. Eu precisava parar para olhar ao redor e pensar por um minuto: “qual é o caminho de casa?”, como se, durante todos esses anos, eu tivesse dependido de uma percepção subliminar da massa das torres atrás de mim ou, talvez, de sua sombra sobre meus ombros para poder me orientar e encontrar o caminho certo. Eu tinha visto George W. Bush vir à cidade para pavonear-se e discursar entre os destroços e, enquanto eu o assistia arrastar para a violência o país em choque, minha tristeza se transformava em raiva e em uma decepção profunda que até agora não me deixaram. Com certeza os Estados Unidos são capazes de uma ação mais criativa do que bombardear um país pequeno, indefeso, pré-destruído do outro lado do mundo, pelo menos era nisso que eu acreditava. A morte de 4 mil civis em Cabul não serviu de consolo para a morte de milhares de todo o mundo, nas torres destruídas na cidade que, por tanto tempo, havia sido meu lar.1 Pensei que também os EUA tinham perdido o rumo. Foi então que parti.

Cheguei a Cabul de avião, como a maioria dos viajantes estrangeiros, uma vez que as estradas no Afeganistão não recomendam a viagem por terra. Foi em dezembro de 2002, mais ou menos um ano depois que os EUA desistiram de bombardear o interior na tentativa de desentocar a Al-Qaeda das montanhas em que tinha se enfurnado. Em retrospectiva, os bombardeios de alta altitude certamente não eram a melhor maneira de se atacar alguns homenzinhos barbudos lá embaixo — uma prática que Colin Powell chamou de “bombardeie e reze” —, mas destruíram o país e acabaram com as estradas.2 Elas já estavam em ruínas depois de vinte e três anos de guerra — os afegãos contra os soviéticos, depois os afegãos entre si. Os americanos reclamaram que, quando chegaram em busca de Osama bin Laden, um mês após 11 de setembro de 2001, já não havia mais bons alvos para bombardear mas eles bombardearam assim mesmo. Um ano, depois da guerra terminar, algumas das estradas principais ainda estavam intransitáveis, enquanto outras, pontilhadas pelas crateras deixadas pelas bombas, estavam tão desgastadas que se podiam ver as pedras sob o asfalto. Carcaças enferrujadas de tanques soviéticos e veículos blindados de ponta-cabeça jaziam ao lado da estrada como dinossauros mortos. As pontes haviam sido destruídas e algumas haviam sido substituídas por estruturas provisórias que se espalhavam pela água como balsas. Havia minas terrestres por todo o lado, mais minas por quilômetro quadrado do que em qualquer outro lugar da Terra. Os motoristas de caminhão se afastavam alguns passos da estrada para fazer xixi e voavam em nuvens de pó. Assim, o jeito era viajar de avião.

Em 2002, a Ariana Afghan Airlines era a única companhia comercial internacional capaz de me levar até Cabul, mas ela operava com uma espontaneidade displicente desconhecida das companhias que vendem suas passagens com antecedência e para voos programados. A menos que você tenha amigos influentes ou dinheiro para “presentes”, o jeito de se conseguir embarcar em um voo da Ariana é ir até Dubai e Islamabad e perguntar por lá. Eles estavam fazendo o melhor possível, supus, considerando-se que apenas alguns meses antes, o estrago feito pelos bombardeios americanos havia tornado inoperante a frota da Ariana estacionada no aeroporto de Cabul. Voei para Dubai no meio da noite e fiquei andando pelo terminal, buscando aqui e ali para ver se encontrava um balcão ou escritório da Ariana. Nada. Uma faxineira do banheiro das mulheres — uma pequenina senhora do Sri Lanka, de pele escura, chamada Gloria — levou-me até um café no lobby do Terminal 2. Sentamos para conversar e ela se pôs a falar sobre as boas condições de trabalho em Dubai. Os governantes ricos do Emirado, disse, respeitam a classe trabalhadora e cuidam dela. Ela já trabalhava no banheiro feminino havia nove anos. O local estava bem limpo. O trabalho não era muito difícil. O salário era bom e ela tinha direito a quinze dias de licença médica, além de férias remuneradas. Ela ganhara o suficiente para comprar uma casa perto da praia e me convidou para ficar lá, caso o voo não desse certo. Eu estava quase mudando meus planos quando ela me mostrou um jovem que vinha correndo na direção do café, carregando uma grande mala preta. Vestia calças pretas e camisa branca, como um garçom do Ocidente. “É ele”, Gloria me disse. “É o homem das passagens.”

Ele abriu a mala em uma mesa vizinha e começou a emitir, à mão, as passagens. Pagamento só em dinheiro, como se mesmo tendo um avião na pista e passagens vendidas aos passageiros, a companhia tivesse de deixar a cidade rapidamente. “Cabul”, eu disse, entregando a ele 185 dólares. “Cabul”, repetiu ele, emitindo a passagem. Quando terminou de atender a mim e a um bando de homens vestindo perahan-o tomban — traje típico do homem afegão, composto de uma túnica comprida e calças largas —, enfiou o dinheiro na mala e partiu apressadamente. Aguardamos mais algumas horas, acompanhados de outros passageiros bem relacionados o bastante para conseguir passagens com antecedência. Então, alguém em um portão de entrada gritou “Cabul”, e disparamos em sua direção, correndo, com medo de sermos deixados para trás. Os homens empurravam as mulheres e se acotovelavam na tentativa de embarcar. Segui ao lado de duas ou três mulheres ocidentais e logo deparamos com um ônibus cujos assentos já haviam sido ocupados pelos homens. Quando o ônibus chegou ao avião, os homens levantaram-se subitamente, abriram caminho entre as mulheres e dispararam para o corredor de entrada. “É a cultura local”, disse uma jovem britânica ao meu lado, ao ver a expressão em meu rosto. “Os homens primeiro.” Ela estava retornando de uma licença de seu trabalho em um programa de ajuda das Nações Unidas no Afeganistão. “Espere até ver os aeroportos afegãos”, disse. “Eles colocam as mulheres em uma salinha e não as deixam sair até que os homens estejam confortavelmente instalados no avião.”

O avião era velho — uma doação da Índia —, praticamente uma carcaça, e não estava cheio. Não havia tela para filmes, nem revistas de capas reluzentes, nem produtos de duty-free. A tripulação era toda composta de homens, exceto por uma jovem que andava pelo corredor carregando uma chaleira de latão. Ela usava um lenço rosa-claro sobre o rosto e educadamente desviava os olhos quando se dirigia aos passageiros: “Chá?”. O avião deixou Dubai para trás e atravessou o Golfo. Mais tarde, sobrevoamos o Irã, onde montanhas escuras erguiam-se em massas compactas, como fortalezas. O piloto anunciou que havia adentrado o espaço aéreo afegão. Os passageiros aplaudiram. O deserto ondulado lá embaixo era escuro, pardo e ameaçador, sem nenhum sinal de vilarejos, nem de estradas. Desolação. Então surgiu um rio e depois campos e alguns terrenos cercados de muros — sinais de vida, finalmente —, à medida que o terreno se erguia em direção a um horizonte branco de neve e gelo. O Hindu Kush. Depois, sobrevoamos as montanhas — anônimas, sem árvores —, não os picos pitorescos dos cartões-postais da Suíça, mas um emaranhado caótico de rochas entrecortadas, como se uma grande extensão da superfície tivesse jorrado de dentro da Terra. Talvez como homens das cavernas contra-atacando. Finalmente o avião ultrapassou as montanhas e, fazendo uma grande curva, adentrou uma bacia ampla e profunda que se estendia a nossa frente, pálida à luz do sol quente e do ar rarefeito. Pairando sobre o centro dessa bacia, presa por uma cadeia de montanhas, via-se uma massa de neblina e fumaça, densa e opaca; uma mistura de fios retorcidos de fuligem oleosa e fumaça, como um grande bombril enegrecido pela sujeira das panelas. Aqui e ali a massa se esgarçava e permitia que se vissem aspectos da cidade lá embaixo; telhados planos, ruas de terra, um forte em ruínas. Então o avião mergulhou nessa massa e a luz diminuiu.

Fiquei indisposta imediatamente. Todo mundo fica. Não é apenas a altitude. É um tipo de ritual de iniciação para recém-chegados de terras mais afortunadas que podem desfrutar de luxos como gasolina sem chumbo e controle de poluição. O aeroporto fede a petroquímicos. Fora de lá o cheiro é o mesmo, e, à medida que nosso carro se aproxima da cidade, meu nariz vai ficando congestionado por causa da poeira. Respirar passa a ser um grande esforço e, mais tarde, uma luta. Em poucos dias meu peito está machucado e dolorido do esforço de manter-me viva, e minha cabeça dói o tempo todo. Eu invejo os afegãos com seus impressionantes e práticos narizes aquilinos, filtros de ar naturais de povos que vivem em terras áridas, em qualquer parte do mundo. É deprimente perceber que gente como eu, com narizes pequenos e desprezíveis, inadequados para viver nesta altitude, com o ar seco e empoeirado, foi descartada da população local, ao longo de gerações, pela seleção natural. E agora sou eu que estou sendo descartada, sufocada não apenas por doenças ocasionais, mas por forças inexoráveis que me encontram despreparada. Sob tal pressão, minha respiração fica ofegante. Meu nariz escorre, ele clama por piedade e atenção. Algumas semanas mais tarde, em encontros de “internacionais” — como são chamados os trabalhadores de agências humanitárias, diplomatas, contrabandistas e espiões ocidentais —, eu detecto o lenço de papel revelador, amassado na palma da mão ou enfiado na manga dos trajes dos recém-chegados. Alguns nunca estão bem. Parecem estar sempre sofrendo, com os olhos semicerrados por causa do pó e da luz ofuscante, com os narizes escorrendo, os lenços sempre à mão. Eu sou do grupo dos felizardos que, de alguma forma, contrariando todas as expectativas, se adaptam ao novo ambiente; como se fosse um peixe que aprende a viver na terra, eu finalmente desenvolvo a capacidade de respirar no pó.

Antes dos russos invadirem o Afeganistão em 1979, um casal de fotógrafos franceses, Roland e Sabrina Michaud, perambulou pelo país durante quatorze anos, documentando a terra e o povo. Hoje é possível folhear as páginas de Afghanistan: The Land that Was (Afeganistão: a Terra que Era) e ver uma fotografia panorâmica de Cabul, tirada em março de 1968 do alto do Bala Hissar (o Forte Alto) e exibida em página dupla. A legenda dá a seguinte descrição: “A cidade se espalha ao redor do rio Cabul. Na área ao sul da Pul-i Khesti (Ponte de Pedra), mesquitas e mercados se alternam com labirintos de ruas estreitas cortadas por uma grande avenida comercial, a Jada-e-Maiwand”.3 Lá está o rio, largo e profundo, ziguezagueando entre as páginas. Em primeiro plano, vê-se um labirinto de pequenas casas cor de barro, enquanto a ampla avenida, para além do bairro comercial, é ladeada por prédios de três e quatro andares, com as fachadas pintadas em tons de azul, ferrugem e creme. O ar é tão limpo que se podem contar as janelas das casinhas, discernir quase 20 carros — verdes, brancos, pretos — e meia dúzia de ônibus nas ruas; podem-se ver as pessoas com roupas escuras andando na orla do rio e até mesmo avistar pequenos vilarejos amontoados, bem distantes, fora dos limites da cidade. Podem-se identificar alguns edifícios que ainda sobrevivem em Cabul — a mesquita Pul-i Khesti, o mausoléu de Timur Shah, a mesquita Shah-do-Shamshira —, mas hoje não seria possível tirar a mesma foto. Mesmo em um dia favorável e com o melhor dos equipamentos, ela sairia borrada e suja, como se tirada através de lentes de fumaça e poeira.

Cabul no inverno é da cor da poeira, embora a poeira não tenha cor alguma. Ela é formada de partículas tênues de antigas montanhas pedregosas trazidas pelo vento e espalhadas pela cidade como se fossem grãos de farinha. Cobre as ruas e flutua pelas calçadas, onde se junta em pequenos montes e buracos. A chuva e a neve derretida a transformam em lama. O sol das montanhas a cozinha. As rodas das carroças a destroem. Os ventos a levantam e espalham por toda parte; pelas casas de barro e pelos muros de barro que as circundam, pela grama e pelas árvores mortas do parque, pelas vitrines das lojas e pelo letreiro quebrado do cinema, pelos xales pardos dos homens nas ruas, e pelos rostos das crianças. O pó enche o ar e o torna denso, tirando de vista as montanhas ao redor. Ele enche os pulmões, comprime o peito, entra nos olhos como grãos de areia, de tal forma que sempre se olha para essa paisagem parda e obscura com os olhos cheios de algo que parece lágrima.

A cidade se ergue solitária no ar rarefeito, cercada de montanhas. Algumas pequenas plantações se intrometem na área urbana, espalhando as casas em suas encostas mais baixas; e o leito do rio Cabul, esvaziado pela longa seca, serpenteia entre elas para se contorcer no coração da cidade. O sol se põe atrás da cadeia do Paghman, a oeste da cidade, e se ergue de novo dos picos chamados, de maneira vaga, de Montanhas Orientais. Durante todo o tempo que passei em Cabul, jamais encontrei um mapa decente que pudesse me indicar o nome certo das coisas. Os melhores mapas eram impressos em polonês — a versão de Cabul da piada de polonês —, mas nem eu nem ninguém que eu tenha encontrado sabia ler polonês. As encostas vizinhas são cadeias secundárias do Hindu Kush, a maciça cadeia de montanhas que se estende cerca de 1.130 quilômetros para o leste pelo coração do Afeganistão, elevando-se gradativamente até culminar nos picos do Karakorum e do Himalaia. Para os habitantes de Cabul, a cidade protegida por uma bacia ampla e rasa, a cerca de 1.830 metros de altura, parece ser o centro de tudo.

Na verdade, fica no caminho de tudo. Uma estrada leva para o norte, sobre o Hindu Kush, para as estepes do Turquistão, na Ásia Central, estendendo-se até a Rússia. Outra desce para o sul em direção a Kandahar e para oeste através do deserto, em direção a Herat e ao Irã. Outra vai para o leste, seguindo o antigo curso do rio Cabul, onde ele mergulha entre as paredes de rocha pura da garganta do Tangi Gharu e corre em direção ao Paquistão e ao subcontinente indiano. Por essas rotas sai o comércio e entram os problemas. No limite oriental da cidade, sobre um promontório rochoso, estão as ruínas do velho Bala Hissar, demolido há mais de um século por tropas britânicas para vingar o assassinato de um enviado britânico. Como recompensa pelos serviços prestados, o general Frederick Roberts tornou-se Lorde Roberts de Kandahar e foi um herói tão famoso em seu país que a inscrição de seu busto, mais tarde exibido na catedral de St. Paul’s, dizia simplesmente “Roberts”. As velhas muralhas de pedra que outrora protegeram o forte ainda se erguem sobre o rio, dominando a vista do longo caminho até a garganta em que as águas somem na queda íngreme. Elas lembram um tempo de vigilância, em que Cabul ainda tinha algum modo de se proteger, quando ainda tinha algum poder.

As muralhas datam no mínimo do século V, do tempo dos heftalitas, dos hunos brancos, que cruzaram para o sul vindos da Ásia Central e destruíram a grande civilização dos kushans. Em seus dias de glória no século II, o império kushan explorava sua fabulosa localização a meio caminho da rota de caravanas para a Ásia — conhecida como Rota da Seda — para conquistar riqueza e poder político, negociando com os Césares em Roma e com os imperadores Han na China. Naquela época, o grande rei Kanishka, soberano dos kushans, mantinha duas capitais: um retiro de inverno a leste, em Peshawar, no atual Paquistão, e alojamentos de verão em Kapisa, bem ao norte de Cabul, próxima da moderna base militar em Bagram, construída pelos soviéticos e hoje ocupada por 20 mil americanos. Arqueólogos franceses que trabalhavam em Kapisa em 1939 desenterraram um enorme tesouro kushan amealhado a partir do comércio: pilhas de fino marfim da Índia, laca da China, bronzes de Roma e baixos-relevos e vidros da Alexandria. Após a morte do rei Kanishka, a luta pelo poder trouxe a guerra civil, ao mesmo tempo que desenvolvimentos em Roma e na China prejudicaram o comércio; não tardou muito para que os decadentes kushans se vissem submetidos à autoridade do império sasaniano da Pérsia (hoje, Irã), a oeste. Depois vieram os ferozes cavaleiros heftalitas, que construíram as grandes muralhas de Bala Hissar, em Cabul, fortes e grossas, para se protegerem dos invasores que eles anteviam. Acreditava-se que os tesouros dos kushans, que durante muito tempo ficaram expostos no Museu Nacional de Cabul, tivessem se perdido ou sido destruídos nas guerras recentes. Entretanto, eles reapareceram após a queda do Talibã e a invasão americana de 2001. Funcionários do museu os haviam escondido.

Aprendi a maior parte dessa história antiga lendo An Historical Guide to Afghanistan (Um Guia Histórico do Afeganistão), obra localmente famosa escrita por Nancy Hatch Dupree e que foi publicada em Cabul em 1970, pela Organização Afegã de Turismo. A autora já era conhecida na Ásia por seu trabalho na área de Educação e junto a comunidades rurais, quando se casou com Louis Dupree, o mais importante antropólogo que trabalhou no Afeganistão, nas décadas de 1960 e 1970, e renomado cronista do passado afegão. Junto com o marido, ela viajou para regiões remotas do país e, em diferentes períodos, viveu meses em vilarejos obscuros, próximos a escavações arqueológicas em que fragmentos de vasos pré-históricos eram retirados da terra. Foi assim que ela aprendeu quase tudo o que há para saber sobre o passado e o presente desse pequeno pedaço do planeta — mais ou menos do tamanho do Texas — que veio a ser chamado de Afeganistão. Como ela deve ter adorado esse tempo, essa mulher que amava aventuras e que tinha uma propensão acadêmica, maravilhada pelas novas descobertas, sentada à noite, com o marido, conversando sob as estrelas. Eu não consigo me lembrar de tudo, das dinastias — os ghaznavidas, os góridas, os mongóis, os timuridas, os mogules, os safávidas, os durranis —, suas sucessivas ascensão e queda alterando os centros de poder, aqui e ali, através do mapa da Ásia Central e do Oriente Médio, expandindo impérios e o próprio mapa para além dos antigos limites do mundo apenas para ver esse mesmo mapa reduzido novamente, à medida que o poder se fragmentava nas guerras entre famílias ou se esfacelava sob as patas de cavalos desconhecidos. Durante todos esses séculos, o que chamamos de Afeganistão jamais foi uma nação de fato, mas apenas um pedaço da paisagem ou, antes, esparsos vales de terra habitável entre desertos e montanhas intransponíveis, como um tabuleiro de xadrez em que jogos políticos eram disputados por forças que chegavam de longe, destruíam o lugar e seguiam adiante. Ninguém sabia de qual direção viria a próxima onda.

O guia segue as estradas afegãs pelas quais, há muito tempo, viajaram Alexandre, o Grande, Gêngis Khan e Marco Pólo, esse último, felizmente, apenas a passeio. A história toda se parece com a história dos kushans, que, na verdade, também vieram de outro lugar, expulsos de suas pastagens ao longo da fronteira chinesa e que, nômades, mudavam a sede do governo do Afeganistão para o Paquistão e vice-versa, de acordo com as estações. Isso aconteceu até que toda essa aventura implodisse em guerra civil. A história toda se parece, também, com eventos recentes. Está repleta de ressonâncias sinistras.

Como esta: “Indo para o sul, cobrindo 75 milhas em dois dias, ele rapidamente dominou...os rebeldes (em Herat) e prosseguiu... através do Hilmand e, daí, avançou incansavelmente para... Kandahar e Ghazni, depois para... Kabul-Charikar, até o Vale do Panjsher e através do Passo Khawak até... Kunduz. As duas principais cidades... Tashkurghan e... Balkh, renderam-se sem resistência”.4 Essa campanha avassaladora poderia ter sido empreendida bem recentemente pelo brilhante comandante mujahidin Ahmad Shah Massoud ou pelos conquistadores talibãs, mas, na realidade, foi liderada por Alexandre, o Grande, da Macedônia, na primavera de 329 a.C. A descrição de outra dinastia posterior, a de que eles “representavam a lei e a ordem, a ortodoxia do Islã e o retorno às tradições culturais”, também poderia se referir ao Talibã, mas diz respeito aos samanidas, que reinavam ao norte do Afeganistão, na cidade de Balkh, na virada do século X.5

Depois que os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979, não houve mais guias. Assim, quando a comunidade humanitária internacional se expandiu após a queda do Talibã, um livreiro local comprou o estoque do livro de Nancy Hatch Dupree e colocou-o de novo à venda. Ainda era indispensável, embora tivesse se tornado um livro sobre uma cidade-fantasma. Muitos dos locais que a obra descrevia haviam sido destruídos. No verão de 2002, dois funcionários de organizações humanitárias redigiram uma brochura de 16 páginas contendo informações essenciais para os estrangeiros, deram-lhe o título de A Survival Guide to Kabul (Um Guia de Sobrevivência em Cabul) e pediram aos garotos que ven­diam jornais nas ruas que o distri­buíssem. Os garotos ficavam com o dinheiro das vendas. Em 2003, a brochura já havia sido am­pliada, ganhado uma capa brilhante e se transformado em Kabul: The ­Bradt Mini Guide (Cabul: o Miniguia Bradt). Uma nova se­ção, sobre pontos turísticos, começava assim: “Há muito o que ver na cidade, embora a maior parte dela esteja totalmente destruída”.6 Mas o guia Dupree ainda é necessário. Você perambula pelas ruínas de Cabul, com a sua velha cópia embolorada nas mãos, examinando as ilustrações em preto e branco das coisas como costumavam existir nos velhos tempos, quando havia paz.

Após os bombardeios, empresários emergentes, motoristas de caminhão, comerciantes, contrabandistas, vendedores de ópio, traficantes e outros habitantes locais e exilados repatriados, que também haviam ficado ricos da noite para o dia, começaram a construir novamente entre as ruínas de Cabul, de modo que já em 2003 a grande extensão de escombros se via pontuada, aqui e ali, por casas novas, altas, adornadas por curvas, colunas e escadas em espiral, decoradas com azulejos roxos, verdes e laranja, como castelos exóticos em algum parque temático tropical. Esse estilo é conhecido localmente como “Palácio Paquistanês”, embora tenha supostamente se originado nos estados do Golfo, entre os traficantes de drogas que precisavam lavar dinheiro e tinham tendência à ostentação doméstica. Em Cabul, os palácios atraem a atenção, alardeiam a riqueza de seus donos e obscurecem os escombros cor de barro, que, de tão familiares aos habitantes da cidade, raramente são notados. Pode-se andar de carro entre os escombros, como jornalistas estrangeiros costumavam fazer frequentemente antes que o Iraque roubasse o lugar do Afeganistão nas manchetes, quase sem se perceber que a mente vai ficando entorpecida. Eles ainda estão lá — os prédios destruídos que apareceram nas fotos dos jornais e na TV — como pano de fundo para repórteres com coletes militares que não conseguiam encontrar palavras para descrever o que viam naquela cidade arrasada, que, para eles, parecia tão desolada quanto a lua. “Surreal” era uma palavra muito usada. Comparavam a devastação de Cabul à de Dresden após os bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Não tinham testemunhado pessoalmente a destruição de Dresden, claro, mas a possibilidade de situar, de alguma forma, essa destruição catastrófica, vendo-a como algo familiar, bastante natural na história humana, como algo que simplesmente acontece na guerra, deve tê-los feito sentir-se ligeiramente melhor.

No que diz respeito às ruínas, as de Cabul não são particularmente dramáticas — não como o emaranhado de aço retorcido e pedaços de concreto que um dia foram o World Trade Center. Cabul não era feita de aço e concreto, mas sobretudo de tijolos de barro. Assim, as ruínas da cidade são esqueletos secos, como o do prédio que abrigava o Departamento de Trânsito: pisos e telhado desmoronados, empilhados como panquecas sobre finos pilares de pedra que se projetam, retorcidos, no ar. Ou fachadas fragmentadas de estabelecimentos comerciais, quarteirões e mais quarteirões de vitrines que dão para o nada. No que era antes o melhor cinema da cidade, a escada de ferro circular ainda resiste, visível através das paredes destruídas pelas bombas. Em um antigo instituto de formação de professores, o telhado caído cobre a entrada. No monumental mausoléu do rei Nadir Shah, no alto de uma colina que domina a cidade, o sol brilha por entre os buracos no domo que ainda se equilibra sobre colunas perfuradas por bombas. Os sarcófagos de mármore da família real, destruídos, jazem espalhados no mato ao redor. Você nota esses detalhes, mas, depois, eles começam a ficar indistintos à medida que os escombros continuam surgindo, quarteirão após quarteirão. O entulho dos bairros destruídos ainda não foi retirado, exceto aqui e ali, quando alguém encontra dinheiro e uma razão para fazê-lo. Você dirige pelas ruas da cidade, talvez visitando pontos turísticos como um mórbido turista pós-conflito ou apenas tentando chegar a uma reunião, e vê a destruição se estendendo interminavelmente; bairros inteiros arrasados como se atingidos por algum enorme terremoto que tivesse excedido a escala Richter.

Eu morava em um bairro central de Cabul chamado Share Nau, a “Cidade Nova”. Era uma área miserável e poeirenta, nada parecida com o bairro de classe alta que outrora fora, mas a maior parte dele ainda estava intacta. Meu pequeno quarto ficava acima do escritório da Madar (“Mãe”), uma organização fundada anos antes por uma americana chamada Caroline para ajudar as viúvas de Cabul. Encontrei essa organização na Internet e me ofereci como voluntária. Caroline vivera no país, em diferentes períodos, por quarenta anos, portanto achei que ela saberia mais o que fazer do que a maioria dos voluntários potenciais. Ela fora viver em Cabul nos anos 1960 — os quase míticos “bons tempos” — como uma esposa americana e fazendo parte de uma animada comunidade de expatriados que se espalhara pela cidade, vivendo confortavelmente com empregados afegãos, cavalgando para divertir-se e fazendo tudo o que tinha vontade. Seus filhos já estavam crescidos e tinham voltado para os EUA. Seu marido também. Mas Caroline acabara se sentindo em casa nesse lugar, onde podia viver tranquilamente no limbo moral reservado às mulheres ocidentais e no qual, apesar de seus 70 anos, ainda podia fazer exatamente o que queria e, além disso, fazer o bem a outras pessoas. Ela se tornara um pouco afegã: calorosa, generosa, cabeça-dura, intransigente, combativa e totalmente destemida. Mas tornara-se também um pouco como as viúvas afegãs: vivia sozinha, o que pode explicar o porquê dela desejar tanto ajudar as viúvas de Cabul, que totalizavam cerca de 40 mil à época das batalhas entre as facções de mujahidin pelo controle da cidade, ao final de 1994. Quatro anos mais tarde, no auge do Talibã, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha estimou a legião de viúvas afegãs, espalhada pelo país, em 98 mil.7

Normalmente, uma viúva afegã e seus filhos seriam acolhidos por seus próprios parentes ou pelos parentes do marido dela, mas a guerra dizimara e espalhara as famílias. Em 1996, quando os talibãs tomaram Cabul, a difícil situação das viúvas tornou-se desesperadora. Eles decretaram que nenhuma mulher poderia sair de casa sem que estivesse acompanhada de um parente do sexo masculino, mas milhares de viúvas de guerra já não tinham parentes homens. Maridos, pais, irmãos, filhos; todos estavam mortos. Presas em suas ca­sas, as viúvas passavam fome. (Essa é a crise mostrada em Osama, o premiado filme do cineasta afegão Siddiq Barmak; uma viúva que vive com a mãe, também viúva, veste sua filha como menino — Osama — e a envia para sustentar a família.) Caroline respondera à situação com programas que ensinavam as viúvas a costurar, bordar e tecer em casa, e vendia o que essas mulheres produziam para que tivessem o que comer. Ela também abriu escolas secretas, muitas delas para garotas que o Talibã se recusava a educar. O Talibã descobriu o que ela estava fazendo. Invadiu seu escritório e prendeu seu pessoal. Como nunca tinham visto computadores antes, os membros do Talibã espancaram as funcionárias por “assistirem televisão” e as arrastaram para a prisão; quando Caroline insistiu em ser presa com elas, o Talibã a expulsou do país. Ela atravessou a fronteira para Peshawar e continuou trabalhando até que o Talibã deixou Cabul. Então Caroline voltou e descobriu que as viúvas ainda estavam lá — ainda desamparadas, ainda famintas, ainda precisando de ajuda. Ela alugou um novo escritório e retomou seu trabalho.

Eu estava em Cabul há apenas alguns dias quando Lema, a gerente do escritório afegão da Madar, pediu-me para ajudá-la a distribuir roupas velhas para os pobres. Eu não estava preparada para a longa viagem através dos escombros, nem para as casas miseráveis que visitamos, mas, como Lema me disse, tínhamos um trabalho a fazer. Alguns fiéis de igrejas americanas haviam se sensibilizado e enviado ajuda para os afegãos. Enviaram uma balsa carregada de roupas velhas para um capelão do Exército americano com instruções para que ele as distribuísse entre os “pobres bons” de Cabul; o capelão, por sua vez, trouxera o carregamento para a Madar e solicitara nossa ajuda para distribuí-lo. (Eles haviam enviado cobertores elétricos também, embora Cabul não tivesse eletricidade.) Aparentemente, o capelão não tinha tempo para executar a tarefa pessoalmente ou não sabia onde encontrar “pobres bons”. Mas as mulheres da Madar sabiam.

Fomos até Karte Se, bairro número três, onde os escombros estavam por toda a parte. Senti-me como se também tivesse sido destroçada. A essa altura, à medida que começava a recobrar o ar, eu percebia sinais de vida nas casas destruídas: algumas roupas secando em uma janela, uma chaleira em um fogareiro na rua, um tapete roto pendurado sobre uma porta destruída. As pessoas viviam nas ruínas, como muitos, ainda hoje, em casas não atingidas ou em cômodos “remendados” em prédios parcialmente atingidos. O comércio e as lojas haviam desaparecido e era difícil imaginar como aquelas pessoas conseguiam viver, mas era ali que elas se abrigavam.

O carro parou em uma rua suja bem longe da rua principal. Nasrin, gerente de pessoal da Madar, e Lema pegaram duas trouxas de roupa e seguiram pelas passagens estreitas entre as paredes de barro até chegarem a um portão de madeira que dava para um pátio. Nada crescia na terra dura; algumas galinhas magras ciscavam perto de uma velha cisterna. No fundo do pátio havia uma casa alta de tijolos de barro. Os grandes buracos das janelas foram cobertos com um plástico e a porta estava tampada com um cobertor, que foi afastado por uma mulher pequenina, enrolada em um xale, que correu em nossa direção com as mãos estendidas. Nós a seguimos, passando pelo cobertor, e adentramos um aposento repleto de tijolos caídos, subindo depois um lance de escadas até uma parte do segundo andar que ainda estava intacta. Em um canto da escada, uma pequena panela fervia sobre um fogareiro de carvão, cuidado por uma de suas noras, cujo minúsculo bebê, todo envolto em panos, estava ao lado do fogo como uma galinha pronta para ser assada. No alto da escada, outra nora apontou para uma passagem coberta por uma cortina. Tiramos nossos sapatos para entrar em um aposento comprido, onde não havia quase nada. Ali, cinco ou seis crianças se amontoavam no chão sob as pontas de uma colcha que havia sido jogada sobre uma mesa baixa para fechar o espaço debaixo dela. Mais tarde, quando a comida fosse servida, colocariam um braseiro sob a mesa coberta para aquecer a família enquanto comiam. Esse sistema — o sandeli — é o mais próximo que os afegãos chegam do aquecimento central e, mesmo antes dos carvões em brasa serem trazidos, já é um conforto imaginar o calor. Ainda assim, as crianças se esgueiraram para observar, com olhos arregalados, Lema e Nasrin fazendo no chão três pilhas de roupas e coisas de bebê, uma pilha para cada mulher.

Fiquei atrás, retraída, sentindo o frio do chão de barro subindo pelas minhas meias. O plástico na janela tremulava ao vento. Lema apontou para minha câmera digital, que me pedira para trazer, e sinalizou que era o momento de tirar algumas fotos. Orientou a mãe e as noras a se acocorarem no chão, cada qual com sua pilha de roupas velhas. As três mulheres obedeceram, com uma expressão dura no rosto. Elas puxaram a ponta do lenço sobre o rosto e olharam para a câmera com a expressão vazia daqueles que já sofreram todas as degradações. Virei-me para Lema. “Humilhante” era a palavra que eu queria, mas ela parecia estar fora de seu vocabulário em inglês.

— Você acha que elas se sentem mal? — perguntei.

— Sim — ela disse. — Tira fotos.

— Mas por quê?

— “Nós mostrar que nós dar essas coisas. Nós mostrar nós não roubar elas. Muito importante. Doadores querer ver. Tirar fotos, por favor.”

Obedeci, embora tenha tentado deixar o momento mais leve. Persuadi as crianças a aparecerem nas fotos e passei a câmera de mão em mão para que as mulheres pudessem ver as imagens de seus filhos no pequeno visor. “Onde estavam os homens?”, eu pensava com os meus botões, temerosa de perguntar. Tantos haviam desaparecido. Pedi às mulheres e às crianças que posassem para uma última foto no pátio, uma foto de toda a família, junto com Lema e Nasrin. Lema ordenou-lhes que sorrissem, e elas sorriram.

Seguimos pelo bairro destruído, subindo a encosta no sopé da montanha, e olhamos para os escombros, que se estendiam até onde a vista podia alcançar. “Gulbuddin”, disse Nasrin, à guisa de explicação. Ela se referia a Gulbuddin Hekmatyar, líder do Hizb-i Islami, o partido de islamitas radicais que ficou com a parte do leão da ajuda secreta que americanos, sauditas e paquistaneses deram à resistência afegã — os mujahidin — durante a ocupação soviética. Gulbuddin e seu partido radical — como a maioria dos muçulmanos modernos — traçavam a origem de sua ideologia à Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, movimento político fundado no Egito em 1920 por um professor primário chamado Hassan al-Banna em protesto contra a dominação imperial britânica em seu país. A Fraternidade trabalhava pacificamente para impulsionar a melhoria das condições sociais, a justiça e a causa do Islã. Os britânicos responderam com as técnicas de opressão padrão, tentando alternadamente cooptar e destruir a organização; após sua ascensão ao poder nos anos de 1950, Gamal Abdel Nasser aplicou com rigor ainda maior as táticas de cooptação e repressão. Nasser também procurou os soviéticos para obter ajuda e armas, levando os EUA a enviarem secretamente auxílio para os irmãos muçulmanos, iniciando, assim, um flerte da guerra fria com o islamismo radical que duraria até o 11 de Setembro.8

Como era previsto, a Fraternidade fortaleceu-se, e alguns de seus membros tornaram-se mais radicais. Um deles era Sayid Qutb, romancista, crítico e funcionário público de longa data do Ministério da Educação, que começara como um político moderado, apaixonado pela literatura inglesa, e se tornara o principal teórico do Islamismo radical — “o fundador do fundamentalismo sunita”.9 Assim como Mohammed Atta e seus colaboradores no 11 de Setembro, Sayid Qutb também vivera nos EUA por algum tempo. Enviado pelo Ministério da Educação para estudar na Colorado State Teachers College (hoje University of Northern Colorado), em Greeley, em 1948, fez mestrado em Educação, recusou a oportunidade de cursar o doutorado e voltou ao Egito em 1951. O que orgulhosamente chamamos de American way of life, ele achara revoltante — era guiado pelo materialismo, deformado pelo racismo, obcecado por sexo e extremamente parcial, além do razoável, no tocante a Israel.10 Nossa pomposa democracia pareceu-lhe meramente uma tentativa dos homens usurparem o papel de Deus, que é o único a ter o direito de governar. Completamente insatisfeito, Qutb voltou-se para o Islã como uma ideologia completa, “uma civilização total”, a ser defendida de todas as formas, incluindo a violência, contra inimigos internos e externos: isto é, contra os ditadores militares injustos (não-islâmicos) do Egito e contra infiéis americanos, como nós.11

Preso devido a sua posição política, escreveu cartas que foram reunidas no manifesto islâmico Signposts along the Road (Marcos ao Longo da Estrada) também traduzido para o inglês como Milestones. Todo o peso do Estado secular repressor, conforme experimentado por Qutb e seus irmãos muçulmanos na prisão, forjou seu pensamento e o exacerbou para além das posições reformistas não-violentas da Fraternidade, até mesmo para além da influente doutrina do revivalista islâmico Abul A’la Mawdudi, seu contemporâneo paquistanês, que fora o primeiro a convocar uma jihad universal — isto é, uma luta revolucionária com a finalidade de tomar o poder estatal “para o bem de toda a humanidade”.12 Qutb concordava com a convocação para uma jihad universal, mas buscou ir além do Estado e abolir sistemas e governos seculares, e encontrar “liberdade na realização do Islã na sociedade sob a autoridade de Deus”.13 Em Signposts, ele convoca islamitas de todas as partes para tomar o poder em todo o mundo muçulmano e oferece uma justificativa moral e religiosa para o uso de violência letal contra não-crentes. Assim como George W. Bush alega usar a invasão armada e a mudança de regime para “espalhar a democracia”, Qutb afirma que o Islã é obrigado a libertar as pessoas por meio da jihad armada, implementando, pela força, a liberdade humana.14

Qutb foi executado no Egito em 1966, mas seu manifesto adquirira vida própria. A essa altura, o Islã estava lutando tanto contra o comunismo como contra o capitalismo, e, em 1971, o rei Faisal da Arábia Saudita estava preocupado o suficiente para oferecer 100 milhões de dólares à Universidade Al-Azhar no Cairo, a mais antiga universidade islâmica do mundo, a fim de promover a educação islâmica. Signposts deve ter circulado entre os alunos da universidade. O manifesto logo chegou à Universidade de Cabul: o jovem Burhanuddin Rabbani — futuro presidente do Afeganistão, retornou de Al-Azhar como professor da Sharia, a lei islâmica, e o traduziu para o dari, uma variante do farsi (persa), que é uma das duas principais línguas do Afeganistão. Gulbuddin Hekmatyar leu Signposts em dari na Universidade de Cabul. Osama bin Laden estudou-o em árabe nas aulas em Jedda, onde teve como um de seus professores Mohammed, irmão de Sayid Qutb. Mohammed Atta também deve tê-lo lido.

Como aluno da Faculdade de Engenharia da Universidade de Cabul, patrocinada pelos EUA, no início dos anos de 1970, Gulbuddin Hekmatyar se destacou como ideólogo extremista, dado a impor sua fé por meio da violência. Um professor americano que lhe dava aulas nesse período, ou tentava fazê-lo, lembra que Gulbuddin atacava as alunas que apareciam no campus em trajes ocidentais. Alguns relatam que ele jogava ácido nos rostos sem véu e nas pernas daquelas que usavam saias curtas. O professor lembra ainda que era mais comum vê-lo espancar essas mulheres. “É um psicopata”, diz o professor. “Deviam tê-lo jogado na prisão naquela época.”15 Na verdade, ele foi jogado na prisão, embora por pouco tempo, no início de 1973, quando foi acusado de ter assassinado um estudante maoísta; esse teria sido o motivo de ele não ter comparecido a uma reunião de professores e estudantes que se encontraram na casa do professor Rabbani a fim de formar um shura — conselho de liderança — para o crescente movimento islamita. Rabbani e seus companheiros eram intelectuais islâmicos, e, embora muitos deles fossem gente das províncias — e não sofisticados habitantes de Cabul —, não eram fundamentalistas reacionários como os homens da geração seguinte, que formariam o Talibã. Eles conheciam bem os sistemas de pensamento ocidentais que haviam dado origem ao avançado desenvolvimento técnico do Ocidente; um grau de modernização que eles, como Sayid Qutb, ao mesmo tempo admiravam e desejavam para o mundo islâmico. Esses homens queriam construir, sob a base do Islã, um ethos político totalmente moderno — uma nova ideologia islamita capaz de participar do mundo moderno e também enfrentar o imperialismo ocidental. Quando o grupo se reuniu na casa do professor Rabanni para formalizar sua organização, posteriormente nomeada Jamiat-i Islami (Sociedade Islâmica), esse era o projeto avançado que tinha em mente.16 Contudo, colocou o sanguinário Gulbuddin à frente das atividades políticas.17

Os islamitas não eram os únicos a fazer planos. Em 17 de julho de 1973, enquanto o rei Zahir Shah estava fora do país, seu primo e ex-primeiro ministro Mohammed Daoud Khan, com o auxílio dos jovens partidos comunistas de Cabul, proclamou uma nova República do Afeganistão e nomeou-se chefe de Estado. Logo começou a prender aqueles que pareciam ameaçar seu poder, tanto os de direita como os de esquerda. Em 1974, quando ele prendeu Ghulam Muhammad Niyazi, reitor da faculdade de Sharia e principal proponente da Fraternidade Muçulmana, além de 200 de seus associados, Gulbuddin Hekmatyar fugiu para Peshawar junto com Burhanuddin Rabbani e a maioria dos outros líderes do movimento islamita. Ali Gulbuddin tinha uma clara vantagem, pois era um pashtun, membro da etnia mais numerosa e problemática dos dois lados da fronteira.18 (Rabbani, por sua vez, era um tajique, membro de uma minoria do norte.) Gulbuddin apelou para contatos pró-islâmicos e pró-pashtun no governo do Paquistão, que logo o nomeou liason, oficial para todos os partidos islâmicos afegãos exilados. E lá, em 1975, ele rompeu com a Jamiat-i Islami do professor Rabbani para fundar o Hizb-i Islami (Partido Islâmico), sua própria facção, muito mais radical.19 Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão em 1979 para salvar o autoritário regime comunista que havia substituído Daoud e os americanos aumentaram sua ajuda secreta para que os afegãos fustigassem os soviéticos, Gulbuddin e o Hizb-i Islami já eram os queridinhos do Serviço de Inteligência do Paquistão (ISI), a agência irmã por meio da qual a CIA canalizava bilhões em ajuda americana para os “guerreiros da liberdade” afegãos.20

Naquela época, ninguém suspeitava de que a resistência afegã, os mujahidin, poderia de fato vencer o exército soviético. Os americanos pareciam saber muito pouco sobre o Afeganistão, e os governos posteriores sequer tinham uma política para o país, exceto a de dificultar a vida dos soviéticos. Assim, a CIA simplesmente distribuía dinheiro e armas para o ISI, que ficava com uma taxa generosa e passava o restante para os mujahidin.21 O ISI dividia as doações entre as diversas facções, aparentemente para incentivar a competição e desencorajar a unidade afegã — o que pode ter inspirado os islamitas radicais do próprio Paquistão a se levantar —, mas Gulbuddin e o Hizb-i Islami sempre conseguiam uma fatia muito melhor. Ele também se tornou o favorito dos EUA e dos amigos íntimos dos americanos, os sauditas e Saddam Hussein.22 Usou a ajuda que recebeu deles para sabotar os outros partidos mujahidin, ao mesmo tempo em que todos lutavam contra os soviéticos; enfraqueceu especialmente seu arqui-rival, Ahmad Shah Massoud, o comandante militar da Jamiat-i Islami. Outro líder afegão disse a respeito dele: “O problema de Gulbuddin é que ele mata mais mujahidin que soviéticos”.23 Gulbuddin nunca pareceu importar-se muito com a guerra contra os soviéticos. Sua maior batalha foi contra outros pashtuns, pelo controle dos campos de papoula na província de Helmand.24 Aparentemente, ele se importava sobretudo com seu sucesso pessoal, com o aumento de sua prosperidade e com levar adiante suas próprias noções de um Islã radical.

Depois de dez anos lutando contra a resistência, os soviéticos desistiram e voltaram para casa, deixando os vários grupos de partidos mujahidin brigando para conseguir chegar a um plano de paz. Na ausência de um inimigo comum para inspirar pelo menos a ilusão ocasional de unidade, a resistência se desmantelou ao chocar-se com questões de ego, de ideologia islâmica e, especialmente, de etnia. Os pashtuns dominantes do sul e do leste (que falam sua própria língua, o pashtu), os tajiques e os usbeques do norte, e os hazaras das terras altas centrais, muçulmanos Shi’a cujas feições asiáticas, atribuídas à descendência de soldados mongóis de Gêngis Khan, fazem com que sejam a minoria mais facilmente identificável e mais universalmente perseguida — esses são apenas os grupos maiores, cada qual com suas rivalidades internas oriundas de uma estrutura subtribal, da geografia e da história. Os soviéticos deixaram o presidente títere Najibullah, antigo chefe da polícia secreta, no controle do governo; e, para dar apoio a sua presidência, entregaram a seu exército toda a artilharia pesada soviética, além de oferecer uma ajuda anual de três bilhões de dólares. O próprio presidente Najibullah estava operando uma metamorfose, tentando fazer com que seu governo fosse aceitável tanto para os partidos da resistência como para a comunidade internacional. Professando uma política de “reconciliação nacional”, ele abraçou o Islã, retirou completamente o marxismo-leninismo da plataforma do comunista Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA, em inglês) e deu ao partido um nome novo e atraente: Partido da Pátria. Ele ofereceu o cargo de ministro da Defesa a Ahmad Shah Massoud.25 A jihad contra os invasores soviéticos havia terminado. Por que os mujahidin não poderiam entregar suas armas e voltar para casa? Por que seu governo não poderia ser — de maneira devota, mas moderadamente islâmica — um bastião contra extremistas islamitas insanos como o psicopata Gulbuddin? Essas eram boas perguntas.

As respostas estavam com a CIA e com o ISI. Eles pararam de olhar para os soviéticos e concentraram-se no “pateta” que os russos haviam deixado para trás: decidiram derrubar o presidente Najibullah. O Paquistão desejava substituí-lo por seu próprio “pateta”, Gulbuddin; e os EUA, determinados a levar sua guerra anticomunista até o fim, concordaram.26 O esquema também vinha ao encontro das ambições de Gulbuddin, e ele ainda tinha bastante armamento, que sobrara da jihad, para se voltar contra Cabul. Em 1990, com a conivência do ISI, ele se juntou a Shahnawaz Tanai, secretário de Defesa do presidente Najibullah, para dar um golpe de Estado. O obstinado comunista de extrema esquerda parecia um curioso companheiro para o fanático religioso de extrema direita, mas eles tinham em comum a herança tribal dos pashtuns ghilzais em um país em que a identidade conta mais do que a ideologia. Além disso, Gulbuddin nunca foi do tipo que sacrifica uma oportunidade por um princípio. Em uma preparação para o golpe, ele tentara comprar a neutralidade do exército do presidente Najibullah, uma vez que o suborno é, com freqüên­cia, o caminho mais seguro para a vitória no Afeganistão. Para fazer isso, ele recebeu dinheiro de Osama bin Laden, que nessa época estava trabalhando em Peshawar, em colaboração com o ISI, para derrubar dois presidentes: Najibullah do Afeganistão e a presidente do próprio Paquistão, Benazir Bhutto, ambos apontados como inimigos do Islã.27 Mas, na ocasião, a maioria do exército apoiou Najibullah e o golpe fracassou. Enfurecido, Gulbuddin voltou-se mais uma vez para seus rivais da Jamiat-i Islami e assassinou 30 dirigentes do partido, incluindo alguns dos principais comandantes militares de Ahmnad Shah Massoud. Ele ainda buscava mais inimigos quando, em 1991, a ONU apareceu com um plano para o presidente Najibullah entregar o poder a um governo afegão interino, a ser escolhido em um encontro dos partidos da resistência sediado em Peshawar. Fato raro, os líderes dos partidos concordaram; exceto Gulbuddin, é claro.

Então a União Soviética se desfez, e com ela o Estado afegão. Em 1o de janeiro de 1992, com base em acordo prévio, a “defunta” União Soviética e os EUA encerraram a guerra vicária que travavam em território afegão, suspendendo toda a ajuda militar, tanto para o governo como para os mujahidin. Cessaram também os carregamentos soviéticos de alimentos e combustível para Cabul. Tudo desmoronou. Tudo o que sobrava do Afeganistão era, nas palavras do historiador Barnett Rubin, “redes de poder hiperarmadas”.28 O palco estava montado para que as sangrentas batalhas entre partidos e tribos eclodissem em uma guerra civil pelo controle da capital e do país.

Em abril de 1992, o presidente Najibullah partiu para um local desconhecido e desapareceu enquanto os líderes da resistência em Peshawar ainda negociavam entre si os planos para o governo afegão interino ao qual ele, supostamente, iria entregar o poder. Gulbuddin dirigiu-se a Cabul, mais uma vez, com o objetivo de tomá-la para si. As forças de Massoud entraram na cidade para rechaçá-lo. Massoud, que se aliara a outro exército do norte, o Junbish-i Milli-yi Islami (Movimento Islâmico Nacional) — milícia do general usbeque, Abdul Rashid Dostum —, reivindicou Cabul para os líderes da resistência do governo. O novo acordo, celebrado no dia seguinte, determinava que um conselho de líderes de todos os partidos funcionaria junto a um presidente interino. Esse posto seria ocupado, durante dois meses, pelo islamita moderado Sibghatullah Mujaddidi, seguido do professor Rabbani, que exerceria o poder por um período de quatro meses. Depois disso, um shura seria convocado para escolher um governo interino para atuar nos dezoito meses seguintes, quando haveria eleições. (Não sendo capazes de trabalhar juntos, os partidos do Peshawar haviam escolhido um sistema de governo por rodízio.) Massoud, que se recusara a reivindicar Cabul para si, foi nomeado secretário de Defesa. Em 28 de abril de 1992, membros do Conselho da Jihad Islâmica chegaram de Peshawar em uma caravana de cinzentas caminhonetes militares (fornecidas pela Arábia Saudita) para proclamar o novo Estado Islâmico do Afeganistão.29

Mas o Estado corporificado na pessoa do presidente Najibullah já havia desaparecido; e o eventual Estado islâmico dos acordos de Peshawar rapidamente se estraçalhou como resultado da luta por poder entre as quatro facções mais poderosas, que se dividiam substancialmente com base na etnia: os tajiques da Jamiat-i Islami de Rabbani e Massoud; os pashtuns do Hizb-i Islami de Gulbuddin; os usbeques da milícia Junbish de Dostum; e os hazaras Shi’a do Hizb-i Wahdat (Partido da Unidade). Eles tomaram conta de diferentes partes de Cabul e aterrorizaram seus habitantes, saqueando casas e edifícios públicos. Durante todo o verão de 1992, Gulbuddin lançou mísseis sobre a cidade, ainda tentando conquistar a capital para si. Quando chegou o momento determinado pelo acordo, o presidente em exercício, Mujaddidi, entregou seu desprestigiado cargo ao professor Rabbani, que, por sua vez, se recusou a deixá-lo. Em vez disso, convocou um shura de autoridade dúbia para ratificar a extensão de seu governo por mais dezoito meses.30 Assim, a luta continuou. Era uma guerra civil peculiar — Gulbuddin contra Rabbani e Massoud, pashtuns contra não-pa shtuns —, mas era uma guerra civil incentivada por estrangeiros (o ISI do Paquistão, os sauditas, Osama bin Laden) no vácuo criado pela saída abrupta de estrangeiros (os soviéticos e os americanos) e sujeita a infinitas variações sangrentas à medida que os comandantes mudavam de lado e vendiam seus serviços.

Antes que o ano terminasse, mais de cinco mil civis haviam morrido, e quase um milhão de habitantes de Cabul havia fugido da cidade.31

Os afegãos estavam chocados com o fato de um compatriota destruir uma cidade afegã — a capital, ainda por cima. Durante todos esses anos, os mujahidin haviam buscado lutar seguindo as regras tradicionais, mantendo as batalhas longe das cidades e das vilas, para que a vida civil pudesse prosseguir mesmo em meio à guerra. As pessoas cuidavam de seus negócios e trabalhavam em suas fazendas da melhor forma possível. Até mesmo os guerreiros mujahidin voltavam para casa a cada estação para arar, plantar e colher. Quando tinham de matar um afegão — algum informante ou colaborador do governo —, eles o faziam na rua. Nem mesmo em tempo de guerra invadiriam a casa de algum homem para realizar uma busca ou para prendê-lo, pois a casa de um homem pertence somente a ele. Entretanto, lá estava Gulbuddin, mês após mês, ano após ano, lançando mísseis contra as casas de barro de Cabul. As forças de Massoud também estavam fora de controle nos bairros da minoria hazara, estuprando, mutilando e assassinando sem piedade. Será que havia algo em toda essa ajuda estrangeira, em todos esses anos de doação de armamentos, ou será que fora a guerra incessante que mudara as regras de combate? De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 20 mil pessoas foram mortas entre abril de 1992 e dezembro de 1994, na luta que se seguiu à “libertação” de Cabul de seu governo “comunista”.32 Outras fontes estimam o total de mortos em 50 mil e afirmam que houve cerca de 150 mil feridos.33 Quase três quartos daqueles que sobreviveram tiveram de deixar seus bairros e ir para outras partes da cidade ou para os campos de refugiados de Jalalabad e Peshawar. O Estado se desintegrara e o centro urbano se estraçalhara, espalhando os cidadãos como balas de metralhadora.

Foi a vez, então, de os talibãs atacarem Cabul. Eles não vinham, como às vezes parecia, do nada. Vinham de Kandahar, ao sul, no coração do território pashtun. Afirmavam ter o direito histórico de dominar a capital e o país, uma vez que os pashtuns haviam estado no poder no Afeganistão por mais de duzentos e cinquenta anos, mas, a princípio, expunham suas razões e conquistavam adeptos com base em argumentos morais. Alguns de seus líderes haviam lutado como mujahidin, e muitos haviam sido feridos durante as longas guerras. O jornalista paquistanês Ahmed Rashid ressalta que os líderes do Talibã eram “os mais aleijados do mundo”, e um visitante que assistisse a uma reunião de seus oficiais caolhos, pernetas e sem dedos não saberia se deveria “rir ou chorar”.34 Os pashtuns de Kandahar haviam lutado contra os soviéticos e o regime de Najibullah sob a liderança de seus tradicionais anciãos tribais e nunca tinham recebido a abundância de armas e dinheiro distribuído entre os partidos ideológicos islamitas em Peshawar. Depois que o governo islâmico obteve o controle de Cabul, eles voltaram para casa, e muitos deles, que eram mulás, retornaram as suas madrassas para estudar e ensinar; mas eles não podiam escapar da anarquia das lutas internas, do banditismo, da ganância e da corrupção de comandantes mujahidin fortemente armados — chefes locais — que agiam à solta. Os chefes locais atacavam as caravanas de poderosas transportadoras paquistanesas — a chamada máfia do transporte — e destruíam seus planos de expandir suas tradicionais atividades de contrabando no Afeganistão, via Kandahar, para o Irã e a Ásia Central. A liderança mujahidin não havia conseguido trazer a paz, e as lideranças tradicionais que poderiam tê-lo feito se desfizeram; os antigos líderes foram mortos, desacreditados, expulsos ou comprados. Assim, mulás caolhos e pernetas discutiram esses assuntos e escolheram seu próprio líder: o fervoroso mulá Mohammad Omar, um veterano jihadi de 35 anos marcado por ferimentos de batalha, oriundo de uma família de camponeses sem terra, que tinha uma pequenina madrassa em um casebre de barro no vilarejo da província do Kandahar. Então, sob orientação divina, eles estabeleceram seus objetivos: “Restaurar a paz, desarmar a população, fazer valer a lei da Sharia e defender a integridade e o caráter islâmico do Afeganistão”.35 Chamavam a si mesmos de Talibã “estudantes”, pois a maioria de seus líderes era estudante.

O governo paquistanês de Benazir Bhutto tinha objetivos diferentes, mas todos ligados a este: abrir uma rota comercial segura, através do Afeganistão, para a máfia do transporte. Portanto, não foi coincidência que a primeira e surpreendente vitória do Talibã tenha se dado em um trecho de parada de caminhões. Em outubro de 1994, cerca de 200 talibãs de Kandahar tomaram Spin Baldak, na fronteira paquistanesa, das mãos da Brigada de Fronteira do Paquistão (Pakistani Frontier Corps), tomando, em seguida, um depósito de armas dos mujahidin, que guardava, entre outros tesouros, 18 mil fuzis Kalashnikov. Os talibãs agradeceram a Alá por esse butim, embora a maioria dos comentaristas dê crédito ao Paquistão pela falsa conquista; um estratagema utilizado pelo ISI para organizar, por detrás do pequeno bando de mulás fervorosos, uma maciça e moderna operação militar.36 Algumas semanas mais tarde, os talibãs resgataram um comboio de caminhões paquistaneses que fora sequestrado, enforcaram o chefe local que os capturara e, em seguida, tomaram o controle de Kandahar, a segunda maior cidade do país. Dezenas de milhares de jovens estudantes pashtuns acorreram dos campos de refugiados, dos campos de treinamento do ISI no Paquistão e das madrassas fundamentalistas financiadas pelos sauditas ao longo da fronteira para se juntar aos triunfantes talibãs. Esses jovens eram, como os descreve Ahmed Rashid, os náufragos da guerra, arremessados “na praia da história” sem memória de país, nem de clã, de família ou de vida no vilarejo, sem ocupação nem talento, sem outra educação a não ser o Corão, sem passado a não ser a guerra, sem identidade a não ser o Islã, sem contato com garotas ou mulheres, e sem nenhuma esperança a não ser a de reconquistar sua pátria para o califado islâmico.37 Os talibãs marcharam para Cabul, mas em março de 1995 Massoud os rechaçou, impondo-lhes a primeira derrota. Ele também os expulsou de Herat, cidade que abrigava o ponto extremo ocidental da rota de caminhões trans-Afeganistão. Mas, em setembro de 1995, eles a retomaram. E, então, marcharam novamente para Cabul.

Em Kandahar, o mulá Omar envergava uma veste que, segundo se dizia, pertencera ao Profeta e proclamou-se Amir-ul Mominin, ou Comandante dos Fiéis. Osama bin Laden deu-lhe três milhões de dólares para comprar a conivência dos comandantes mujahidin que estavam em seu caminho. E assim, durante dez meses, o Talibã manteve a capital sob cerco, bombardeando-a a partir do sul, exatamente como fizera Gulbuddin. Eles não eram mais guerreiros sagrados, restaurando a “paz” a uma Kandahar sem lei, mas fanáticos bem armados e bem treinados, funcionando como se fossem um exército paquistanês por procuração no Afeganistão, determinados a conquistar o país.38 O presidente Rabanni usou o tempo para construir alianças com outros líderes, incluindo Gulbuddin, na esperança de concluir um acordo de paz. Mas justamente quando parecia que ele iria obter sucesso, o Talibã, apoiado pela Arábia Saudita e pelo Paquistão (que sempre mentiram, negando ter qualquer relação com isso), realizou um ataque mais maciço e mais rápido do que qualquer outro planejado por um afegão. Gulbuddin, percebendo que seus velhos benfeitores do ISI o haviam entregue ao Talibã, fez um acordo com Rabbani, seu inimigo de longa data, para se unir ao governo, e com Massoud, para ajudar a defender Cabul. Quando chegou a hora, em setembro de 1996, tendo atraído as forças de Massoud para o sul de sua linha de defesa na cidade, os homens de Gulbuddin ficaram apenas assistindo enquanto o Talibã avançava contra elas. Percebendo a armadilha tarde demais, Massoud retirou suas forças para sua fortaleza ao norte e abandonou a cidade moribunda.39 Os talibãs entraram em Cabul, tiraram Najibullah e seu irmão do complexo da ONU em que haviam se escondido, arrastaram-nos amarrados atrás de um jipe, fuzilaram Najibullah, estrangularam seu irmão e penduraram os dois em um posto na frente do palácio presidencial, para que todos pudessem vê-los. Pela segunda vez, a cidade fora libertada.

Os habitantes de Cabul dizem que, ao deixar a cidade, Massoud acabou sentindo pena deles. Quanto a Gulbuddin, perguntam-se: “Que tipo de homem bombardeia sua própria gente?”. De pé, ao lado de Nasrin na encosta da colina que dominava a cidade, naquele dia frio de inverno, eu me perguntava que tipo de ajuda estrangeira fizera com que tais coisas fossem possíveis. Nasrin apontou para além do bairro devastado a nossa frente, indicando, ao longe, a localização das plataformas para canhões. Sua expressão era feroz. Ela tinha um jeito peculiar de juntar as sobrancelhas em uma linha negra, acentuada e longa, quando sofria, e suas lembranças frequentemente a faziam sofrer. Um dos mísseis de Gulbuddin atingira sua casa quando ela era criança, matando seu pai. Ela perdera quase toda a audição na explosão. “Gulbuddin”, eu disse, bem alto, olhando para o horizonte, para mostrar que entendera a mensagem.

Tudo sobre as guerras civis do Afeganistão — as sangrentas batalhas pelo poder, iniciadas, financiadas e prolongadas pelas potências estrangeiras — deixa o observador perplexo diante dos objetivos inexplicáveis e desconcertado pela mutabilidade das alianças. Tantos líderes. Tantos partidos. Tantas variações doutrinárias do “verdadeiro” Islã. Aqui em Cabul as linhas são claras. Havia Ahmad Shah Massoud, homem de oração e leitor de poesia, o maior dos comandantes mujahidin, líder da Aliança do Norte, “Leão do Vale de Panjshir”, inimigo mortal dos soviéticos e — inédito entre afegãos — um homem que recusara o poder quando lhe fora oferecido. Muitos reverenciavam Massoud como herói nacional e, após seu assassinato em 2001 (orquestrado por bin Laden), como um shahid, um mártir. No meio desse caos, outros o temiam e usavam sua imagem como uma espécie de talismã, um sinal de aliança que anunciava: “Estou do seu lado. Por favor, não me mate”. Em Cabul, sua foto estava em toda parte: nas vitrines, nas casas, nos vidros dos carros e nos pára-choques, no chaveirinho de plástico da chave do escritório que me deram. Os olhos intensos e profundos de Massoud dominavam a cidade de um enorme outdoor no alto da montanha perto de nosso escritório. À noite ele era iluminado, e, deitada em minha cama, eu podia ver seu rosto trágico e brilhante erguendo-se sobre a capital, como a lua. Complexidades históricas dissolvidas em uma simples proposição. Massoud era o mocinho. E, do outro lado, havia Gulbuddin.

Saímos do carro carregando trouxas de roupas velhas. A próxima casa ficava no alto de um corredor íngreme e estreito, com o chão gelado e escorregadio por causa do esgoto. Uma porta de madeira na parede dava para um pátio, de onde uma escadaria levava a um aposento superior. Tirei os sapatos e espichei-me sob a colcha que cobria a porta. Na penumbra, só conseguia discernir as formas de duas mulheres encostadas na parede. Ouvi uma voz fraca vindo do sandeli que ocupava o centro do quarto e, olhando mais de perto, vi o rosto moreno, anguloso e sem dentes de uma senhora que se encolhia ali, na colcha que cobria a mesa. Ela contou a Nasrin sobre as duas mulheres, que eram suas noras, e sobre seus filhos, que também estavam lá, encolhidos sob a mesa, e ainda sobre o filho que havia lutado ao lado de Massoud, sendo depois preso por um longo tempo e torturado pelo Talibã. “É por isso que ele agora tem cabelos grisalhos”, diz, apontando em direção à porta, onde ele estava. Nasrin e Lema separaram as roupas. Eu tirei as fotos necessárias. “O inverno mata a velha”, disse Lema, em inglês. O filho de cabelos grisalhos, alto, ereto, digno, silencioso e descalço, nos acompanhou até o carro, caminhando sobre o chão gelado.

Voltando para o escritório, paramos para comprar pão no silo. O que os afegãos chamam de silo é um imenso celeiro com vários andares e uma padaria construído na década de 1950 pelos soviéticos, durante a guerra fria, em uma campanha de ajuda estrangeira para conquistar o coração, a mente e o estômago dos afegãos, que, como depois se viu, preferiam seu próprio naan tradicional ao pesado pão “moderno”. Os soviéticos também construíram silos em outras grandes cidades, em Mazar-i Sharif e Kandahar, talvez se preparando, já àquela época, para saciar o apetite de um exército de ocupação. O silo alto e amarelo de Cabul fica em uma avenida larga, e aqui, conta Nasrin, algumas vezes os combatentes instalaram suas metralhadoras para massacrar cidadãos fugindo de ataques de mísseis. Agora, as janelas estão estilhaçadas e as paredes, cheias de buracos de bomba. Sem que Nasrin precise me dizer, eu sei. Gulbuddin. Mas em algum canto do silo arrasado alguém ainda prepara filões pesados de um pão marrom-escuro. Um contêiner metálico no pátio serve de loja, e aí escolhemos alguns pães de uma pilha sobre uma mesa improvisada. Depois, quase noite, voltamos ao escritório, em silêncio, ao longo do leito do rio seco pela estiagem e ladeado por barracas mambembes de ambulantes; atravessamos a ponte Pul-i Khesti e cruzamos o centro da cidade, passando pelo Hotel Cabul, destruído pelas bombas e fechado indefinidamente para reforma — onde, em 1979, os policiais afegãos que estavam “salvando” o americano de seus sequestradores acidentalmente o mataram —, até chegar às ruas largas e esburacadas de Share Nau. Durante todo o percurso apertei em meus braços os pães grandes, redondos, reconfortantes. No escritório, deixo o pão sobre a mesa da cozinha, subo para o meu quarto acanhado e acendo o fogareiro.

A pequena ONG para a qual eu começara a trabalhar, treinando professores de inglês de nível médio, era apenas uma dentre muitas. Algumas ONGs haviam trabalhado no Afeganistão ao longo de toda a ocupação soviética, durante as guerras civis e mesmo na época do Talibã, fornecendo alimentos, assistência médica, educação e outros serviços a cidadãos sofridos, desamparados por uma série de governos rivais. Outras, como a Madar, tinham saído da região durante o período do Talibã, por princípio ou sob coação, indo trabalhar com refugiados afegãos no Paquistão ou no Irã. Mas, com a queda do Talibã e a promessa de uma ajuda internacional maciça, as ONGs voltaram para o Afeganistão e se multiplicaram. Em 2002 havia cerca de 800 delas em Cabul. Eram 200 organizações internacionais, incluindo algumas grandes, com nomes conhecidos como CARE, Cruz Vermelha/Crescente Vermelho, Médecins Sans Frontières e o Comitê Internacional de Assistência, mas a maioria eram instituições menores nomeadas por siglas que não davam nenhuma pista sobre seu propósito ou sua função. Cerca de 600 ONGs eram organizações afegãs que dependiam da ONU e dos programas de ajuda de governos estrangeiros para obter dinheiro e assistência técnica e realizar seu trabalho.40 A ACBAR (Órgão Coordenador das Agências para Ajuda ao Afeganistão) é a organização responsável pelo controle de todas as outras agências. Ela publica uma lista de todas as ONGs, com nomes e números para contato em ordem alfabética, grossa como uma lista telefônica.

As agências da ONU e dos governos estrangeiros, ONGs internacionais e empreiteiros independentes ocupam grandes casas, os antigos lares da classe alta de Cabul, em bairros chiques como Share Nau e Wazir Akbar Khan. Diretores de projeto e consultores visitantes usam os aposentos como escritórios e moradia, colocando escrivaninhas para seus funcionários nos corredores espaçosos. Geradores enormes instalados no jardim fornecem eletricidade a computadores, impressoras, copiadoras, aparelhos de fax e carregadores de celular, vitais para o trabalho dessas agências. À medida que se vai melhorando a traiçoeira rede elétrica e que as chuvas começam a dar vida ao rio novamente, a eletricidade aparece em Cabul, mas de forma intermitente e sempre de surpresa. No inverno, aquecedores ligados a geradores mantêm quartos e corredores a uma temperatura adequada para americanos e europeus. Os afegãos que entram pela primeira vez nesses edifícios ficam surpresos, pois na sua opinião as casas não são feitas para serem superaquecidas de maneira tão artificial, muito menos os afegãos, que andam de casaco dentro de casa. Os afegãos estão habituados as suas próprias instituições, como a escola de ensino médio, onde logo comecei a lecionar: sem mesas, sem cadeiras, sem lousas, sem banheiros, sem eletricidade e sem aquecimento.

Os estrangeiros com orçamentos maiores pagam aluguéis inimagináveis pelo privilégio de ocupar as melhores casas de Cabul, o que resulta em mais senhorios despejando seus inquilinos afegãos para dar lugar a forasteiros endinheirados. Os inquilinos despejados caem para o próximo nível de moradia, e assim por diante, e esse dominó prossegue até que os inquilinos no fim da linha são obrigados a deixar suas casas para se abrigar nas ruínas ou se juntar aos desabrigados errantes da cidade. Cedo ou tarde, todo mundo tem de se mudar. Os trabalhadores colocam em risco seus empregos por saírem mais cedo do trabalho para rodar pelas imobiliárias em busca de uma nova casa. Entretanto, precisam do emprego para pagar pela moradia. É uma situação delicada. Cada nova negociação de aluguel com o senhorio força os inquilinos a pagar mais ou então a se mudar. Servidores públicos e professores, na base da pirâmide salarial, são empurrados cada vez mais longe de seus escritórios e escolas. Eles tomam ônibus pouco confiáveis para ir ao trabalho — homens no fundo, mulheres de burca empilhadas como sacos de roupa suja nos poucos assentos reservados para elas na frente — e a cada ano a viagem demora mais. Uma hora, duas horas. É só uma questão de tempo até que esses trabalhadores de colarinho branco deixem seus trabalhos essenciais nas escolas, nas universidades e nos ministérios governamentais e busquem emprego nas agências internacionais.

Os estrangeiros pagam salários altos, pelo menos para os padrões afegãos; assim, um motorista sem instrução pode ganhar mais que um professor na Universidade de Cabul, que o diretor de um hospital, que o chefe de polícia ou um ministro de Estado. O motorista que me levava todos os dias ao local onde eu lecionava, ganhava três vezes mais que os professores de ensino médio que assistiam as minhas aulas e que ficavam cada vez mais para trás no jogo da mudança de casas. Não me surpreendi quando me pediram que lhes ensinasse a escrever seu currículo no estilo ocidental. De todos os homens e mulheres instruídos que competem por empregos humildes nas agências internacionais, os mais procurados são aqueles que sabem inglês e têm familiaridade com o uso de computadores. O marido de uma de minhas alunas sabia falar inglês e deixou seu emprego administrativo no Ministério da Educação para trabalhar como motorista para a ONU. Um vice-ministro vira entregador, um diretor de escola vira tradutor; não é o trabalho que eles esperavam desenvolver na vida, para o qual se prepararam, mas pelo menos eles não têm de se mudar de casa. Felizardos, conseguem flutuar no mar da benevolência internacional — centenas de milhões de dólares em ajuda internacional prometida —, enquanto outros afundam. Administrada pela ONU, pela USAID (Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Internacional) e por diversas organizações governamentais e não-governamentais, a assistência internacional alimenta uma economia artificial, paralela, mas distante da economia da vida cotidiana afegã. O tráfico de drogas é um motor ainda mais potente a impulsionar a economia artificial, mas é um jeito local e tradicional de fazer dinheiro, não fingindo ajudar o cidadão comum. Uma parte desse dinheiro chega ao bolso dos lojistas, comerciantes e fornecedores afegãos. Uma placa em uma mercearia afegã muito frequentada por estrangeiros diz “feliz o tempo todo”. Entretanto, mesmo vivendo em meio a tanta abundância, a maioria dos afegãos está mais pobre do que nunca.

Membros do grande exército de invasores estrangeiros — peritos em ajuda a expatriados — estão sempre indo para lá e para cá. Eles rodam Cabul procurando reuniões, procurando uns aos outros, procurando uma refeição decente. Às vezes, quando o trabalho parece não chegar a parte alguma, o simples ato de rodar pela cidade parece dar sentido à vida. Para quem está sempre tendo de ir a algum lugar, Cabul oferece uma enorme frota de táxis amarelos e brancos, na maior parte velhos Toyota Corolla, alguns com o banco do motorista à esquerda e outros — só para complicar um pouco mais — à direita, muitos deles equipados com suporte para esquis por razões incompreensíveis em um país onde ninguém esquia. Mas táxis podem quebrar, e motoristas que não sabem ler instruções em inglês podem causar atrasos frustrantes. Para estrangeiros receosos há ainda a questão adicional da segurança: como saber se um táxi é mesmo um táxi? Assim, as agências internacionais dispõem de seus próprios veículos — Land Rovers brancos e Land Cruisers da Toyota são muito populares — e de uma equipe completa de motoristas, todos homens. Centenas desses veículos, ostentando belos brasões com siglas, circulam pelas ruas da capital todos os dias — ruas já lotadas de bicicletas, carroças puxadas por cavalos ou por burros, carrinhos de mão lotados de frutas e vegetais ou de roupas velhas, grandes reboques de madeira puxados por velhinhos fortes, cambistas exibindo maços de cédulas, ambulantes vendendo cartões telefônicos, mendigos pernetas em carrinhos improvisados, mulheres pedintes vestindo burcas imundas e garotos pobres brandindo jornais ou agitando latas que soltam fumaça de assa-fétida para proteger do mal a fim de obter gorjetas. As ruas em si já são ruins, cheias de buracos e pilhas de entulho e lixo. Quando neva, elas ficam escorregadias por causa do gelo ou da lama.

Organizar o tráfego nessas ruas entupidas é o trabalho da polícia de trânsito de Cabul. Cada policial enverga um lindo colete de lã, de ombros largos, e calças da cor dos cobertores do Exército, tornadas mais atraentes por um cinto da Sam Browne de vinil branco. Eles usam chapéus de vinil branco para combinar, como se fossem membros de uma fanfarra, e uma espécie de raquete branca e vermelha, apropriada, no tamanho e no formato, para jogar pingue-pongue, cada qual equipada com um grande refletor vermelho e as palavras “pare, polícia”, impressas em vermelho. Sob os termos dos acordos internacionais que dividiram a tarefa de reconstruir o Afeganistão, coube à Alemanha treinar a polícia, mas, quando cheguei, esse projeto ainda estava em andamento. A polícia estava improvisando. Os policiais agitavam suas raquetes para conduzir o fluxo em determinada direção, enquanto os veículos presos na direção contrária ficavam buzinando. Quando eles liberam os que estavam buzinando, os motoristas que acabaram de ter o trânsito impedido começam a buzinar. O barulho é incessante. Motoristas abaixavam o vidro ao passar lentamente pelos policiais para xingá-los e, vez ou outra, um guarda atingia com sua moderna raquete “pare, polícia” os dentes de algum motorista mal-educado. Mas a maioria dos guardas de trânsito parecia admiravelmente contida, até mesmo despreocupada. Eles arrastavam cadeiras e sofás para o meio das ilhas de orientação de tráfego e frequentemente podiam ser vistos descansando, relaxando, enquanto a sua volta, sem receber nenhuma atenção, rolava o caos. Com o tempo, alguns semáforos foram instalados no centro da cidade, e, de vez em quando, os policiais aumentavam a velocidade dos geradores que os faziam funcionar. Depois eles se sentavam, rindo, querendo ver o que os motoristas fariam. Parecia um tipo de vingança.

Cabul é uma cidade grande — tem pelo menos dois milhões de habitantes e está crescendo rápido com o fluxo de refugiados que retornam. Ela se espalha sobre e entre várias colinas íngremes e rochosas, e para além delas. Algumas ruas importantes ligam as diversas partes da cidade, mas muitas dessas artérias ainda estão em ruínas ou fechadas por motivo de “segurança”. Assim, circular pela cidade pode ser difícil; frequentemente, é impossível. Os motoristas tentam um caminho que parece bom e, se encontram um ponto que não conseguirão transpor, dão a volta, retornam pelo caminho por onde vieram e tentam outro. Para evitar esses retornos, que paralisam o trânsito, a polícia coloca enormes blocos de concreto no centro das ruas principais, mas os motoristas se juntam para empurrá-los para o lado, de modo que possam fazer o retorno. Do jeito que as coisas estão, podem-se passar horas rodando para lá e para cá, tentando um caminho aqui e outro ali, ou ficar preso no meio do trânsito sem nunca chegar a lugar nenhum.

Eu andava sobretudo com um homem chamado Sharif. Eu dirijo melhor que ele, mas não me é permitido dirigir. Sharif e eu estamos condenados a ser irmãos gêmeos pelo fato de o ethos nacional afegão de sexismo requerer uma presença masculina praticamente em toda a parte, principalmente atrás do volante de um carro. Aonde eu ia, Sharif ia também; e frequentemente íamos juntos a parte alguma. Eu não queria me sentar no banco de trás, que é o lugar das mulheres; sempre me sentava com Sharif na frente, para poder ver o movimento nas ruas apinhadas. Preso no meio de um engarrafamento, Sharif se reclinava, ajeitava os testículos sob seu longo perahan e colocava uma fita-cassete no toca-fitas. Orações islâmicas. Sharif é devoto. Ele também fala inglês muito bem, tendo passado um tempo como refugiado no Paquistão.

Eu gostava dele — no intervalo entre as orações, conversávamos, e ele parecia gostar de mim, embora se recusasse a acreditar que lá nos EUA eu dirigisse um caminhão. Tentando ilustrar o estranho conceito de leis de trânsito, eu disse uma vez a Sharif: “No meu país, a gente dirige em filas”. Ele respondeu: “Em seu país é muito costume estranho.” Ele preferia me contar coisas sobre Cabul. “No tempo dos talibãs”, disse, “não tinha carros. Nenhum táxi. Nada nas ruas. Agora, muitos, muitos carros”. Ao contrário da maioria dos habitantes de Cabul, Sharif acreditava que essa era uma boa mudança. Ele mesmo possuía três carros e um caminhão, todos parte do desfile diário pelas ruas de Cabul, de forma que Sharif conseguia um bom dinheiro mesmo quando estava preso em uma rotatória incontornável ou em um emaranhado de carrinhos de mão, ouvindo suas fitas de orações ou os locutores patrióticos na estação de rádio dos militares americanos.

Como às quintas de manhã, por exemplo, quando sempre ficávamos absolutamente empacados por conta da procissão dos feridos de guerra certificados que se dirigiam ao Ministério dos Mártires e dos Inválidos para receber seu pagamento semanal. De manhã bem cedinho eles vagam pelas ruas: mulheres vestindo burcas esfarrapadas, desbotadas até atingir um tom acinzentado opaco, e homens protegendo-se do frio enrolados em pattus de cor marrom-esverdea­do. Eles surgem das ruas secundárias, sozinhos ou em grupos de dois ou três, juntando-se em um desfile solene dos aleijados, dos paralíticos e dos cegos, como em uma peregrinação medieval em direção ao santuário de um santo milagreiro. Homens de uma perna só, vítimas de minas terrestres, arrastam-se apoiados nas muletas doadas pelo Crescente Vermelho. Este é o país dos homens de uma perna só. Esses, os oficialmente inválidos, arrastam seus corpos destruídos sobre o calçamento irregular das ruas destroçadas, parando o trânsito a cada esquina. Eles continuam entre as buzinas, sem buscar milagres ou cura, mas apenas uma pequena doação: aquilo com o que conseguirão viver mais uma semana. Todos os dias as minas que salpicam os acostamentos das estradas, os pomares mortos e os campos arrasados explodem e fazem mais mártires e feridos, oficialmente inválidos. A cada Naw Roz (Dia de ano-novo), milhares de habitantes de Cabul visitam um santuário na colina no meio da cidade e alguém pisa em uma mina. Naquele ano, um garoto de 18 anos perdeu as duas pernas. E, a cada semana, a procissão ao Ministério dos Mártires e dos Inválidos se torna maior e mais beligerante. Eles são os pedestres mais agressivos de Cabul.

Mas não são os únicos. Em uma desolada manhã de dezembro, quando Sharif e eu estávamos totalmente presos no engarrafamento, vi um senhor se aproximar, vindo do final da rua e caminhando em nossa direção. Era alto e ereto, belo com sua barba branca e seu lindo turbante de seda. Outro homem, de bicicleta, passou atrás de nós e foi na direção daquele senhor. No exato momento em que iriam passar um ao lado do outro, um carro deu uma guinada para o lado, forçando o ciclista a se desviar. Ele atropelou o senhor de barba branca, que bambeou, mas recuperou o equilíbrio e não caiu. Então, ele se virou rapidamente e deu um murro no queixo do ciclista, arremessando-o na rua embaixo da bicicleta. Nisso, um jovem que estava passando socou o senhor de barba branca, que caiu de costas, com as pernas para cima. O turbante de seda caiu por terra. Um guarda de trânsito, abanando sua raquete por cima da cabeça, correu por entre os carros parados e atingiu a cabeça do jovem, que cambaleou para trás, bateu com o calcanhar no meio-fio e caiu violentamente sentado. No momento seguinte, ele já estava de pé, gritando com o policial. Um quinto homem, que tinha ficado displicentemente recostado em uma parede de jardim tomando o tímido sol da manhã, avançou a passos rápidos. Ele se colocou entre o policial e o jovem com os braços estendidos, as palmas viradas para fora, separando os dois. É a pose do pacificador. É também a pose da crucificação. O senhor de barba branca levantou-se e deu uma bordoada brutal no queixo orgulhoso e desprotegido do pacificador, que voou contra a parede na qual estivera reclinado alguns minutos antes e se deixou cair sentado no chão. O senhor de barba branca lambeu os nós dos dedos, arrumou o turbante, pisou na bicicleta caída e seguiu seu caminho. Tudo terminou em segundos. Sharif ria. Mujahidin, disse. E de repente o Afeganistão, que parecera tão difícil de se compreender, começou a se revelar.

Os afegãos são guerreiros famosos. Ferozes, implacáveis, impiedosos, ousados, selvagens, brutais; esses são os adjetivos que os livros de história lhes reservam. Essa reputação parece exagerada, considerando-se quantas vezes sua terra foi invadida e suas cidades saqueadas — por Alexandre, na ida e na volta, por Gêngis Khan, por Tamerlão e por outros saqueadores menos conhecidos —, mas tudo isso é história antiga. Mais recentemente — em 1747, para ser exata —, o Afeganistão moderno começou a se formar como um tipo de confederação tribal quando um certo Ahmed Khan foi eleito xá, mais ou menos democraticamente, por uma assembléia de pashtuns. Com o nome de Ahmed Shah Durrani, ele estabeleceu a dinastia durrani, que duraria, com uma breve interrupção, até a Revolução Comunista de 1978.41 A presidência de Hamid Karzai, anunciada nos EUA como o advento da “democracia”, aos olhos dos afegãos parece, em vez disso, uma restauração dos durranis, já que Karzai vem de uma poderosa família pashtun de Kandahar do ramo dos popolzais, a linhagem do próprio Ahmed Shah Durrani. As tribos pashtuns habitavam, naquela época e hoje, sobretudo o sul e o leste do Afeganistão e, em número ainda maior, o nordeste do Paquistão, tendo sido divididas suas terras em 1897, quando Sir Mortimer Durand, então secretário de Relações Exteriores do governo da Índia, estabeleceu a fronteira notoriamente permeável que leva seu nome. Gerações de pashtuns sonharam com o estabelecimento do país unificado do Pashtunistão; muitos ainda sonham. No entanto, eles continuam sendo o maior e mais influente grupo étnico do Afeganistão — o centro de Cabul é a Praça dos Pashtuns — enquanto, do outro lado da fronteira, na província da fronteira do noroeste do Paquistão, pashtuns paquistaneses ameaçam reunir-se a seus irmãos afegãos, levando com eles uma fatia substancial do território paquistanês.42 Há pelos menos 20 — alguns dizem que esse número está mais próximo de 50 — outros grupos étnicos no Afeganistão: tajique, usbeque, hazara, turcomano, nuristani, aimaq, farsiwan, baluques, e assim por diante. Mas, durante séculos, os nomes afegão e pashtun foram utilizados indistintamente. Os afegãos são igualados aos pashtuns, e os pashtuns são durões.

O diplomata e historiador britânico Martin Ewans, que foi chefe da chancelaria em Cabul, descreve as principais características dos pushtoons como sendo “um individualismo orgulhoso e agressivo, praticado no contexto de uma sociedade familiar e tribal com hábitos predatórios, um ethos que é parte feudal e parte democrática, uma fé muçulmana inflexível e um código de conduta simples”.43 Esse código simples, duro — o pashtunwali —, os obriga a serem hospitaleiros, mesmo em relação a seus inimigos, e a oferecer abrigo para estranhos (essas prescrições, as mais generosas do pashtunwali, ajudam a explicar a recusa do Talibã em entregar seu hóspede pagante Osama bin Laden). Mas o código também obriga-os a vingar-se da menor afronta a sua honra — insultos, reais ou imaginados, a seu nome ou sua propriedade, uma categoria que inclui as mulheres. Vingança, é claro, gera vingança, de modo que lutas assassinas, vendetas e batalhas envolvendo indivíduos, famílias e clãs têm sido, há muito tempo, a matéria da vida social cotidiana dos pashtuns. O órgão político mais importante é a jirga, ou assembléia, em que cada homem tem igual direito à palavra, ou igual direito ao insulto. Os pashtuns batem-se pelo poder, entretanto têm a autoridade em tão pouca conta que descrevê-los como “ferozmente independentes” se tornou um clichê. Eles seguirão um chefe de clã ou um cã até onde isso servir a seus interesses e não mais, de forma que um líder está sempre às voltas com a tarefa de demonstrar incessantemente que merece ser seguido. Somem-se a isso as práticas de sucessão islâmicas, que distribuem a propriedade de um homem em partes iguais a seus filhos, não dando a nenhum deles uma vantagem econômica clara, e tem-se a base da democracia ou, em uma terra escarpada de recursos escassos, a base para lutas intermináveis, faccionalismo constante e “guerras fratricidas”.

No passado, praticamente a única coisa que fazia com que os pashtuns interrompessem suas querelas incessantes era o aparecimento de um inimigo externo. Nada inspira tanto a unidade pashtun quanto a necessidade de expulsar um invasor, e, dada a política global dos últimos séculos, isso geralmente dizia respeito aos britânicos. Os historiadores gostam de falar do moderno Afeganistão sob os xás durranis como um “Estado-tampão fraco”, de pouca importância, exceto a de ser uma terra-de-ninguém entre os principais contendores no jogo da política global — um pouco como a carcaça mutilada do novilho que cavaleiros poderosos lutam por possuir no esporte afegão do buzkashi. Ao norte, os czares russos cobiçavam a Ásia Central e, para além dela, a Índia britânica. O Afeganistão estava no caminho. Os britânicos, que haviam se estabelecido no subcontinente com a Companhia das Índias Orientais, respondiam com uma “política de avanço” — um pouco parecido com o agressivo “ataque preventivo” de George W. Bush — destinada a manter o Afeganistão atrelado às decisões britânicas. Durante o século XIX, emissários, espiões, aventureiros e soldados russos e britânicos dançaram para lá e para cá por décadas, naquilo que os historiadores chamam de “O Grande Jogo” e foram eles, não os afegãos, que estabeleceram as fronteiras do Afeganistão. Um emissário britânico dos primeiros tempos observou que os afegãos nem tinham um nome para seu próprio país, mas, ao final do século XIX, Amir Abdur Rahman começou a referir-se a ele como “Yaghistan”, nome traduzido às vezes por “terra dos que são livres”, às vezes por “terra dos rebeldes”.44

De sua parte, os afegãos lutavam entre si pelo direito de suceder Ahmed Shah Durrani, e os xás e cãs que o seguiram, cidade após cidade, neste setor, ou naquele. Poucos foram tão eficientes quanto Zaman Shah, um dos netos de Ahmed Shah Durrani, que conquistou o poder após a morte de seu pai em 1793, imediatamente dando ordens de prender seus mais de 20 irmãos e de cegar o mais velho. Para a maioria dos herdeiros potenciais, a batalha entre irmãos era mais confusa, mais sangrenta e mais prolongada. O que os historiadores ocidentais chamam de “anarquia” prevalente no Afeganistão; “anarquia” que algumas vezes “justificava” uma “política de avanço”, era, sobretudo, pashtuns tribais sendo pashtuns.

No início do século XIX, um líder pashtun ousado e popular chamado Dost Mohammed subiu ao poder em Cabul e gradualmente expandiu seu domínio para outras cidades e regiões do Afeganistão. Mas os russos também estavam se expandindo, fornecendo ao xá da Pérsia conselheiros militares e insistindo para que ele marchasse contra Herat e Kandahar. A ameaça russa foi enfrentada pelos britânicos. Incapazes de recrutar Dost Mohammed para servir a seus interesses, os britânicos decidiram recolocar seu próprio títere no trono de Cabul; e Dost Mohammed, como tantos outros líderes afegãos que o seguiram, se viu em meio a uma luta entre estrangeiros. Em 1838, 20 mil soldados do exército do Indus — acompanhados de 38 mil pessoas que viviam no acampamento militar, 30 mil camelos, um grande rebanho e uma matilha de cães de caça — invadiram o Afeganistão e, em agosto de 1839, já tinham recolocado em seu palácio em Cabul um pashtun rejeitado: o agora idoso Shah Shuja, que fora deposto e exilado (um irmão sortudo que escapara ao eficiente Zaman Shah). De acordo com George Eden, conde de Auckland e governador geral da Índia na ocasião, os britânicos tinham intenção não apenas de bloquear invasões persas (e russas) pelo oeste, mas também de “estabelecer uma base para a extensão e a manutenção da influência britânica em toda a Ásia Central”; mas, em um manifesto oficial, eles justificavam a invasão em termos mais elevados. Diziam que, uma vez que o novo governante tivesse sido empossado “por seus próprios súditos e adeptos” e que ele estivesse “seguro no poder, e que estivessem garantidas a independência e a integridade do Afeganistão, o exército britânico se retiraria”. O historiador Martin Ewans relata que os termos que os britânicos utilizaram para esse pronunciamento são “estranhamente semelhantes” àqueles que os soviéticos utilizariam para justificar a invasão de 1979.45 Os sovieticos também só tinham a intenção de permanecer ali poucos meses. Eles lembram os termos do governo Bush Dois, quando empossou seu próprio Shah Shuja na pessoa de Hamid Karzai.

Talvez seja óbvio demais — um golpe muito baixo — mencionar aqui o velho adágio que diz que aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la, porque todo mundo sabe que Bush, o Pequeno, não lê história, nem qualquer outra coisa, e, assim, permanece sendo a única pessoa no mundo que não sabe que aquilo que se seguiu à invasão britânica do Afeganistão em 1838 e 1839 foi a maior derrota militar em toda a história britânica. Tendo vencido a guerra, “missão cumprida”, os britânicos colocaram no poder um títere impopular. Em nome da “segurança”, eles mantiveram em Cabul uma brigada completa de soldados, logo vistos não como libertadores, mas como um exército de ocupação. Os soldados andavam como valentões pela cidade, bebiam em público, usavam e abusavam das mulheres afegãs e consumiam seus estoques de comida enquanto a maioria dos afegãos passava fome. Havia inquietação entre os afegãos e revoltas aconteciam aqui e ali, mas os britânicos seguiam determinados e otimistas a respeito do sucesso de sua nobre empreitada. Então, em novembro de 1841, Alexander Burnes, oficial da Artilharia de Bombaim e emissário especial junto ao trono afegão, foi assassinado juntamente com seu irmão por uma multidão que invadiu sua casa em Cabul. Três semanas mais tarde, durante negociações para uma trégua, insurgentes de Cabul assassinaram William Macnaghten, que, como conselheiro-sênior do governador geral da Índia, era o principal representante da coroa britânica em Cabul. Macnaghten foi decapitado e mutilado, e seu corpo foi colocado em exibição no mercado de Cabul.

Os britânicos concordaram em retirar-se, pois tinham um número muito pequeno de soldados para se defender de uma insurreição maciça. Os afegãos prometeram aos soldados, suas famílias, empregados e agregados salvo-conduto através dos desfiladeiros gelados que levavam para fora do Afeganistão e, depois, perseguiram-nos pela neve e mataram os últimos deles em um local próximo chamado Gandamak. Uma brigada de 4.500 soldados, seguida de 12 mil civis, deixou Cabul em uma manhã de janeiro. Afirma-se que três mil morreram no primeiro dia, vitimados pelas duras condições climáticas, mesmo antes dos afegãos atacarem. No quarto dia, apenas 120 soldados e quatro mil civis ainda marchavam sobre a neve. Dois dias mais tarde, havia apenas 80. Quando se voltaram para resistir, pela última vez, em Gandamak, havia 20. Conta-se que seis oficiais conseguiram escapar a cavalo de Gandamak, mas apenas um deles, gravemente ferido — o dr. William Brydon, médico do Exército —, conseguiu chegar ao forte em Jalalabad.

Conforme se soube depois, houveram outros sobreviventes; no ano seguinte, um poderoso “exército de retaliação” britânico chegou ao país para estuprar, assassinar e pilhar, retornando com mais de dois mil prisioneiros e desertores resgatados. Mas a história fica melhor quando não se sabe disso, quando você se concentra apenas no sofrimento e no terror dos ingleses vagando pela neve — o soldado jovem e bonito, a mãe abraçando seu bebê, o menininho patético agarrado à barra de sua manta — enquanto os impiedosos pashtuns abrem fogo sobre eles, alvos tão fáceis, do alto das rochas da montanha. A história fica melhor se você imagina o sofrido e corajoso Dr. Brydon sangrando profusamente, abraçado ao pescoço do cavalo agonizante ao arrastar-se até Jalalabad, sobrevivendo milagrosamente para contar o que se passou. Essa é a versão que os britânicos nunca esqueceram. Da perspectiva afegã, é claro, a história é diferente.

Quando os britânicos voltaram para dar o troco, queimaram o mercado de Cabul e arrasaram seu interior. Depois, em 1842, tendo restabelecido a reputação britânica como um poder militar temível, eles declararam o fim da guerra anglo-afegã e deixaram o país do mesmo jeito que o tinham encontrado, com Dost Mohammed de volta ao poder. Ele governou por mais vinte anos, sonhando com a unidade afegã em meio a confrontos pashtuns fratricidas que culminaram novamente em anarquia após sua morte. Tendo, aparentemente, aprendido quase nada com a experiência anterior, os britânicos iniciaram — apenas quarenta anos mais tarde — uma segunda guerra anglo-afegã, tão inútil e cara quanto a primeira. O objetivo, mais uma vez, era fazer frente aos russos e impulsionar a “influência” britânica na Ásia Central. Quando tudo terminou, em 1881, o secretário de Estado britânico descreveu para a Índia um resultado que soa sinistramente familiar: “Como resultado de duas campanhas vitoriosas, do emprego de uma força enorme e do gasto de vultosas somas, tudo o que se conseguiu até agora foi a desintegração do Estado que se desejava ver forte, amigo e independente, a possibilidade de novas e indesejáveis dificuldades..., e um Estado de anarquia em todo o resto do país”.46 Houve também uma terceira guerra anglo-afegã, em 1919, que durou só um mês. O rei afegão Amanullah havia proclamado uma jihad, exigindo independência completa da suserania britânica. Os exaustos ingleses, enfraquecidos pela Primeira Guerra Mundial, quase não opuseram resistência. Conferindo a Amanullah o que parecia ser uma vitória diplomática, eles cortaram todos os vínculos com o Afeganistão. Mas também cortaram os subsídios de que o rei precisava para fazer seu país ingressar no mundo moderno. O Afeganistão seria independente, mas continuaria pobre.

Houve outra consequência das guerras anglo-afegãs. À medida que jornalistas, políticos e historiadores britânicos contavam, várias e várias vezes, a história amarga da sangrenta retirada de Cabul, os afegãos tornavam-se maiores e mais selvagens. Na imaginação dos britânicos e, por extensão, do Ocidente, eles ganharam uma reputação duradoura como uma raça de guerreiros bárbaros e traiçoei­ros, sem escrúpulo nem piedade; habitantes de um território proibido. Um jornalista americano escreveu que “a principal reivindicação dos afegãos à fama na história, era a de serem uma passagem e uma armadilha mortal para exércitos estrangeiros invasores”.47 Os afegãos, agora amargamente desconfiados de forasteiros, isolaram-se e lutaram entre si, por vezes com uma ferocidade que confirmava a opinião que o mundo tinha a respeito deles. Cem anos se passaram antes que qualquer potência estrangeira invadisse novamente o Afeganistão, apenas para encontrar os mesmos guerreiros ferozes e engenhosos. Quando os soviéticos desistiram, depois de uma década de guerra sangrenta, e lentamente se arrastaram para o norte, novamente na direção de casa, os mujahidin afegãos da Aliança do Norte — homens de Massoud — forçaram-nos a combater pela estrada através dos picos do Passo de Salang e apanharam-nos (alvos tão fáceis) um a um.48 A essa altura, a perspectiva ocidental já havia mudado; os afegãos estavam fustigando nossos inimigos e nós estávamos do lado deles. Quando Peter Jouvenal, cinegrafista da BBC, premiado por sua cobertura das guerras no Afeganistão, abriu, tempos mais tarde, um pequeno hotel para jornalistas em Cabul (em uma casa em que, segundo se diz, Osama bin Laden visitara uma das esposas), deu-lhe, perversamente, o nome de Alojamento Gandamak.

A maioria dos repórteres ocidentais que cobriam as guerras não tinha essa visão ampla da história, mas da confortável e frustrante distância de seus quartos de hotel em Peshawar viam-se estranhamente atraídos pela notória selvageria dos guerrilheiros afegãos. Para muitos jovens jornalistas cheios de adrenalina, o ponto alto da reportagem era viajar “pelo interior do país” com os mujahidin. Contrabandeados através da fronteira com o Paquistão, confortavelmente embrulhados em seus casacos de esqui, eles viajavam com os afegãos, agora chamados de “guerreiros da liberdade”, deslocando-se à noite para não serem descobertos. Sobrecarregados de equipamentos e não habituados à altitude, eles sofriam para acompanhar os guerreiros esguios e robustos, que viajavam sem levar quase nada e caminhavam rapidamente. Alguns confessaram que os afegãos os colocavam sobre as mulas como se fossem mais um pacote da bagagem pesada. Mas, de algum modo, sua própria inabilidade em acompanhá-los — sua delicadeza e flacidez — os fazia ainda mais apaixonados por seus anfitriões sobre-humanos. Um jornalista escreveu: “Neles, vemos uma versão mais forte, mais heróica, de nós mesmos”.49 As reportagens às vezes lembram correspondências de fãs, coloridas com a glorificação homoerótica da masculinidade e, no entanto, homoerótica de um modo seguro, porque esses guerreiros idealizados, barbudos, durões, ferozes pareciam o próprio ápice da masculinidade “macho”. Quem perderia a oportunidade de andar por aí com esses garotos? Charlie Wilson, congressista texano — mulherengo, viciado em cocaína e alcoólatra — a quem se atribuía o crédito de ter extraído milhões e milhões de dólares do Congresso americano para ajuda secreta aos mujahidin, pediu como recompensa um pequeno passeio com os guerreiros da liberdade, durante o qual ele poderia disparar sozinho um lança-mísseis.50 Conforme George Crile relata em Charlie Wilson’s War (A Guerra de Charlie Wilson), esse foi o ponto alto da patética vida de Wilson, embora seja possível que seus cicerones paquistaneses, não desejando arriscar o pescoço do tolo congressista americano no Afeganistão, tenham encenado o episódio, na verdade, no Paquistão. O ISI do Paquistão usou o mesmo truque com William Casey, diretor da CIA, levando-o de jipe, no meio da noite, a um falso acampamento de mujahidin afegãos não muito distante de Islamabad.51

Assim, os afegãos, durante toda a guerra contra os soviéticos e as guerras civis que se seguiram, habilmente mantiveram sua reputação de guerreiros mais ferozes do planeta. Mas os fatos às vezes se perdem ou se distorcem nessa visão romântica. A pobreza, por exemplo. Muitos mujahidin viajavam sem levar quase nada porque as roupas do corpo eram tudo o que tinham. Eles viviam como “espartanos”, diziam os repórteres, quando, na verdade, viviam como afegãos. E o islamismo. Aqueles ferozes guerreiros da liberdade, treinados e armados com mísseis Stinger pela CIA, eram jihadis islâmicos. E pelo menos 35 mil deles não eram nem mesmo afegãos, mas voluntários vindos de 43 países muçulmanos do Oriente Médio, da África setentrional e oriental, da Ásia Central e do Extremo Oriente — argelinos e egípcios, sauditas e kuwaitianos, paquistaneses e usbeques, filipinos e uigures — ansiosos por, um dia, morrer pela fé, no Afeganistão ou em qualquer outro lugar.52

A luta afegã sempre foi sobre ideologia. Mas a política americana estava atolada na guerra fria e era distorcida — mais uma vez — pela religiosidade intransigente. Bill Casey, diretor da CIA de 1981 a 1986 e católico fervoroso, saudou os militantes islamitas como aliados naturais da Igreja Católica na batalha contra o comunismo ateu dos soviéticos.53 O ministro das Relações Exteriores da União Soviética, Eduard Shevardnadze, solicitou de George Shultz, secretário de Estado no governo Reagan, ajuda americana para conter a expansão do fundamentalismo islâmico, mas o pedido deu em nada.54 Em vez disso, durante toda a ocupação soviética, a CIA continuou treinando os jihadis islâmicos “árabe-afegãos” em campos no Paquistão, a um custo de 800 milhões de dólares.55 Ela levou seus professores paquistaneses e afegãos para campos nos EUA para aprenderem técnicas letais.56 Portanto, os árabe-afegãos importados para lutar no Afeganistão, não tinham nada a ver com os mujahidin nativos descritos por Robert D. Kaplan em seu livro Soldiers of God (Soldados de Deus) como não sendo “nem complicados, nem fanáticos”.57 Os afegãos lutavam por suas famílias, seus vilarejos, sua terra, enquanto os árabe-afegãos lutavam por uma causa. “Nós, afegãos, estávamos lutando para viver. Eles estavam lutando para morrer pelo Islã”, explicou-me um antigo mujahidin local. Afegãos moderados alertaram os EUA: “Pelo amor de Deus, vocês estão financiando seus próprios assassinos”.58 E, de fato, quase todos os líderes do Islã militante ao redor do mundo e dos mais importantes ataques terroristas que se seguiram, têm sua origem na guerra afegã.59 Mas os EUA — mais vingativos e ardilosos que qualquer pashtun e sempre se achando muito espertos — secretamente armaram a intransigente causa do anticomunismo e criaram um monstro religioso.

O homoerotismo sempre esteve muito presente, embora poucos jornalistas ocidentais relatassem as propostas recebidas de afegãos viris. Como se poderia conciliar aquilo com as noções oficiais de masculinidade militar? O que aconteceria com as verbas conseguidas por Charlie Wilson se os congressistas republicanos ficassem sabendo dessas histórias? Mas um jornalista australiano amigo meu (bem hetero) confessou-me que, quando viajava com os mujahidin, mal conseguia dormir com o barulho dos soldados transando. Contou que o comportamento dos mujahidin conferiu novo sentido às expressões “passo na montanha” e “avanço estratégico”. Ele ficava apavorado. Isso amedrontava e desmoralizava os russos também. Havia uma infinidade de histórias sobre prisioneiros de guerra russos estuprados por gangues de mujahidin viris, embora os mujahidin tenham passado ao estupro de mulheres assim que chegaram às ruas de Cabul. Também eram comuns as histórias de estupro e sodomização de meninas e meninos sequestrados, e elas são parte importante dos mitos fundadores do Talibã. Conta-se que o mulá Omar e seus homens conquistaram os habitantes de Kandahar quando salvaram um “menino dançarino” das garras de dois déspotas rivais e, depois, quando enforcaram um comandante mujahidin de Kandahar responsável pelo sequestro e estupro múltiplo de duas adolescentes.60

O estupro generalizado de mulheres não recebia muita atenção oficial, já que se acreditava que muitos dos estupradores eram homens de Massoud; naquela época — a das guerras civis —, Massoud era o herói dos jornalistas ocidentais.61Idolatrando Massoud em um documentário sobre sua vida, um cineasta francês ousou filmar apenas os pés descalços da esposa e das filhas servindo o jantar que tinham preparado. “Eles têm suas tradições”, diz, em inglês, o narrador — como se manter as mulheres trancadas fosse apenas um costume estranho e como se sua servidão fosse apenas um fato da natureza. Mas há que se considerar também que quase não há menção às mulheres durante todo o período das guerras. O jornalismo de guerra em Peshawar era, “de forma consciente”, uma atividade para machos, segundo Robert D. Kaplan, e a fronteira noroeste do Paquistão, “um posto avançado da masculinidade como o Velho Oeste, cor de terra”. Dentro do Afeganistão, Kaplan notou algumas “tendas ambulantes com pequenos buracos para os olhos”, mas outro observador informou que as mulheres “não estão nem em segundo plano... simplesmente não aparecem”.62 Assim, você pode ler livros e mais livros sobre o Afeganistão em que o termo Afghan claramente se refere apenas a “homem adulto afegão”; e muitos livros atuais de reportagens e de história, escritos por homens e considerados excelentes, não têm uma única frase sobre mulheres ou crianças.

Às vezes aqueles repórteres ocidentais que seguiam os mujahidin pareciam sofrer, inconscientemente, com a ausência de mulheres. Um viu nas montanhas o formato dos “seios de uma jovem”. Outro, ao escrever para a Harper’s, descreveu um passo de montanha que a ele pareceu uma vagina. Tomado de espasmos semelhantes, o jornalista soviético Artyom Borovik descreveu uma estrada afegã que “como uma prostituta, balança seus quadris curvilíneos para cá e para lá”.63 Mas a maioria parecia satisfeita com a companhia dos homens e a invisibilidade das mulheres. Tendo chegado de surpresa, já bem tarde da noite, a uma casa modesta em um vilarejo remoto, o autor britânico Jason Elliot registrou: “Uma lauta refeição apareceu. A mágica que permite que essas pequenas proezas aconteçam, sem interrupção aparente do ritmo das coisas — independentemente do número de convivas inesperados —, é um dos perenes e misteriosos prazeres das viagens pelo Afeganistão”.64 Que tipo de jornalista não consegue ligar esse misterioso prazer a sua causa atrás da cortina? Àquelas mulheres descalças que se encarregam, dia e noite, da hospitalidade pashtunwali que faz dos homens afegãos anfitriões tão famosos? (Resposta: o mesmo tipo de jornalista que não percebe que a verdadeira função da hospitalidade pashtunwali é a de detê-lo, de gastar seu tempo, de impedir que ele olhe o que acontece no vilarejo.) E que mulher ocidental descreveria tal hospitalidade — preparar uma “lauta refeição” para convidados inesperados no meio da noite, sem água corrente, nem eletricidade, nem geladeira, nem uma lâmpada decente, sem nem mesmo uma caixa de Minute Rice ou uma lata de feijão — como uma “pequena” proeza?

Para o nosso tempo, o homem afegão, feroz, implacável, impiedoso, selvagem e traiçoeiro, é irresistível. As ocidentais também se apaixonam por ele. Quando contei a amigas no trabalho de ajuda humanitária que eu iria para o Afeganistão, todas sorriram maliciosamente. “Consiga um bom motorista!”, disse uma delas. “O que você quer dizer com isso?”, perguntei. “Você não sabe? Meu Deus, em que planeta você vive?”. E assim eu ouvi as histórias — talvez apócrifas, dessa mulher e daquela, que trabalhava para a CARE ou para a Save the Children ou para a embaixada americana, cujo motorista era tão deslumbrante que... “Bom, o que você faria?” Todo mundo conhecia a história da esposa recém-casada com um poderoso do Departamento de Estado (ou era da USAID?) que foi para Cabul para uma missão rápida e fugiu com o motorista. Todas as histórias acabam aí, como filmes românticos, com o casal, hormônios a mil, partindo apressadamente. Ninguém conhece, ou ninguém conta, a parte do “para sempre”. Conheci uma americana — empresária de cerca de 40 anos, casada duas vezes, independente, que chegara como voluntária beneficente e se casara com um afegão em Cabul. Eu a convidei para se juntar a mim nas ótimas aulas de idioma que eu estava tendo com um excelente professor. “Meu marido nunca me deixaria falar com outro homem”, ela disse. “Ele me ama demais.” Percebi que ela estava feliz. Ele era muito bonito. Algumas semanas mais tarde fiquei sabendo que seu marido havia tomado uma segunda esposa em Dubai. Conheci outra voluntária americana que ficara obcecada pelo seu motorista afegão (casado), lindo e esbelto. Durante semanas ele fez o que pôde para evitá-la e mudar de emprego. A mulher colocou em seu orçamento uma soma astronômica para carro e motorista e, quando uma indulgente agência doadora deu-lhe o dinheiro, ela se deu de presente o homem de sua vida.

Não sei se os afegãos são melhores ou piores que guerrilheiros de outras partes do mundo. Não sei se são mais ferozes ou mais impiedosos, mais corajosos ou mais incansáveis que outros homens sob quaisquer circunstâncias lutando pelas próprias vidas. O que eu sei é que os homens afegãos que conheci, muitos dos quais haviam lutado com os mujahidin — homens para quem lecionei, homens que empreguei, com quem trabalhei ou para quem trabalhei, ou que conheci de passagem —, eram educados, de fala macia, cuidadosos com suas famílias, atenciosos e gentis. Estavam sedentos de paz. E quanto ao meu motorista — lá estava o plácido, gorducho, trabalhador e fervoroso Sharif. Ele frequentemente trazia ovos das galinhas que a mãe dele criava.

Mas dê um carro na mão de um homem como Sharif, e ele vai dirigir como um guerrilheiro. Dê-lhe um cavalo, e ele vai cavalgar impetuosamente em um jogo de buzkashi, batendo-se contra adversários para agarrar um bezerro ensanguentado. Dê-lhe um fuzil Kalashnikov ou um míssil Stinger, e ele vai se enfiar nas montanhas com os mujahidin. O impulso é o mesmo: uma luta desesperada pela sobrevivência, fundada na certeza de que, em que pesem as ligações de parentesco e qawm, família e amizade, religião e partido, cada homem está sozinho. Esse é o estado psicológico: solidão, isolamento, profundo e permanente. É um estado mental que deriva, talvez, de gerações de batalhas contra uma terra difícil, uma pobreza brutal e inimigos sanguinários, e que foi reforçado pelo último quarto de século de guerra incessante. Talvez porque nunca tenha havido fontes duradouras de autoridade na vida afegã — nenhuma monarquia estável, nenhuma hierarquia clerical, nenhuma aristocracia intelectual ou econômica que fosse confiável — cada homem parece sentir-se sozinho contra o caos iminente. Solitário, ele irá se ligar, se a oportunidade se apresentar, a algum benfeitor, algum cã ou comandante — algum dono de terras ou chefe local —, alguém no comando, para proteger-se da violência.

Mas cãs e comandantes só têm o poder que conseguem angariar ao longo da vida. O patrimônio do dono de terras é dividido entre seus filhos, de forma que nenhum se equipara ao pai e todos são levados a combater uns contra os outros. Quanto ao comandante da milícia privada, seu poder é tão efêmero quanto sua vida é breve. Nem mesmo o mulá, que pode exercer uma pequena influência na vida do vilarejo, representa um centro de poder estabelecido, de um papa ou de um bispo, mas é, antes, uma espécie de artesão freelance que cuida das necessidades religiosas locais do mesmo jeito que o carpinteiro cuida da necessidade dos móveis. A nação afegã não é, na verdade, nem mesmo uma nação, mas um Estado fracassado, um mero corredor, um campo de batalha, um buz, um bode dilacerado entre cavalos nos jogos de estratégia da geopolítica. Quanto aos homens que tentaram governá-lo no último século, cinco foram assassinados, quatro foram exilados, dois foram executados e um, o talibã mulá Omar, subiu em uma motocicleta e desapareceu. A última vez que um governante morreu pacificamente no cargo, de causas naturais, foi em 1901, e, desde então, apenas dois homens transmitiram o poder, e a contragosto, a outro legítimo governante, e um deles, Sibghatullah Mujaddidi, nem tinha poder de verdade para transmitir. Assim, não há nada que dure: nenhuma autoridade, nenhuma instituição, nenhum homem. A vida está sempre recomeçando, como outra rodada de buzkashi, e cada homem tem de lutar, interminavelmente, pelo prêmio. Talvez ele desejasse ser bondoso, mas o jogo é duro e só um pode vencer. Talvez ele desejasse ser leal, pelo menos a sua família e a seus amigos, mas a pressão das circunstâncias o deixa sempre atento a uma oportunidade imperdível. Talvez ele desejasse estar em paz, mas há perigo em toda a parte.

Alguns afegãos, em algum momento, devem ter desfrutado vidas de tranquila harmonia e disciplina, pois quem mais teria plantado os pomares e os vinhedos, cuidado das amoreiras, cavado, com infinita paciência, os intermináveis canais de irrigação, cercado os campos com pedras, construído os altos muros de barro ou as casas das fazendas ao longo da terra, agora em ruínas, destruídas? Mas que chance tinham essas pessoas simples contra os poderes do mundo exterior? Forasteiros ofereceram ao Afeganistão “assessoria técnica” para a política e, sobretudo, ajuda militar, e, quanto mais ajuda os afegãos recebiam, mais lutavam. É uma equação simples. O historiador Barnett Rubin explica dessa forma: “Como o número de mujahidin dependia do número de armas disponíveis — a oferta de voluntários era inesgotável —, mais ajuda militar significava mais mujahidin”.65

O governo Carter enviou 30 milhões de dólares em ajuda militar para o Afeganistão em 1980 e 50 milhões de dólares em 1981. Em 1984, Reagan aumentou o valor da ajuda para 120 milhões de dólares e obteve do general Zia ul-Haq, do Paquistão, uma promessa secreta de ajuda aos mujahidin. Em contrapartida, Reagan abandonou a política americana de não oferecer ajuda a países com programas de pesquisa nuclear e enviou ao Paquistão a terceira maior fatia do orçamento para ajuda externa, fechando os olhos para a fabricação de bombas.66 Alguns anos mais tarde, quando a guerra contra os sovié­ticos havia terminado, o governo do Bush Pai suspendeu a ajuda ao Afeganistão, afirmando que os EUA estavam absolutamente consternados de ver que seus aliados haviam, de algum modo, se tornado uma potência nuclear. Em abril de 1985, enquanto os soviéticos se preparavam para deixar o Afeganistão, Reagan assinou a Diretiva de Segurança Nacional 166 (National Security Directive) autorizando uma política mais agressiva: que se usassem “todos os meios disponíveis” para expulsá-los, e o Congresso entrou na dança da guerra com 250 milhões de dólares. Durante todo esse tempo, os EUA inteligentemente pagaram os chineses para fabricar armamentos do tipo soviético para os mujahidin, de modo que as armas capturadas não denunciassem o envolvimento americano na guerra suja no Afeganistão. O comandante mujahidin Abdul Haq reclamou, certa vez, do desperdício de ter que disparar vários mísseis SAM-7 para entender como funcionavam, porque eles vinham com o manual de instrução em chinês.67 Os EUA também desviaram secretamente milhões de dólares em armamentos, alocados como ajuda ao Afeganistão, para o Irã, por baixo do pano, como parte do esquema Irã-Contra o governo Reagan mas, mesmo assim, muitas armas chegaram também ao Afeganistão.68 A ajuda atingiu 470 milhões de dólares em 1986 e, pela primeira vez, os EUA enviaram mísseis antiaéreos laser-guiados Stinger para o Afeganistão e armas de última geração nunca antes distribuídas fora da OTAN. O esforço frenético de comprá-las de volta de gente que pode usá-las para derrubar nossos aviões se dá ainda hoje.69 Em 1987, quando as tropas soviéticas saíam do país, a ajuda militar americana atingiu 630 milhões de dólares. Os soviéticos completaram sua retirada em fevereiro de 1989, mas o auxílio americano subiu para 700 milhões de dólares naquele ano.70

Foi só então que o governo do Bush Pai resolveu dar uma olhada na política dos beneficiários de nossa ajuda — particularmente na de nosso aliado de longa data, Gulbuddin — e solicitar que houvesse rapidamente um acordo político “isolando extremistas”. Tardiamente, os EUA cortaram a ajuda à organização islamita radical de Gulbuddin, mas os sauditas e outros Estados árabes vieram em seu socorro. Durante todo esse tempo, a Arábia Saudita — terra natal do reacionário movimento Wahhabi do Islã e o Estado teocrático islâmico mais conservador do mundo — oferecera auxílio que igualava, dólar a dólar, a ajuda americana, e até um pouco mais, fazendo com que a ajuda combinada aos mujahidin chegasse a cerca de 1 bilhão de dólares por ano. Os sauditas também pagavam a conta — de cerca de 1,5 milhão de dólares por mês — do transporte das armas para o Afeganistão através da fronteira com o Paquistão, utilizando os escritórios sauditas do Crescente Vermelho para operar o dinheiro. A ajuda americana a outras facções mujahidin diminuiu — apenas 280 milhões de dólares em 1990 —, mas continuou vindo, enquanto os soviéticos continuavam a enviar ajuda ao governo afegão do presidente Najibullah, em Cabul. Barnett Rubin calcula o valor da ajuda: “Se somarmos os cerca de 5 bilhões de dólares em armas enviadas aos mujahidin entre 1986 e 1990 com a estimativa conservadora de 5,7 bilhões de dólares daquelas enviadas a Cabul, o total das importações de armamentos durante o período eclipsa aquelas feitas pelo Iraque e estava mais ou menos no mesmo patamar do Japão e da Arábia Saudita — com a diferença de que as armas pessoais representavam uma porcentagem muito mais alta das importações afegãs”. O país recebeu provavelmente mais armas pessoais que qualquer outro na face da Terra, e mais do que o Paquistão e a Índia juntos. Mas talvez não fosse o suficiente. Em junho de 1991, dois anos após solicitar um acordo político rápido, Bush Pai autorizou uma transferência não-contabilizada de 30 milhões de dólares em armas iraquianas capturadas durante a primeira Guerra do Golfo71 às facções mujahidin, então engajadas em uma guerra civil. Talvez George Pai simplesmente não estivesse prestando atenção. Tempos depois, um funcionário da CIA contou a Steve Coll, do Washington Post, que quando ele mencionou ao presidente, en passant, sobre a guerra no Afeganistão, Bush Pai “pareceu perplexo” e “surpreso”. O presidente perguntou: “Essa coisa ainda continua?”72

 Tendo os soviéticos deixado o Afeganistão, a jihad chegara ao fim. O Irã expôs a posição do Islã moderado: os combates têm de parar. Mas os EUA ainda estavam, constrangedoramente, do lado dos extremistas islâmicos e contra o governo soberano do Afeganistão, que eles ainda consideravam um instrumento soviético. Assim, tomaram providências para que as hostilidades continuassem. Apoiaram um esquema do ISI para reunir todas as facções mujahidin em uma grande investida para capturar Cabul e depor o presidente Najibullah. O Paquistão desejava instalar seu próprio títere amigo (ainda Gulbuddin) em Cabul, enquanto os obstinados americanos só pensavam em impingir mais uma humilhação aos enfraquecidos so­viéticos. Comandantes de campo mujahidin, incluindo Massoud, di­ziam que não conseguiriam tomar Cabul — eles eram guerrilheiros des­preparados para ataques frontais e cerco e não atacavam nem ci­da­des, nem civis. Mas o ISI e a CIA diziam que eles conseguiriam fa­­zê-lo se recebessem um pouco mais de ajuda militar e treinassem um pouco as técnicas de combate urbano. Assim, os EUA enviaram ain­da mais armas através de Peshawar enquanto em Islamabad, o embai­xador americano Robert Oakley reunia-se com oficiais paquistaneses, sem um único oficial afegão presente, para planejar um ataque a Jalalabad, a maior cidade no caminho para Cabul.73 Pensado como um aquecimento antes do ataque à capital, o cerco em câmera lenta a Jalalabad foi um longo desastre, conforme haviam previsto os mujahidin, com milhares de mortos dos dois lados e entre os civis pegos no meio do fogo-cruzado. Mas àquela altura os líderes dos partidos mujahidin, que haviam gasto muito tempo brigando pelo banquete de armas oferecido em Peshawar, pareciam ter se esquecido completamente das pes­soas pelas quais, supostamente, estavam lutando. Soltos e à deriva como pipas cujas linhas tivessem sido cortadas, eles voaram cada vez mais alto, em direção ao ar rarefeito da ideologia extremista e da ambição pessoal. Então, no primeiro dia de 1992, os EUA e a Rússia declararam o fim do banquete, deixando para trás todos aqueles líderes de partido famintos, todos aqueles homens desesperados, e todas aquelas armas. O que esperavam? É fácil colocar a culpa no “atraso” e na ferocidade tribal do Afeganistão pelas amargas guerras civis que se seguiram à retirada soviética, mas na qualidade e na profusão de seus armamentos, os irmãos afegãos eram absolutamente modernos e atualizados.

Os afegãos lutaram, e os americanos voltaram para casa. Em dois anos, a nova administração Clinton, pressionada por congressistas republicanos para parar de gastar dinheiro com pequenos países caó­ticos e miseráveis, encerrou toda a ajuda humanitária e para desenvolvimento destinada ao Afeganistão. Na CIA, o Afeganistão recuou para segundo plano.74 Foi então que os mulás de turbante preto do Talibã partiram para o sul em suas caminhonetes sauditas e os estudantes deixaram, aos milhares, as madrassas financiadas pela Arábia Saudita no Paquistão, marchando lentamente sobre o país, festejados, a princípio, pela “segurança” que traziam às violentas cidades do sul, que a guerra havia destruído, pela liberação de estradas de modo que alimentos pudessem chegar, pela “paz” que chegava a vidas cansadas de guerra quando enforcavam mais um déspota. Mas então, imediatamente, eles passaram a proibir música, televisão, pipas, mulheres, garotas, sapatos brancos, esmalte e homens cujas barbas não fossem longas o suficiente para se apanhar com a mão e aqueles cujas pontas do turbante balançassem a uma altura imprópria. Eles não compartilhavam da moderna ideologia islamita que os intelectuais da Universidade de Cabul haviam imaginado. Era uma mistura volátil de preceitos pinçados de fontes islamitas arquiconservadoras, como a Fraternidade Muçulmana do Egito e a Jamaat-i Islami do Paquistão, de Sayid Qutb e Abul A’la Mawdudi, da versão ultraconservadora do deobandismo indiano ensinado no Paquistão, e o wahhabismo radical da Arábia Saudita promulgado, em língua pashtun, por Osama bin Laden e Seu comandante afegão mujahidin, Abdul Rasul Sayyaf — que resultava em um fundamentalismo idiossincrático que olhava com saudade para o século VII e a vida exemplar do Profeta. Era uma teologia totalitária que proibiu pasta de dentes, de todas as marcas, por ser um produto não aprovado por Maomé e não mencionado no Corão. Em todo o Afeganistão, as pessoas resistiam a essa avalanche de religiosidade ardente, e Massoud ofereceu sua Aliança do Norte como um bastião para conter tal avalanche; mas os EUA, que haviam se envolvido tão longa e tão negligentemente no Afeganistão, anunciaram uma nova política de neutralidade naquilo que chamaram de “guerra civil” entre o Talibã e Massoud.

 A princípio, os EUA na verdade festejaram o Talibã e seu estilo feroz de lei e ordem. E é aqui que o petróleo entra na história, em um episódio que mostra que mesmo um país sem nenhum petróleo não consegue escapar das maquinações dos “interesses petrolíferos americanos”. Eles foram os primeiros no comitê de boas-vindas ao Talibã.75 Há muito tempo faziam planos para canalizar as reservas de petróleo da área do Cáspio — talvez os maiores depósitos de petróleo da Terra — para portos no Paquistão por meio de um oleoduto passando pelo Afeganistão. No jargão de futebol tão caro aos industriais texanos do petróleo, isso seria o equivalente a dar uma finta no Irã. O grande problema era a segurança. Não compensa construir um oleoduto em uma zona de guerra, e os desgraçados dos déspotas continuavam lutando e atrasando a construção.

Felizmente para os interesses petrolíferos, o Talibã parecia bem próximo de liquidar os mujahidin e abrir caminho para um excelente acordo. Em 1997, líderes talibãs visitaram Washington por duas vezes para se encontrar com funcionários do Departamento de Estado e do conglomerado petrolífero americano Unocal. A companhia petrolífera confessa ter gasto entre 15 e 20 milhões de dólares no projeto, uma soma que inclui os salários de vários ex-funcionários do Departamento de Estado contratados para ajudar a fechar o negócio. Entre eles estava o afegão-americano Zalmay Khalilzad, durante longo tempo estrategista e conselheiro de Donald Rumsfeld, que posteriormente foi nomeado por George W. Bush, enviado especial e, depois, embaixador americano no Afeganistão e, mais tarde, no Iraque. Um outro jogador nessa mesa era Hamid Karzai, representando a Unocal nas negociações com o Talibã. Naquela época, Khalilzad insistiu que o governo se “envolvesse” com o Talibã, alegando que “o Talibã não pratica o tipo de fundamentalismo antiamericano praticado pelo Irã — ele está mais perto do modelo saudita”.76 Não importa que o modelo saudita — o wahhabismo seguido por Osama bin Laden — oprima completamente as mulheres e ignore direitos humanos básicos; é um modelo com o qual os americanos que lucram com petróleo podem negociar. Assim, eles se esforçaram muito para fazer negócios com o Talibã. No fim das contas, o projeto não deu certo, em grande parte porque o Talibã não conseguia aprimorar a “segurança” enquanto Massoud estivesse lutando e bin Laden estivesse ocupado explodindo coisas por aí. Mas a esperança é a última que morre. Depois da queda do Talibã, os EUA enviaram como embaixador no Afeganistão um certo Robert Finn, perito em petróleo do Cáspio. Ele foi substituído em 2003 por Khalilzad, que logo passou a ser visto em Cabul como o verdadeiro chefe por trás de Karzai. Mas quando ele partiu para o Iraque em 2005, a segurança no Afeganistão ainda era uma piada, e o oleoduto era apenas um sonho irreal.77

Enquanto os EUA namoravam o Talibã, Massoud buscou ajuda junto ao Irã e à Índia e acertou a compra de equipamento militar dos russos, derrotados, e da máfia russa. Enquanto isso, os afortunados Talibãs tinham apenas que estender as mãos para conseguir dinheiro, armas, suprimentos, treinamento e inteligência dos peculiares aliados americanos — Paquistão e Arábia Saudita — e de Osama bin Laden e seu movimento Al-Qaeda. Em fevereiro de 1998, bin Laden convocou uma coletiva de imprensa na sua base afegã para anunciar a formação de uma coalizão internacional islâmica radical — a Frente Islâmica Internacional para a Jihad contra Judeus e Cristãos — determinada a realizar ataques violentos nos EUA. O manifesto do grupo, escrito por bin Laden, foi assinado por líderes islamitas radicais do Paquistão, do Egito, de Bangladesh e da Caxemira. Em 7 de agosto de 1998, grupos de homens-bomba islâmicos, financiados por bin Laden e treinados no Afeganistão, atacaram as embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia; na mesma semana, no Afeganistão, o Talibã, ajudado pelo ISI paquistanês e por 28 mil soldados suicidas “árabe-afegãos” das madrassas financiadas pelos sauditas no Paquistão, tomaram Mazar-i Sharif e massacraram milhares de seus cidadãos.78 Logo depois, Ahmad Shah Massoud escreveu uma carta ao Senado americano.

Massoud protestava que o Paquistão e seus aliados árabes haviam entregue o país a “fanáticos, terroristas, mercenários, máfias da droga e assassinos profissionais”.79 Ele pedia aos EUA que quebrassem o velho hábito de deixar que o Paquistão administrasse a política americana para o Afeganistão e que, ao invés disso, o ajudassem em sua guerra contra o Talibã, o ISI do Paquistão e Osama bin Laden. Posteriormente, depois de 11 de setembro, os afegãos se perguntariam por que os EUA não estavam bombardeando o Paquistão, ou a Arábia Saudita, ao invés deles.80 Mas os EUA — agora no governo Clinton — consideravam Massoud um aliado inaceitável porque ele ganhara dinheiro negociando ópio, embora líderes mujahidin, particularmente Gulbuddin, tivessem feito a mesma coisa o tempo todo. Na verdade, o negócio de drogas afegão-paquistanês ao longo das linhas de suprimento dos mujahidin passara de tráfico local de ópio à maior operação de heroína do mundo — com a bênção tácita da CIA.81 E o Paquistão, agora com o ditador militar Pervez Musharraf, também pediu a Clinton que se “engajasse” no regime talibã. Clinton, como todos os presidentes que o precederam, fez o que o Paquistão dizia, talvez porque o conselho coincidisse tão perfeitamente com aquilo que lhe tinha dito o pessoal da Unocal, nos EUA. Ao se “engajar” com os “moderados” do Talibã, ele esperava persuadi-los a entregar bin Laden. Na sequência dos atentados contra as embaixadas americanas na África, ele lançara alguns mísseis sobre bin Laden, mas o escândalo Monica Lewinsky deixou-o sem poder para agir novamente. E, assim, a política americana continuou atrelada aos serviços de inteligência paquistaneses, que treinavam e protegiam os radicais islâmicos que os EUA temiam, e à Arábia Saudita, que financiava a empreitada. Os sauditas enviaram milhões a bin Laden e ao Talibã, enquanto o ISI paquistanês fazia jogo de cena entregando, de vez em quando, alguns operadores pequenos, descartáveis, da Al-Qaeda, nos momentos em que a paciência americana parecia esgotar.82 As únicas vozes políticas que se levantaram nos EUA contra o Talibã foram as das feministas, que reclamavam que as mulheres afegãs tinham sido privadas de todos os direitos humanos. Mas, durante muito tempo, isso não foi suficiente para fazer o governo Clinton decidir-se pelo outro lado. As mulheres nos EUA, ao que parecia, não tinham muita influência.

Apesar da política oficial de neutralidade, Richard A. Clarke, que atuara como conselheiro de segurança nacional para contra-terrorismo junto a quatro presidentes, propôs que a CIA apoiasse Massoud contra o Talibã, com base no argumento de que “se Massoud representasse uma ameaça séria ao Talibã, bin Laden, que os apoiava, teria de utilizar seus homens e suas armas na luta contra a Aliança do Norte, e não contra nós”.83 Mas a CIA considerou o trabalho “arriscado demais” para sua reputação e para a segurança de seu pessoal, caso uma operação desse tipo viesse à luz algum dia.84 A CIA também afirmou estar sem muitos recursos financeiros. Enviou, assim, apenas alguns pequenos pagamentos simbólicos a Massoud, e equipamento de rádio para encorajá-lo a fazer a escuta dos talibãs. Em contrapartida, pressionou-o a entregar o grande prêmio: Osama bin Laden. Detalhes jurídicos impediram que a CIA pedisse a Massoud para “matar” bin Laden — o governo Clinton se sentia obrigado a seguir as normas do Direito internacional e da diplomacia —, e eles tentaram, então, persuadir Massoud a capturar vivo um homem que estava constantemente cercado de 100 seguranças jihadi fortemente armados. Mas Massoud estava cansado da política autocentrada dos americanos. Eles só pensavam em bin Laden; ele pensava em seu país. Se seus homens aceitassem a missão suicida, perguntou, qual seria o ganho para o povo do Afeganistão? Depois de tantos anos lutando, Massoud deveria estar cansado dos melindres dos EUA, de sua recusa, após vinte anos de ingerência, em tomar partido, declarar inimigo o Talibã e deixar de lado as sutilezas jurídicas que protegiam bin Laden. Massoud declarou que a política americana era míope e estava condenada ao fracasso. Em 1999, a Al-Qaeda já operava em seis países, e o plano que resultou no 11 de setembro já estava em andamento.85

Massoud enfurnou-se no norte, como tinha feito algumas vezes durante a ocupação soviética, e esperou. A sua volta começaram a se juntar aliados: temíveis comandantes mujahidin, como o líder herati Ismail Khan; o usbeque Abdul Rashid Dostum; Abdul Haq, um exilado pashtun cuja mulher e filhos haviam sido assassinados por bin Laden e o Talibã; e Hamid Karzai, antigo negociador da Unocal e descendente de uma poderosa família pashtun do Kandahar exilada que apoiara o Talibã em 1994 e, mais tarde, em 1999, se unira aos pashtuns para combatê-lo. O pai de Hamid, Abdul Ahad Karzai, que havia liderado a defecção, fora assassinado em Quetta em 1999. Até mesmo o antigo rei Zahir Shah juntou-se à aliança, à medida que Massoud gradualmente construía algo raro na história afegã — uma coalizão islâmica moderada, monarquista e multiétnica. Aparentemente poderia ser a base para se construir uma nação. Steve Coll, editor do Washington Post, tentando estabelecer o lugar de Massoud na História, afirma que “depois de 1979, o Afeganistão era um laboratório para visões políticas e militares concebidas no exterior e impostas pela força.[…] Nação jovem e fraca, o Afeganistão produzia poucos nacionalistas convincentes que rissem a oferecer uma alternativa, que pudesse definir o Afeganistão a partir de dentro. Ahmed Shah Massoud era uma exceção”.86Os habitantes de Cabul que sobreviveram à anarquia e à destruição das guerras fratricidas dos mujahidin, aqueles que se lembravam dos estupros, das atrocidades e das execuções do período dos mujahidin, aqueles que não desejam mais que a paz; podem ter uma visão menos brilhante desse homem que se recusava a parar de lutar. No entanto, mesmo as pessoas que se lembram de todas essas coisas dirão que Massoud era diferente.

Quando o Bush Filho escorregou para dentro da Casa Branca, Massoud ainda estava esperando os EUA escolherem seu inimigo. Ele não poderia estar otimista. Bush, o Pequeno, era mesmo um fundamentalista religioso, renascido, que acreditava em impor suas crenças ao mundo pela força; o espelho exato de bin Laden, desprovido de qualquer noção das coisas; o primeiro presidente americano de quem se tem lembrança que tenha se vangloriado de sua própria ignorância, paroquialismo e religiosidade. Condoleezza Rice, então sua conselheira de segurança nacional e especialista em guerra fria, parecia acreditar que o Talibã era municiado de armas pelo Irã (que estava, na verdade, enviando ajuda para Massoud). Richard Clarke imediatamente enviou-lhe uma agenda urgente de combate ao terrorismo, incluindo novamente sua proposta de ajudar Massoud e mesmo de bombardear a infraestrutura talibã, mas suas propostas deram em nada. Toda a equipe neoconservadora de Bush — Rice, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e o resto — estava tão concentrada no sistema de defesa “guerra nas estrelas”, em petróleo e em apanhar o Iraque, que parecia não ter se dado conta dos prementes relatórios dos especialistas antiterrorismo do governo Clinton que deixavam o poder. Apesar disso, durante os primeiros cinco ou seis meses do novo governo, os serviços de inteligência dos EUA observaram um aumento tão dramático nas ameaças de ataques terroristas que a sugestão de se tomarem providências experimentais para o envio de ajuda secreta a Massoud conseguiu, afinal, infiltrar-se em uma proposta de plano de segurança nacional. Levou meses para se conseguir reunir todo mundo — o novo presidente tirava férias com muita frequência — mas, finalmente, o plano foi adotado.87 Milagrosamente, o governo de Bush, o Pequeno, parecia poder considerar dar a Massoud a ajuda de que ele precisava. Massoud e seus aliados, evidentemente, eram as mesmas forças moderadas que os EUA poderiam ter apoiado uma década antes, se a política não tivesse sido entregue ao Paquistão por governos anteriores dados à indiferença ou à ganância; o tipo de ganância que não quer arruinar lucrativas amizades com a família real saudita, nem destruir a oportunidade de colocar as mãos no petróleo da Ásia Central. Uma das ironias dessa longa e triste história da negligente política externa americana é que foi a equipe do Bush Dois — que não sabia nada sobre o Afeganistão e se importava ainda menos, exceto, é claro, no que diz respeito aos oleodutos — aquela a apoiar o lado certo. Mas essa não é a última ironia. Cinco dias após ser adotado o novo plano de segurança, um homem-bomba da Al-Qaeda apontou uma falsa câmera de TV para o peito de Ahmed Shah Massoud e acionou o detonador. Dois dias depois, era 11 de setembro.

Massoud ainda era uma presença em Cabul, e da minha janela podia vê-lo olhando sobre a cidade, do outdoor sobre a montanha. Podia estudar seu rosto, as rugas profundas no cenho franzido e as sobrancelhas unidas em um nó sobre os olhos escuros, profundos, de extraordinária intensidade. Sua tragédia fora enxergar mais do que outros que ditavam, de escritórios longínquos, o destino de seu país. Em um lado de nosso mundo dividido ficam as nações privilegiadas, especialmente a nossa, exercendo a disciplina do “tudo o que for preciso” para comprar uma ilusória sensação de segurança; do outro, os pequenos países miseráveis e falidos, que servem de campo de batalha para nossas guerras vicárias, seus patriotas, nossos soldados-fantoche, seus civis, nossas perdas secundárias, suas sociedades, o entulho através do qual nossa “democracia” marcha incessantemente em direção ao mercado aberto. Barnett Rubin coloca bem: “O país desenvolvido não mostra, como pensava Marx, o futuro ao país atrasado; os países que se fragmentam mostram aos que se integram o lado negro de seu presente comum. A violência e a decadência do Afeganistão são o reflexo da violência que criou e que mantém nossa sociedade”.88

Massoud também deve ter sonhado com segurança. Seu cabelo estava salpicado de grisalho, suas costas doíam e sua vida havia sido gasta na guerra. Entre os homens que veem glamour na guerra, ele se tornara o maior herói; mas ele também deve ter sabido que para as mulheres, que juntam os cacos deixados pelas guerras, ele parecia ser apenas mais um pistoleiro, como o resto. Em seus últimos anos, ele projetou e construiu uma casa modesta para a família, com uma biblioteca para si. A biblioteca tinha janelas amplas que davam para o vale do Panjshir e estantes para guardar as obras dos poetas farsis que ele amava. Li, em algum lugar, que ele mesmo havia colocado o carpete. Era um soldado cansado que deve ter desejado voltar para casa. Ele morou com a mulher e os filhos na casa nova por apenas vinte dias. Depois disso foi assassinado por forasteiros pagos por um forasteiro, outro “antigo protégé dos EUA”, Osama bin Laden.89 Nem havia acabado de desempacotar seus livros. De quem era a culpa?

Era fevereiro quando Caroline, eu e outra voluntária de nome Helen partimos para Mazar-i Sharif, época ruim para viajar pelas montanhas do Afeganistão. Mas o inverno em Cabul fora longo e precisávamos de uma mudança de ares. Caroline queria ir ao mercado de tecidos em Mazar-i Sharif procurar novos panos para seus projetos. Um período precoce de dias quentes em Cabul nos convenceu de que o pior do inverno já passara e soubemos, quando Caroline enviou seu motorista para perguntar no ponto de parada de caminhões, que a estrada que passava pelo Hindu Kushi estava aberta. “Eles vão jogar buzkashi agora”, disse Caroline. “Se a gente der sorte, vamos conseguir ver um jogo de verdade.” Esse argumento foi decisivo.

A pequena ONG de Caroline não possuía nenhum veículo que conseguisse vencer a longa subida pelas montanhas. Teríamos de alugar um. Assim, partimos antes do amanhecer para o mercado nos subúrbios ao norte de Cabul, onde caminhões e veículos de aluguel privados esperam passageiros. Hasan insistiu em vir conosco até Mazar-i Sharif, para tomar conta de Caroline e pelo menos dar a impressão de que estávamos adequadamente acompanhadas de um homem. Motorista excelente, ele havia operado um serviço privado de viagens de longa distância até que os talibãs o espancaram e roubaram seu ônibus. Durante meia hora ele correu para cima e para baixo na longa fila de peruas e SUVs (veículos esportivos-utilitários) de aluguel, negociando com os motoristas, até que fechou negócio com um Toyota Town Ace — os afegãos pronunciam “Tunis” — e com um motorista bonito e sonolento chamado Marouf. Entramos no carro, arrumamos a nossa volta as nossas garrafas de água e nossas sacolas com pães, ovos cozidos e mexericas e nos preparamos para uma linda viagem. Seria nosso pequeno feriado.

Na luz cinzenta da manhã, rodamos em direção ao norte pelas planícies de Shamali, passando por tanques enferrujados e veículos de transporte capotados, por campos nus e vinhedos destruídos, por pomares de árvores esqueléticas, por paredes cor de barro em fazendas que se desfaziam na terra. Pó ao pó. Em Jabal ul-Saraj, onde a estrada dobra para nordeste em direção ao vale do Panjshir — onde Massoud lutara, várias e várias vezes, contra os soviéticos: seis vezes antes de chegar aos 30 anos, atravessamos um pontão colocado ao lado dos pilares destruídos da antiga ponte bombardeada, ao alcance do canhão enferrujado de um tanque soviético meio submerso na corrente. Seguimos até a estrada principal, indo para o norte até o sopé das colinas às margens do rio Salang, e o terreno começou a se elevar. O rio corria claro, azul e glacial. A cada curva, casas de barro de telhado plano se amontoavam em uma encosta da montanha que olhava para o sul. Adiante, o rio era ladeado por pequenas elevações com jardins e, quando se alargava em redemoinhos, era pontuado por chamarizes para patos, feitos de folhas de metal e montados ali. O sol sobre nossas cabeças brilhava forte, através do ar límpido, e o céu, de um cobalto brilhante, se tornava mais profundo à medida que subíamos cada vez mais alto por entre a neve.

Marouf segurava o volante com as duas mãos, lutando contra a estrada difícil, e conduzia rapidamente o Town Ace, como se não tivesse um só minuto a perder. No painel, rosas plásticas vermelhas balançavam a cabeça a cada solavanco, a cada derrapada. Do meio do vidro da frente, Ahmad Shah Massoud nos observava com seu familiar sorriso de lado, preocupado. De tempos em tempos, Marouf esticava-se rapidamente para tocar a fotografia, embora eu não pudesse dizer se era para dar sorte ou se era por respeito. Assim como Massoud, Marouf era um tajique. Ele trajava o mesmo colete de lã, o mesmo gorro de lã rústico. Ele já tivera sua cota de azar. Passara com o carro sobre uma mina terrestre, conforme contou, e ela o estraçalhara. Passou seis meses no hospital e depois voltou a dirigir. “O que mais eu posso fazer?”, dizia. Toda vez que ele saía do veículo dava para ver que era estranhamente baixo, como se, quando fora juntado novamente pelos médicos, uma parte de seu tronco tivesse ficado faltando. Ele andava de um jeito engraçado, com uma perna fazendo um passo de ganso e a outra se arrastando atrás. Mas, quando se sentava atrás do volante, não dava para perceber. Desde o acidente com a mina ele tinha tido quatro filhos em seis anos. Comentou que estava com pressa de voltar para a mulher em casa.

Quando partimos de Jabal ul-Saraj, por volta de duas da tarde, Hasan nos disse que chegaríamos ao túnel Salang em uma hora. Construída pelos soviéticos em 1964, para facilitar o fluxo de produtos (e soldados) entre o Afeganistão e as repúblicas soviéticas da Ásia Central, essa estrada, coroada por um túnel, era a principal rota entre Cabul e o norte. No inverno, era a única. A guerra contra os soviéticos quase a destruíra, e, mais tarde, em 1997, Massoud explodira a saída sul do túnel para deter a fuga de guerreiros talibãs que haviam tomado Mazar-i Sharif apenas para ver o povo da cidade levantar-se contra eles. A maior parte do entulho já havia sido retirada, mas o túnel não fora completamente consertado. Oficialmente, o tráfego fluía apenas em um sentido: um dia para o norte, outro para o sul. A estrada em que estávamos viajando ia agora piorando, fazendo com que andássemos mais devagar, e o tráfego a nossa frente aumentava. Uma hora. Duas. “Lá está”, disse, quando vi que no alto da longa encosta coberta de neve a nossa frente a estrada desaparecia por trás de um muro de postes de concreto. Mas essa era apenas a primeira galeria, disse Hasan, o primeiro de muitos trechos em que a estrada tinha sido escavada na montanha e coberta por um teto de concreto sustentado na extremidade por pilares. As galerias deveriam proteger a estrada de avalanches que, ao menos em teoria, passariam por cima do teto, mas chegamos a uma galeria que havia sido completamente destruída exatamente no dia anterior. Alguns pilares sobreviventes retorciam-se em ângulos esquisitos ao longo da encosta e, bem abaixo na montanha, outros jaziam espalhados próximos de dois caminhões tombados que se projetavam da neve. “Barfkuch”, disse Hasan.
Ele estava sempre pronto para uma aula de dari, a língua que Helen e eu lutávamos para aprender. Barf, sabíamos, significava neve. Mas kuch? “Kuch, Kuchi”, disse Hasan. Kuchis são os nômades andarilhos do Afeganistão. Barfkuch é a neve que caminha.

Subimos mais, balançando para lá e para cá pela estrada sinuosa, derrapando entre os montes de neve e gelo empilhados ao lado dela. Fizemos uma última curva sob uma longa galeria e escorregamos para dentro de um congestionamento. Vacas assustadas nos observavam, examinando-nos por sobre a placa escrita à mão na porta traseira de um caminhão paquistanês: “Rei da estrada”. Marouf fixou os olhos naqueles plácidos rostos bovinos — ou foi na placa? — e toda sua energia brilhante subitamente explodiu como se algo tivesse causado a erupção de algum poderoso vulcão interior. Ele pôs a cabeça para fora da janela para gritar com o motorista do caminhão. Pontuava suas observações cuspindo nas vacas. O motorista gritou de volta. Marouf pulou do carro e disparou em relação ao caminhão, tão rápido quanto podia com aquele seu curioso manquitolar. Mas ele deve ter visto que depois do caminhão com o gado havia um caminhão-tanque e, além dele, uma fila enorme de caminhões e caminhões paquistaneses pintados em cores berrantes, minivans, SUVs, Land Rovers brancos com símbolos da ONU na porta, peruas talibãs (picapes com janelas coloridas) e velhos táxis Toyota Corolla. Todos empacados em um engarrafamento maior do que qualquer um que eu tivesse visto nas ruas de Cabul.

Ele voltou, rosnando e gritando imprecações. A nossa frente, muitos motoristas estavam colocando correntes nos pneus, e Marouf fez o mesmo com a minha ajuda e a de Hasan. Contra os conselhos de Hasan, Marouf amarrou as correntes bem apertado com uma corda de náilon. Os veículos começaram a avançar milimetricamente, e Marouf estava preparado. Colocou a fita-cassete no último volume, algum tipo de tambor sendo esmurrado sem piedade, e acelerou o motor. Fez uma curva larga em direção à beira da estrada, apontou o Town Ace para a frente e virou rapidamente o volante para dar uma fechada no caminhão de gado, baixando a janela para xingar o outro motorista. Alguém na parte de trás do caminhão de gado atirou uma pedra que bateu em nosso teto, mas Marouf já estava derrapando e passando pelo caminhão-tanque para entrar na galeria escura. Um pequeno Corolla branco passou rápido pelo outro lado do caminhão-tanque e entrou a nossa frente, dando-nos uma fechada. Marouf uivou de raiva. “Veja isso!”, berrou. “Ninguém controla. É uma vergonha.” Ele bateu na traseira do Corolla, rindo quando esse derrapou e bateu de lado contra a parede da galeria. Dei uma olhada para Helen, que estava agarrando o banco com toda força. Caroline balançou a cabeça e disse, como que pedindo desculpas: “Gostam de ser os primeiros, esses homens”.

E assim subimos a montanha em constante combate com uma centena de outros sujeitos, todos determinados a chegar, antes de todo mundo, ao mesmo lugar. Homens saltavam de seus carros e corriam para cima e para baixo na fila, gritando instruções e insultos uns aos outros. Depois saltavam de novo para dentro, determinados a ocupar o próximo espaço que abrisse na fila, onde quer que ele aparecesse. Dois veículos avançaram lentamente, bloqueando um ao outro e à estrada, e, enquanto os dois motoristas aceleravam seus motores, aqueles que estavam presos atrás corriam a pé para gritar ordens conflitantes sobre quem deveria fazer o quê. “Uma bagunça”, disse Helen. Caroline disse: “As montanhas podem ser tão tranquilas”, e saiu para caminhar, com Hasan atrás dela, em nome da decência. Logo um de nossos pneus amarrados com força saiu da roda, exatamente como alertara Hasan, e Marouf ficou totalmente apoplético, como se ele realmente tivesse ficado louco. Saí do carro e comecei a árdua tarefa de tirar as coisas enquanto Marouf socava a estrada, urrando e brandindo os punhos no ar. Levantei os olhos e vi o caminhão de gado passando. “Rei da estrada.”

Entramos na última galeria no exato momento em que o sol desaparecia, tingindo de um branco luminoso, depois de rosa, os altos picos. Dentro da galeria já estava negro como a noite. O ar estava pesado e cinzento com a fumaça dos carros. Os faróis não conseguiam penetrá-lo. Lançavam apenas uma luz pálida e sinistra, por meio da qual silhuetas escuras surgiam e desapareciam. Neve havia se acumulado nos espaços entre as colunas e congelado em arcos agourentos, que pendiam sobre os veículos como grandes ondas prestes a cair. Homens a pé surgiam na escuridão, formas, vultos estranhos, gritando.

Quando finalmente deixamos a galeria, já era noite e as estrelas brilhavam no céu escuro, o ar rarefeito, mas límpido e frio. Logo estávamos empacados de novo. A nossa frente a estrada desaparecia em uma enorme poça que se estendia longe, entre muros íngremes de neve e gelo, altos como uma casa. Era a entrada do túnel, bloqueada por um Corolla que tinha afundado até a altura da maçaneta na poça gelada. Motoristas ficavam em volta, vociferando ordens ao motorista. “Ajudem-me, irmãos”, gritava ele. “Em nome do Profeta, a paz esteja com ele, me deem um empurrão.” Os homens gritavam em resposta: “Empurre você mesmo”. Finalmente, três passageiros arrastaram-se para fora pelas janelas do Corolla e, afundados até a cintura na água, empurraram até que o carro se moveu e desapareceu dentro do túnel. Marouf acelerou o Town Ace e mergulhamos no pequeno lago. A água cobria nossos faróis e navegamos na escuridão até que o Town Ace se ergueu novamente, deslizando sobre uma placa de gelo e despencando túnel adentro.

Aqui a estrada estava quase lisa, embora cheia de crateras profundas repletas de areia e neve. Quinze minutos mais tarde, consegui ver por um segundo as estrelas no céu, brilhando através de um buraco no teto — “um buraco do Massoud”, conforme o chamava Hasan —, e logo depois estávamos de novo rodando pela noite fria e calma. A faixa da direita na estreita estrada à frente estava cheia de centenas de caminhões indo para o sul, agora estacionados com os motores cobertos por encerados para mantê-los aquecidos, esperando a manhã e a sua vez de passar pelo túnel. Forçados a tomar a faixa da esquerda, rastejamos morro abaixo, no escuro, passando lentamente de uma curva gelada à seguinte. Os outros motoristas, talvez exaustos pelo combate ou com medo do barranco à beira da estrada gelada, formaram algo parecido com uma fila para descer, morosamente, a montanha.

Paramos na primeira chaikhana, desmaiamos no chão de um pequeno aposento superior e dormimos por algumas horas. Antes do amanhecer, já estávamos de novo na estrada com Hasan dirigindo para que Marouf e todos nós pudéssemos descansar um pouco. As montanhas comprimiam-nos na escuridão, sua enorme massa acinzentada mais pressentida do que vista, até que, à primeira luz da manhã, desapareceram em campos ondulados. Gradualmente, a terra se tornava seca e pedregosa, e rochedos se erguiam para, ainda uma vez, nos envolver. Ziguezagueamos por um cânion longo e baixo, Hasan disse que esse caminho através da última montanha fora magicamente feito pelo próprio califa Ali, encontrando, a seguir, caravanas de camelos nas estradas, casas de terra vermelha abobadadas e, finalmente, as amplas planícies do Turquistão, que se estendiam em uma linha longa e clara até Mazar-i Sharif.

Nós, mulheres, nos hospedamos em um hotel. Caroline pagou um extra a Marouf para que levasse Hasan de volta a Cabul, e eles partiram imediatamente para pegar o fluxo sul pelo túnel. Duas semanas mais tarde, quando chegamos a Cabul, soubemos que Marouf abandonara Hasan no meio da montanha. Ele pedira a Hasan que saísse e desse uma verificada nos pneus, e partira sozinho, levando consigo o cobertor de Hasan. Hasan fez sinal para um caminhão e pagou ao motorista para que lhe desse uma carona, mas eles ficaram presos durante a noite em uma galeria perto do topo da montanha. Ele comprou alguns pedaços de madeira de outro motorista que estava cortando a carroceria de seu caminhão com um machado; fez uma pequena fogueira, mas não conseguiu se aquecer. Eles finalmente conseguiram chegar ao túnel só para ficar sabendo que esse havia sido fechado indefinidamente pelo comandante militar responsável, por causa do risco de avalanches. Os motoristas, em fúria, atacaram os soldados do comandante e tomaram suas armas. Arrombaram a porta de seu escritório e espancaram-no quase até a morte. Os soldados mostraram os corpos congelados de três homens que haviam sido pegos na última avalanche, aquela que destruíra a galeria destroçada que havíamos visto. Espancaram os soldados. Daí voltaram para os caminhões e atravessaram o túnel. No dia seguinte, Hasan chegou a sua casa em Cabul, onde a mulher tratou dele, massageando com sal seus pés e pernas congelados. Nesse mesmo dia, uma série de avalanches fechou o Passo de Salang, que permaneceu fechado por um mês. Tempos depois, perguntei a Hasan se sabia o porquê de Marouf tê-lo enganado e abandonado. Ele deu de ombros, sorriu e disse: “É nosso costume”.


Sem saber da viagem de Hasan para casa, Caroline, Helen e eu ficamos empacadas por algumas semanas, esperando um avião. Depois de Caroline terminar os negócios de que viera tratar, ela disse: “Vocês gostariam de assistir a um jogo de buzkashi? Ou já viram o suficiente na viagem até aqui?”

“Gostaria de ver aquele que eles jogam com cavalos”, disse Helen. E, assim, partimos a pé para Dasht-i Shadian para ver, em uma tarde fria, homens a cavalo estraçalharem um animal morto.


Quando chegamos ao campo de jogo, o bezerro já havia sido abatido. Estava no chão, ainda virado para o Ocidente, em direção a Meca. Não tinha cabeça, e suas pernas se abriam em ângulos impossíveis. Os cascos haviam sido cortados a machado e retirados. Um velho desenhava um círculo no chão com o salto da bota. O vento, em redemoinhos no céu de inverno cinzento e sem sol, levantava as orlas de sua veste desbotada. Atrás dele, homens de turbante já se juntavam nas arquibancadas de concreto, cumprimentando os amigos com uma mão sobre o coração e uma profusão de saudações. “Como vai? Como está a saúde? Como está a família? Como passou a noite?”. Enrolavam-se em seus cobertores de lã pardos para se proteger do frio do inverno e nos olhavam com expressões agressivas, acompanhando nossa subida a cada lance de bancos enquanto nos dirigíamos para o topo da arquibancada.

Do nada, surgiram cavaleiros no ar empoeirado. Sozinhos ou em pares, e perfilados como uma cavalaria se preparando para a guerra, eles iam chegando, tendo cavalgado de longe. Surgiam das ruas empoeiradas da cidade que se estendia para além da extremidade do campo e da terra seca que se espalhava ao redor. Vinham a passo, para não cansar os cavalos, figuras escuras movendo-se imperturbavelmente, convergindo para o campo de jogo; e, à medida que se aproximavam — de forma que da arquibancada conseguíamos ver seus turbantes, as mantas brilhantes de suas selas, as borlas chacoalhando nas rédeas de seus cavalos ariscos —, o ar ia ficando elétrico como se eles cavalgassem para nos envolver no campo de força de sua própria excitação. Alguns começaram a circular em frente à arquibancada, trotando, trombando uns contra os outros, correndo para lá e para cá. Caroline aplaudiu e disse: “Isso é que é buzkashi!”.

Dei uma espiada para trás e vi um cavalo branco trotando em direção à arquibancada. Seu cavaleiro trajava um turbante de seda clara e um acolchoado chapan de inverno; a longa veste das tribos do norte que vivem para além do Hindu Kush. Tinha listas escuras que, com o tempo, haviam desbotado, mesclando-se em um cinza parecido com o das metralhadoras. O presidente Karzai usa um chapan em cerimônias de Estado, com suas características listas verde-claras e roxas, parecendo sempre engomado e passado; mas Karzai utiliza-o na forma cerimonial, pendendo dos ombros e com as mangas extralongas estendendo-se como as franjas de um fraque. O cavaleiro usava seu chapan como um casaco, com as longas mangas descendo em dobras sobre os braços, e a orla cobrindo a garupa do cavalo branco, que também estava bem vestido, com rédeas e fivelas prateadas e uma manta de sela usbeque com listas brilhantes.

O cavaleiro esporeava o cavalo, mas o segurava com mãos firmes, de forma que o animal não podia fazer nada a não ser empinar. Ele dançava para cima e para baixo enquanto o cavaleiro fingia indiferença.

— Ele é o tooi-bashi — disse Caroline. — Um tipo de mestre de cerimônias, ou coisa do tipo.

— Mas o que ele faz? — perguntou Helen. Helen era enfermeira e vivia eternamente organizando as coisas. Ela gostava de saber como os sistemas funcionavam.

— Bem, o que você está vendo. Ele cavalga ao redor. Faz as coisas no lugar do tooi-wala — o cã que patrocina os jogos —, para que o cã possa ficar sentado e pareça importante. Suponho que seja algo cerimonial, mas sempre tem de parecer que há alguém no comando.

Tirei minha câmera do bolso quando o tooi-bashi passou bem abaixo de onde estávamos. Ele percebeu na hora. Puxou as rédeas e esporeou o cavalo para que ficasse de frente para mim. Através das lentes vi o cavalo retesar o pescoço e escancarar a boca, lutando contra o freio pontiagudo. Ele recuou, elevando seu cavaleiro, enquanto quem estava atrás corria para sair do caminho. Por um instante ficaram lá, no ar, o exótico cavaleiro e o cavalo de olhos arregalados com as patas no ar, emoldurados pela monótona extensão de planície poeirenta e pelas montanhas longínquas; depois, o cavaleiro relaxou o corpo e afrouxou as rédeas. Caroline ficou maravilhada. Ela mesma fora uma amazona, tempos atrás, e imaginava que ainda o fosse. Quando me voluntariei para vir ao Afeganistão ajudá-la em seu trabalho, enviei-lhe um e-mail perguntando sobre o tempo. “Como é o inverno em Cabul?”. Eu estava fazendo as malas. Precisava tomar decisões práticas. “Preciso de botas?”. A resposta, quando finalmente chegou, não dizia nada sobre o tempo ou sobre os enfadonhos tópicos de sapatos de inverno e casacos de frio adequados. Dizia: “Por favor, traga alguns bons descascadores de batata e ratoeiras para camundongos bem pequenos, que estão roendo as toalhas da cozinha. Se você quiser cavalgar, traga sua própria sela”. À medida que o inverno avançava, uma dúzia de descascadores de batatas sumiu da cozinha no bolso da cozinheira, além de uma dúzia de ratoeiras para camundongos bem pequenos, enquanto Caroline, perdida em seus devaneios, desfiava histórias de suas cavalgadas emocionantes pelos campos de Cabul quarenta anos antes. Naquele tempo, havia prados que se estendiam ao redor da cidade, de relva bem verde e canais de irrigação transbordantes, ideais para saltar. Isso fora antes do campo ser infestado de minas, claro. Antes dos ataques com mísseis e das bombas. Amontoadas diante da estufa à lenha no escuro escritório nas noites de inverno, partilhando uma refeição de sobras de arroz e pão, Helen e eu ficávamos ouvindo aquela voz borbulhante que vinha da escuridão. Percebi então, lentamente, que Cabul no inverno é um estado de espírito, uma mistura de memória e desejo que se ergue como a poeira ao vento para esconder o mundo como ele é.

— Ele não é maravilhoso? — disse Caroline.

O tooi-bashi estava se exibindo, esporeando o cavalo para lá e para cá, puxando o freio com força até que o animal empinasse de novo e saltasse mais uma vez para o chão. Guardei minha câmera no bolso e ele logo cavalgou para o outro lado.

— Você não lhe mostrou a foto — disse Helen.

— Ele não pediu. Não queria vê-la — respondi, pensando que nenhuma foto poderia se equiparar à imagem que ele deveria ter de si mesmo quando seu chapan era novo e tinha as listas brilhantes, e sua barba era negra e ameaçadora. — Ele só queria que alguém estivesse impressionado o suficiente para tirar sua foto.

— Não — disse Caroline. — Ele queria que todos vissem que estavam tirando uma foto dele. Mostra quão importante ele é. Quando as pessoas comentarem esse jogo, vão mencionar o nome dele.

— E vão mencionar a fotógrafa?

Caroline riu. — Os afegãos são muito criativos — disse. — Muito poéticos. Excelentes contadores de histórias. Ninguém amava os afegãos mais do que Caroline. Eles nunca faziam nada de errado. Ela também carregava na imaginação a imagem do altivo tooi-bashi e seu cavalo dançarino, pintando um quadro mais nítido — maior e mais belo — do que aquele que aparecia na fotografia digital, em que se podiam ver as orlas puídas da manta da sela e do chapan, a cicatriz na cara do cavalo, os fios grisalhos na barba do velho cavaleiro. Não se podia estar no Afeganistão por muito tempo sem aprender que os fatos são coisas sem importância. Que importa se você é velho e pobre, e seu cavalo é magro e ofegante? A apresentação é tudo, uma mostra de coragem que faz com que um velho, ou um país combalido, consiga atravessar tempos difíceis. Faça seu cavalo empinar e dançar, e conquiste a fama, fama que talvez ainda seja lembrada quando homens afegãos se reunirem à noite para contar histórias.

O tooi-bashi reapareceu montado em seu cavalo branco, desfilando pela beirada do campo de jogo até chegar diante do centro da arquibancada, a uma espécie de pavilhão coberto, atapetado e forrado de almofadas. Virou-se então para saudar um potentado barrigudo e barbudo que tinha acabado de chegar em um Toyota sedan branco e ocupado seu lugar na única poltrona na plataforma. Dignatários menos importantes e empregados espalharam-se pelos tapetes a seus pés.

— Veja o tooi-wala — disse Caroline. Nesse exato momento ele levantou a mão e, ao seu sinal, o tooi-bashi fez o cavalo retroceder novamente e virar-se para ficar de frente para o campo de jogo. Um grupo de cavaleiros destacou-se dos demais e cavalgou à frente para saudar o cã. Eram homens grandes, de feições duras, vestindo túnicas escuras, botas altas de couro preto e gorros de couro com bordas de pele, o chapandaz, a vestimenta dos jogadores profissionais de buzkashi. A maioria deles provavelmente vivia como agricultores a maior parte do ano, fazendo as tarefas pesadas do campo, mas quando chegava o tempo do frio e as colheitas já haviam sido armazenadas, a estação de buzkashi recomeçava, e um senhor de terras local mandava uma mensagem para os outros cãs, que, por sua vez, convocavam seus melhores cavaleiros. Os agricultores vestiam suas esporas e seus gorros de couro, montavam em seus cavalos e iam competir pelos prêmios oferecidos pelo generoso anfitrião — cortes de seda para turbantes e pilhas de dinheiro. Agora, obedecendo a algum sinal invisível, os chapandazan se enfileiraram junto ao círculo em que jazia o bezerro morto, enquanto ao redor deles se agrupara uma centena ou mais de impacientes cavaleiros — os cãs pelos quais os chapandazan cavalgavam e os empregados do cã, os sawarkaran. Os chapandazan conduziram adiante seus cavalos grandes, robustos, peito contra peito, e tudo pareceu parar enquanto os cavalos se comprimiam.

— Você consegue ver o que está acontecendo? — perguntou Helen.

— Eles estão tentando pegar o bezerro — disse Caroline. — Vê como eles se empurram?

— Só consigo ver poeira — disse Helen.

Um cavalo empinou, erguendo por um momento a cabeça e o peito acima do grupo. Outro cavalo relinchou estridentemente. Chicotes subiam no ar e despencavam sobre as ancas dos cavalos. O grupo inteiro se movia como se fosse um corpo só, ondulando para frente e para trás ao redor do círculo em que estava a carcaça. Avistei um chapandaz para imediatamente vê-lo desaparecer, inclinando-se, supus, entre as patas dos cavalos se debatendo. Então, de repente, toda aquela massa pareceu se desprender e alguns cavaleiros se desgarraram. Correram pelo campo e víamos o bezerro pendendo por uma perna das mãos de um chapandaz montado em um veloz cavalo preto. Um segundo chapandaz aproximou-se e inclinou-se na sela para agarrar a carcaça. “Todo bezerro tem quatro patas”, diz um antigo ditado afegão: há mais de um jeito de um homem esperto vencer. Os dois cavaleiros, com o bezerro suspenso entre eles, galoparam para além do limite do campo, até o banco na extremidade mais afastada, e fizeram a curva de volta em direção à massa de cavaleiros. Ao chegarem ao meio do campo, eles conseguiram se desgarrar novamente do grupo. O cavalo preto ainda liderava. O cavaleiro curvou-se bastante sobre a garupa do cavalo, depois projetou o corpo para a frente e arrancou o bezerro das mãos do outro chapandaz. Correu em direção às arquibancadas. Agora sozinho e livre do grupo e do cavaleiro rival, ele largou o bezerro diante do pavilhão do tooi-wala e distanciou-se com seu cavalo.

— Ele conseguiu! — exclamou Caroline.

O chapandaz vitorioso recebeu o dinheiro do tooi-bashi. Depois, apertou a cinta da sela, arrumando-a para a próxima corrida frenética, e virou novamente seu cavalo preto para o local onde jazia a carcaça mutilada. A sua volta, aproximaram-se os outros chapandazan e a grande massa de sawarkaran, enquanto garotos em esquálidos cavalos de carroça trotavam pelas beiradas do campo, prontos para a perseguição assim que o cavaleiro que apanhasse o bezerro desgarrasse do grupo, a galope.

— Não consigo ver nada — disse Helen. — É como tentar assistir a um estouro de manada.

Caroline riu e disse:

— É buzkashi.

O buzkashi é conhecido como o esporte nacional do Afeganistão, se é que se pode dizer que o caleidoscópico conjunto de clãs e tribos partilhe um passatempo nacional.90 Aqui, ao norte do Hindu Kush, onde as montanhas do Afeganistão Central dão lugar às estepes da Ásia Central, gerações de cavaleiros nômades correram através de campos sem limites, desolados, a não ser por manchas de grama aqui e ali, em que deixavam pastar seus animais. Alguns dizem que foram esses ferozes cavaleiros que inventaram o jogo de se bater a cavalo pela posse de uma carcaça, enquanto outros dizem que eles simplesmente o adaptaram do esporte praticado pelos invasores que acompanharam o mongol Gêngis Khan, que jogavam uma espécie de futebol equestre com uma cabeça humana. Os cavaleiros do norte lutavam por um bode, o buz de buzkashi. O bezerro mais robusto utilizado hoje resiste melhor e prolonga o jogo, e seu maior peso, talvez 50 quilos, exige mais do tamanho e da força tanto do cavaleiro como de sua montaria.

Senhores de terra e chefes locais afegãos há muito aumentam sua popularidade e seu poder patrocinando jogos de buzkashi, exatamente como fazia agora o gordo tooi-wala sentado na poltrona, mas, no passado, os encontros poderiam durar muitos dias. O cã local recrutava amigos e vizinhos para ajudá-lo a organizar as festividades e receber os hóspedes importantes. Ele enviava convites e preparava banquetes. Oferecia um prêmio em dinheiro e indicava um juiz para supervisionar a conduta dos jogadores, enquanto se sentava confortavelmente para assistir aos jogos, como um general contemplando o campo de batalha, bem à vista, para a admiração de seus convidados. Se os jogos fossem bem-sucedidos, isto é, se muitos jogadores comparecessem e nenhum contingente cavalgasse de volta para casa ofendido, o cã que os patrocinara teria sua reputação aumentada como um líder valoroso, que sabia como ordenar as coisas. Os cavaleiros, ao retornarem a seus lares distantes, iriam espalhar sua fama.

O buzkashi era tão importante para a vida política de algumas regiões do Afeganistão que, em 1972, um funcionário do Serviço de Relações Exteriores dos EUA em Cabul, abandonou sua carreira diplomática para escrever uma tese acadêmica sobre o jogo. Whitney Azoy era adido da embaixada quando, em uma reunião social do Ministério de Relações Exteriores afegão, um amigo afegão mudou sua vida com uma simples sugestão: “Se você quer realmente nos conhecer, vá a uma partida de buzkashi”.91 Azoy abandonou seu emprego de diplomata, ingressou em uma universidade americana e logo estava de volta, como um antropólogo recém-saído do forno, para visitar os campos de jogo. Pesquisa, segundo ele dizia. Encontrei uma cópia de sua tese, publicada em 1982, em uma estante em nosso escritório, carinhosamente dedicada a Caroline, companheira no amor pelos cavalos. Enfiada na cama, com a colcha puxada até o queixo, eu lia Buzkashi: Game and Power in Afghanistan (Buzkashi: Jogo e Poder no Afeganistão) à luz do lampião de querosene, como haviam feito todos os outros jornalistas estrangeiros que tentavam entender o país, e eu pensava nele agora, sentindo o vento gelado, sentada em um banco de concreto entre homens hirtos e silenciosos, de olhos grudados na agitação dos cavalos em meio à poeira que subia.

A luta a nossa frente era apenas o espetáculo superficial — um jogo de poder de primeira ordem — na análise acadêmica de Azoy. Por trás da batalha entre os chapandazan estavam os jogos de poder de ordem superior, em que se poderiam decidir os destinos de cãs e mesmo de reis e de ditadores comunistas. O chapandaz vencedor adquiria fama e mais seda para turbantes do que jamais poderia usar, enquanto o cã bem-sucedido ganhava mais seguidores, além de mais poder sobre seus vizinhos e sua região. Em 1953, ocorreu a Mohammed Daoud, o então ambicioso primeiro-ministro do Afeganistão, cujo governo chefiado por seu primo e cunhado, rei Zahir Shah, poderia consolidar seu poder patrocinando, na capital, o espetáculo simbólico tão popular no extremo norte do país. Para celebrar o aniversário do rei, o governo trouxe o buzkashi para o sul, através das montanhas, até Cabul.

Mas era um buzkashi do interior trazido para a capital, transformado de jogo selvagem em esporte regulamentado. Jogava-se no estádio Ghazi, com capacidade para 18 mil espectadores, onde, mais recentemente, os talibãs realizaram execuções públicas, confinado por muros de concreto. Havia hora certa para começar. Deveria ser jogado segundo novas regras escritas. O buzkashi tradicional exigia apenas que o cavaleiro carregasse a carcaça estando livre e desgarrado de todos os outros cavaleiros para vencer a rodada, mas o novo esporte exigia que ele cavalgasse por trás de uma bandeira na extremidade do campo e que depositasse a carcaça dentro de um círculo. O esporte foi chamado de qarajai buzkashi, sendo que o termo qarajai, ou “lugar escuro”, sugeria os novos limites espaciais que os tradicionalistas achavam realmente muito escuros. Os espectadores reclamavam que as novas regras reduziam o jogo a repetidas idas e vindas, mais parecidas com as do tênis do que com as do rodeio. A grande massa de cãs e sawar­karan a cavalo, que ao norte poderiam se reunir às centenas em um encontro animado, fora banida do campo de jogo. O buzkashi de Cabul restringia-se aos chapandazan e, pior, os chapandazan jogavam em equipes. Nos jogos selvagens do interior, um chapandaz poderia bloquear o rival de um outro, mas essa cooperação entre contendores era uma coisa entre homens, um com o outro, que tinha de ser conquistada. Era voluntária e fugaz. Uma equipe era algo completamente diferente e parecia estorvar um homem com alianças impostas. O Comitê Olímpico Nacional do Afeganistão selecionava os chapandazan para representar cada província e dava-lhes uniformes vistosos com peças combinando entre si, mas o conceito peculiar de trabalho em equipe nunca vingou. Por que ajudar outro homem quando se pode agarrar o bezerro e o prêmio para si próprio?

Em 1973, essa pergunta, aparentemente, se apresentou a Mohammed Daoud, a quem o rei havia aliviado das funções de primeiro-ministro. Enquanto o rei estava em viagem pela Itália, Daoud proclamou a nova República do Afeganistão e nomeou-se não só presidente, mas também primeiro-ministro, ministro das Relações Exteriores e ministro da Defesa. Cinco anos mais tarde, o próprio Daoud foi assassinado na Revolução de Saur (abril), que empossou Noor Mohammed Taraki como chefe de um regime comunista. O retrato de Taraki substituiu o de Daoud no estádio, e o torneio anual de buzkashi realizou-se, como de costume, em mais uma demonstração pública do poder do Estado.

Taraki era um ativista político de longa data e havia sido agente da KGB. Fundara o comunista Partido Democrático Popular do Afeganistão (People’s Democratic Party of Afghanistan) (PDPA) em 1965, apenas alguns anos antes dos intelectuais da Universidade de Cabul começarem a organizar sua contraditória versão de um futuro Estado islâmico. Mas os comunistas afegãos, sendo afegãos, não conseguiam se entender. Logo no início, dividiram-se em dois partidos: o Khalq (O Povo), partido linha-dura de Taraki, e o mais moderado Parcham (O Estandarte). Eles sabotavam as tentativas de golpe um do outro. Os moradores de Cabul brincavam que a diferença entre eles era apenas uma questão de moda: os khalquis ostentavam fartos bigodes pretos, enquanto os parchamis andavam barbeados.92 Talvez fosse verdade, pois, por fim, eles conseguiram se reunir e tomar o poder. Agora, subsidiado pelos soviéticos, Taraki estava impaciente para criar o novo, completamente moderno, Afeganistão de seus sonhos, organizado segundo as linhas do marxismo/leninismo. Mas, conforme observou Louis Dupree, no Afeganistão, Marx estava fadado a ser “mais Groucho que Karl”. A maioria dos camaradas do PDPA era de intelectuais, educados nos EUA, na União Soviética, na Europa e no Egito, e membros da classe média de Cabul. Seu país não possuía proletariado industrial — 85% dos afegãos eram camponeses e nômades analfabetos —, então eles tiveram de impor às massas, de cima para baixo, uma “revolução pela base”, da capital, relativamente sofisticada, aos vilarejos tribais do interior. Eles se voltaram para o exército para fazer o serviço e para impor aos camponeses a nova “ideologia da classe trabalhadora” promulgada pelos funcionários do governo.93 Anos mais tarde, em seu exílio na Itália, o rei Zahir Shah observou que enviar jovens afegãos para serem educados na União Soviética fora “um erro”.94Ele poderia ter dito o mesmo a respeito daqueles que foram ao Egito e voltaram como islamitas. A resistência começou imediatamente e espalhou-se pelo país. Em Herat, milhares morreram em protestos contras as novas políticas do governo, especialmente a proposta revolucionária de que um programa nacional compulsório de alfabetização incluísse garotas e mulheres.

Os soviéticos estavam determinados a fazer com que a experiên­cia afegã com o comunismo não fracassasse. Eles rapidamente enviaram “conselheiros” para diluir as políticas do PDPA, de modo a torná-las mais palatáveis aos cidadãos. Mas a essa altura as facções do PDPA já haviam novamente se desentendido. Os khalquis de Taraki usaram seu momento no poder para obliterar oponentes potenciais: funcionários do antigo regime, ativistas políticos, islamitas, mulás, maoístas, professores, estudantes, oficiais do Exército, burocratas, grupos étnicos desafetos e os bem barbeados camaradas de convicções parchamis. O reinado de terror acarretou prisões em massa, desaparecimentos, traições, tortura, execuções e encarceramento de milhares; a notória prisão de Pul-i Charkhi, rodeada de covas coletivas. Clãs inteiros foram executados, vilarejos inteiros massacrados.95 Tratava-se de um buzkashi político, jogado sujo e para valer.

O presidente Taraki foi o próximo. Em poucos meses, seu próprio vice-presidente, Hafizullah Amin, que havia organizado o violento golpe comunista que depusera Daoud, organizou também o assassinato de Taraki e muitas execuções mais, empenhando-se em acelerar o ritmo para se chegar até o fim da lista de inimigos.96 O número de membros do PDPA era pequeno, nunca passando de cinco mil homens, mas, antes que os camaradas tivessem terminado, já haviam matado, segundo seus próprios relatórios, mais de 12 mil pessoas presas em Pul-i Charhi. Posteriormente, relatórios preparados por outros elevou o número de execuções entre a revolução de abril de 1978 e a invasão soviética de 1979 para 27 mil. Adicione-se o número de pessoas assassinadas e desaparecidas no interior, e o total de cidadãos “desaparecidos” sob o regime khalqui e isso sobe para algo em torno de 50 mil e 100 mil.97 Apesar da eficiência assassina de Amin — ou, talvez, por causa dela, os soviéticos concluíram que Amin, que estudara nos EUA, estava “trabalhando para a derrota da revolução e servindo à desordem e ao imperialismo”.98 Eles suspeitaram, então, como muitos afegãos até hoje, que ele era pago pela CIA. Àquela altura, o secretário de Estado americano Zbigniew Brzezinski também estava “trabalhando para a derrota da revolução”, começando um programa secreto para ajudar os contrarrevolucionários afegãos, os mujahidin islamitas. Seu plano maligno era arrastar os soviéticos para uma guerra no Afeganistão que não poderiam vencer, dar aos soviéticos “seu Vietnã” e parece ter funcionado.99 Em 27 de dezembro de 1979, três meses após ter chegado ao poder, Amin foi morto por soldados russos, levados de avião, que invadiram o palácio. Eles controlaram Cabul e instalaram um novo presidente títere, Babrak Karmal. No dia seguinte, divisões motorizadas russas atravessaram o rio Amu Darya, o Oxus dos tempos antigos, na fronteira norte do Afeganistão, e tomaram o resto do país.

O buzkashi continuava como sempre. O Campeonato de Buzkashi de Cabul de 1980 foi apresentado como uma celebração da Revolução de Saur, que primeiro guindara os comunistas ao poder. O títere Karmal vestiu-se de chapandaz para a imprensa. Seu vice-presidente fez um retumbante discurso em que proclamava o buzkashi “uma manifestação do espírito de luta de nosso povo”.100 Mas, em todo o país, as pessoas lutavam contra os invasores soviéticos. De Dasht-i Shadian, em Mazar-i Sharif, o verdadeiro lar do buzkashi, o local que Azoy chama de Yankee Stadium do jogo, veio a notícia de que cinquenta sol­dados soviéticos, convidados a assistir uma partida, haviam sido mas­sacrados no local. Em 1982, os torneios em Cabul estavam can­celados, e reuniões de cavaleiros foram proibidas em todo o país. De seus helicópteros, atiradores russos acertavam homens a cavalo.

Se acreditarmos em Zbigniew Brzezinski, os EUA merecem crédito não apenas por haverem secretamente atiçado uma guerra de dez anos no país dos outros, mas, em primeiro lugar, por a terem iniciado.101 Diz-se que Stansfield Turner, diretor da CIA na época, preo­cupava-se com a possibilidade dos EUA terem a intenção de “lutar até o último afegão morto” e questionava se era correto “utilizar a vida de outras pessoas para os interesses geopolíticos dos Estados Unidos”.102 Mas o guerreiro frio Brzezinski parecia estar livre de tais escrúpulos, e também Turner concordou com o programa. Então, quando os invasores soviéticos partiram, os EUA, como um gordo tooi-wala, deram apoio aos mujahidin para mais algumas rodadas na partida. Quando os americanos decidiram sair do jogo e deixar o Afeganistão em 1992, quase dois milhões de afegãos haviam sido mortos, de acordo com a ONU, e outros 600 mil a dois milhões, mutilados. Mais de seis milhões de afegãos haviam fugido para o Paquistão e o Irã, tornando-se a maior população de refugiados de uma única nacionalidade. Mais dois milhões de afegãos haviam se tornado refugiados internos, em fuga dentro de seu próprio país. E pelo menos um milhão e meio havia ficado insano devido à guerra incessante. Considerando que, na época da invasão soviética, havia apenas 16 milhões de afegãos, para começo de história, os números da ONU mostram que, em meio às guerras fratricidas, 50% da população do Afeganistão já havia sido morta, ferida, expulsa de casa ou perdido a razão. E as batalhas ainda continuavam.

Na volta do estádio, um homem nos ofereceu carona até o hotel. Ele contou que se graduara em Educação pela Universidade de Cabul e se tornara professor em Mazar; mas, quando o Talibã chegou ao poder, queimou as escolas e matou vários dos professores, ele fugiu para o Paquistão com a família. Havia voltado e montado uma empresa de construção, reconstruindo escolas aparentemente com lucro (a fonte do capital era sempre um mistério). “Precisamos que forças internacionais assumam o controle”, disse. “Precisamos que elas nos mantenham em ordem até que possamos desarmar o país. Temos de desarmar o país, mas, infelizmente, não conseguimos fazê-lo.” Ele silenciou por um instante, refletindo sobre esse enigma, e depois passou a explicar. “Todos nós matamos pessoas, entende?” Ele falava como se fosse algo trivial. “O pai de alguém, a irmã, a filha, o irmão. Então estamos todos sujeitos à vingança. Não podemos baixar as armas porque somos todos culpados. Sou um tajique, não um pasthun, mas esse é um problema para todos nós. É nosso código. O que podemos fazer?”

Pensei na meia-dúzia de jovens soldados americanos, assustados, que haviam perambulado pelo nosso jogo de buzkashi. Trajando coletes antibala e vestimenta de combate completa, haviam entrado no pavilhão do tooi-wala com suas armas automáticas engatilhadas. Os homens afegãos a nossa volta permaneciam sentados perfeitamente imóveis, mas observavam os soldados trocando algumas palavras com o tooi-wala e seus homens. Então, três dos soldados entregaram suas armas e se encaminharam para o campo. A um sinal do tooi-wala, três afegãos desmontaram e levaram seus cavalos para os soldados. Um soldado lutou para conseguir montar, ajudado por um afegão, enquanto o cavalo caminhava em círculos. Mal se ajeitara na sela quando o cavalo, a galope, saiu em disparada. Um afegão perseguiu-o, agarrou as rédeas, freou o fugitivo e ajudou o soldado a descer. Um segundo soldado foi carregado em outra direção e jogado no chão. O terceiro soldado pensou bem sobre a situação, devolveu ao afegão o cavalo que lhe fora oferecido e caminhou até o pavilhão para pegar sua arma.

— Minha nossa — disse Caroline. — Temo que eles tenham feito um papelão.

Helen defendeu-os:

— Veja como eles levam a coisa na esportiva — disse.

Os dois primeiros soldados voltavam para o pavilhão, andando com ar superior e seus curiosos uniformes parecendo justos demais, e agora estavam rindo, um pouco forçado, com os homens do cã.

— Eles são tão jovens — disse Caroline. — Não acho que soubessem no que estavam se metendo.

Mais tarde eu os vi novamente no mercado, formando um semicírculo entre as lojas e as barracas e, de fato, eles pareciam jovens, apontando suas armas para uma multidão de mulheres de Mazar em burcas brancas, que se comprimiam em silêncio como uma reunião de fantasmas. Os soldados haviam estabelecido um perímetro no centro do mercado, em volta de uma loja em que o tenente estava comprando tapetes. Eles tinham o controle.

De volta a Cabul, onde todo mundo estava falando da ameaça de Bush de invadir o Iraque, persuadimos Caroline a alugar um aparelho de televisão para assistirmos aos noticiários internacionais. Ela saiu com Hasan e voltou com um modelo portátil e um disco para satélite. Instalamos a TV em um salão com janelas grandes que não usávamos, no segundo andar, acima do escritório. Era um aposento de pé direito alto, tendo dos dois lados amplas janelas para aproveitar o sol de inverno. Os afegãos o chamam de gulkhana. Um aposento para flores. Deveria ser nosso escritório, mas, como a poluição de Cabul cobria o sol com grande frequência, o aposento raramente ficava quente o suficiente para que pudéssemos trabalhar nele. Assim, trabalhávamos no andar de baixo, perto da estufa a lenha, e essa sala ficava vazia. Era meu lugar favorito. A vista dava para o oeste, sobre os telhados baixos de Share Nau e uma velha cidadela logo adiante, para as montanhas distantes da cadeia do Paghman. Frequentemente vinha aqui, ao amanhecer, para admirar as encostas cobertas de neve irem se transformando na cor dos flamingos para depois empalidecerem de novo, assumindo tons de branco-pérola. Ao fim da tarde, vinha aqui para ler, enrolada em um pattu de lã, encolhida em uma das grandes poltronas vermelhas, lançando os olhos de vez em quando para as montanhas que iam escurecendo, até que a claridade desaparecia e eu fechava meu livro e me perdia ao vê-las sumir, lentamente, dentro da noite.

Então já seria quase a hora dos telejornais, e Helen vinha se juntar a mim. Ligávamos o gerador do terraço do lado de fora, raramente tínhamos eletricidade e assistíamos a TV. Sintonizávamos da BBC World Service, EuroNews, Al-Jazeera, Al-Arabia, Deutsche Welle, às transmissões em inglês da TV iraniana e a qualquer outro noti­ciário que conseguíssemos pegar. Famintas por notícias, tornamo-nos exímias surfistas de controle remoto, deslizando entre as manchetes aqui e ali, pegando as ondas que pareciam melhores, em todos os canais, em todas as línguas, em direção ao desastre certo. De outro quarteirão, ouvíamos a voz do mulá, amplificada e projetada na rua abaixo, vinda da grande mesquita na esquina, condenando (segundo a tradução de um vizinho) os infiéis causadores das guerras, os sanguinários demônios cristãos e sua cruzada, e Bush, o Grande Satã.

Certa noite, por acaso, paramos para assistir ao noticiário da Fox News e à versão americana oficial: o Afeganistão, agora em paz, fora reconstruído. Ficamos horas xingando e vituperando a TV, mas, pelo menos daquela vez, não conseguíamos mudar de canal. A Fox News nos informava que os EUA haviam bombardeado o Afeganistão para salvar o povo do maligno regime talibã, e que o Talibã havia sido completamente derrotado.103 Mas àquela altura, em fevereiro de 2003, os talibãs ainda lutavam perto de Kandahar e a leste, próximo de Jalalabad. E para repelir o inimigo americano eles haviam, há muito tempo, se juntado à Al-Qaeda e — será que ele nunca iria desaparecer? — a Gulbuddin Hekmatyar. Quando deixei o país, em 2005, eles ainda lutavam. O Talibã havia sido, afinal de contas, um regime poderoso que se espalhara pelo país e eliminara ou cooptara quase todos os comandantes mujahidin de que tanto tinham gostado os EUA. Nem demonizar o regime, nem mudá-lo, poderia fazer o Talibã esvaecer. Muitos talibãs haviam raspado as barbas, mudado a cor de seus turbantes e se misturado à população. Alguns ainda estavam no governo. Muito da propaganda talibã penetrara a mente dos homens e criara raízes. A Fox News também nos dizia que as mulheres do Afeganistão haviam sido libertadas, que haviam tirado suas burcas e voltado às escolas. No entanto, o presidente da Suprema Corte — um daqueles tipos talibãs ainda no governo — acabara de condenar, publicamente, a educação igualitária como sendo um “mal”. Em Herat, o chefe local/governador Ismail Khan proibira homens de ensinar garotas, e a escola para meninas havia fechado. Em Jalalabad, na semana anterior, bombas haviam destruído duas escolas para meninas, e uma professora fora assassinada. Caroline ainda mantinha no bairro as escolas para meninas que iniciara no tempo do Talibã, porque os pais achavam que não era seguro deixá-las ir a pé até as escolas públicas. Toda semana havia notícias de garotas sequestradas nas ruas de Cabul. Ainda no dia anterior, em plena luz do dia, Hasan vira dois soldados afegãos empurrarem para dentro do carro uma burca que se debatia desesperadamente.

Quanto à paz que os EUA haviam trazido ao Afeganistão, a embaixada americana em Cabul era uma fortaleza proibida, escondida atrás de muros de concreto e sacos de areia, cercada de arame farpado e de guardas armados esperando um ataque. Isso foi antes dos EUA começarem a construir sua nova fortaleza-embaixada de um bilhão de dólares, cuja maior parte é subterrânea. E, em toda parte em Cabul, as ruas estavam repletas de homens armados: soldados afegãos, soldados americanos, soldados da ISAF — alemães, britânicos, holandeses, turcos, da força internacional de segurança. Os soldados da ISAF deslocavam-se rapidamente pelas ruas em comboios de veículos blindados; soldados com capacetes ocupando a torre rotatória da metralhadora. Às vezes, acidentalmente, atropelavam alguém. E havia também os desconhecidos, muitos em uniformes estranhos — cinzas, verdes, azuis, marrons — e muitos usando trajes civis pretos e viseiras. Quem eram? A quem respondiam? Quem sabia? Meses antes, o governo de Karzai prometera desarmar as milícias privadas dos chefes locais em todo o Afeganistão. Isso incluía a milícia do general Dostum, o líder usbeque ao norte, e de seu rival tajique Atta Mohammed; mas apenas na semana anterior um homem de Dostum assassinara a mulher e a filha de um dos braços-direito de Atta. Os dois lados “desarmados” haviam encontrado armas suficientes para reiniciar a guerra, e quem iria detê-los? Tanto Dostum como Atta eram membros do gabinete de Karzai. Esse é o mesmo Dostum que lutou ao lado de Massoud, em 1992, para salvar Cabul de Gulbuddin Hekmatyar e que depois, em 1994, se juntou a Gulbuddin contra Massoud e o governo Rabbani para bombardear, mais uma vez, a cidade em ruínas. Ao longo dos anos ele havia lutado ao lado de quase todo mundo e contra quase todo mundo, e, ao final, eles todos haviam sido derrotados e expulsos do país pelos vitoriosos talibãs, sob os aplausos de muitos afegãos que já estavam cansados da anarquia, das atrocidades e dos exílios impostos pelos mujahidin. Mas os EUA, mais uma vez entendendo tudo errado, rea­bilitaram os desacreditados comandantes ao convidá-los para uma conferência em Bonn, em dezembro de 2001, para que se reconstituíssem como o novo regime afegão. Em março de 2005, o presidente Karzai, o mesmo presidente Karzai que havia repetidamente prometido desarmar os chefes locais, nomearia Dostum chefe do Estado-maior do Exército; e o embaixador americano Khalilzad elogiaria a escolha. A presença de homens como Dostum no gabinete — homens que bem poderiam ser julgados por crimes de guerra — era uma característica peculiar da paz afegã.

O Afeganistão, soubemos pela TV, fora “reconstruído” graças a milhões de dólares em ajuda internacional que inundaram o país. Onde é que estava essa ajuda? Essa fora a pergunta que ouvíramos ser feita ao embaixador americano Finn apenas algumas semanas antes. Em uma grande reunião de agências de ajuda internacional no Ministério das Relações Exteriores, o chefe afegão de uma ONG afegã levantara-se e vociferara sua pergunta grosseira, ingrata, ao embaixador, que estava, naquele exato momento, desenvolvendo sua explanação sobre tudo o que a ajuda americana estava fazendo pelo Afeganistão. “Onde é que está a ajuda?”, perguntou o afegão. “Nós não a vimos.” Um silêncio constrangido tomou o salão. Todos os estrangeiros presentes sabiam como a ajuda funciona: a maioria vai para manter os peritos, empreiteiros e burocratas das nações “doadoras”, fornecendo amparo (e mais artifícios fiscais) aos ricos sob a aparência de ajuda aos pobres. O embaixador Finn explicou ao impaciente afegão que a “parte do leão” havia sido gasta em necessários “custos iniciais”, tais como alugar e reformar “instalações de trabalho adequadas” — todos aqueles lindos casarões — e equipá-las de forma a apresentarem “padrões apropriados” para moradia e trabalho dos estrangeiros. Talvez no ano que vem, disse, os benefícios da ajuda chegariam até os afegãos comuns. Dois anos e meio depois, um candidato ao parlamento afegão iria basear sua campanha no slogan: “Para onde foi o dinheiro?” Mas, naquele momento, houve um congelamento não-oficial de atividades humanitárias em Cabul; ninguém sabia se os fundos necessários para reconstruir o Afeganistão seriam de fato enviados, ou se os programas já iniciados seriam terminados. A ajuda internacional, como se apresentava, estava suspensa ou minguando, desviada para a iminente guerra no Iraque.

A Fox News continuava descrevendo a “missão cumprida” em um lugar que eles chamavam de ­Afeganistão, um país absolutamente diverso daquele em que vivíamos. Certa noite, sentadas no escuro para economizar energia do gerador para a TV, ouvimos um intelectual “zé-ninguém”, direitista, pró-guerra e explicar que os EUA poderiam prontamente reparar qualquer dano incidental à infraestrutura do Iraque, exatamente como haviam feito no Afeganistão. Segurança, água, eletricidade, todas essas coisas a cuja privação os habitantes de Cabul haviam se habituado, seriam restabelecidas em Cabul, disse ele, “sem qualquer demora”. Mesmo ao clarão tênue da TV, pude ver que Helen estava chorando.

— Por favor, podemos colocar de novo na BBC? — perguntou. Nunca mais assistimos ao noticiário da Fox News.

Naquele momento, não saberíamos que há um ano a Casa Branca vinha retirando do Afeganistão os espiões e as forças especiais americanas, antes destinadas à Al-Qaeda, reunindo-os secretamente para a cruzada contra o Iraque. O número de americanos no país nunca fora muito elevado, pouco mais de 100 agentes da CIA e 300 membros das forças especiais, mas a essa altura a CIA já deixara Herat, Mazar-i Sharif e Kandahar; o contingente da Força Tarefa 5 (Task Force 5), o comando secreto que supostamente caçava Osama bin Laden na fronteira com o Paquistão, fora reduzido a um mínimo.104 Contudo, à noite, ouvíamos os aviões de guerra. O ronco surdo dos grandes aviões cargueiros fazia tremer as janelas e nos acordava, e, depois, ouvíamos os caças zunindo, voando bem alto. Parecia haver mais deles, agora, todas as noites, pouco antes da aurora. Não iria demorar muito para que eu, sentada em frente à televisão no escuro, enrolada em meu pattu, assistisse as bombas sendo despejadas sobre Bagdá.

Na manhã seguinte ao início dos bombardeios, desci para a rua como de costume e encontrei Sharif sentado no carro, estacionado junto ao meio-fio. Como é que eu poderia dizer “Salaam aleikum” — a paz esteja com você — quando meu país acabara de iniciar uma guerra? Em vez disso, cumprimentei: “Chittur asti?” — como vai? — e sentei no banco da frente. Ele não respondeu. Não retornou a saudação. Isso em uma língua e em um país em que saudações rituais são uma cerimônia tão essencial à vida quanto o ar. O choque do silêncio de Sharif deixou-me sem fôlego. Ele engatou a marcha e fomos sacolejando pela rua, passando pela mesquita onde o alto-falante berrava mais uma mensagem do mulá, embora a hora da oração já tivesse terminado há muito. “Hoje é um dia diferente”, pensei, embora o sol fraco inundasse o ar empoeirado da manhã, espalhando a mesma tênue luminosidade cinzenta de ontem e de anteontem. Sharif acintosamente ligou o rádio para ouvir as notícias em dari e colocou o volume no máximo.

Olhei-o mais de perto, esse homem com quem partilhara o percurso matinal todos os dias, durante meses. Ele havia conquistado muita coisa. Mas eu sabia o preço que ele pagara por isso. Sharif contara-me a história e, certo dia, Caroline havia me levado para visitar o lugar onde ficava a fazenda da família dele, próxima a Paghman, um agradável vilarejo na encosta de uma colina onde o rei Amanullah construíra seu palácio de verão e compartilhara piqueniques com a elite de Cabul. Andáramos até o fim do vilarejo e subimos a encosta suave do sopé, bem abaixo das montanhas da cadeia do Paghman, onde outrora ficara a casa da família. Era um lugar bonito, irrigado por canais ligeiros, protegidos pelas montanhas e aquecido, mesmo no inverno, pelo sol do leste. Fora lá que certo dia, durante a ocupação soviética, o pai de Sharif fora estraçalhado por uma mina plantada perto de uma amoreira, no pomar atrás da casa. Os soviéticos sabiam que os agricultores afegãos gostavam de se agachar perto de uma árvore quando queriam se aliviar, e era ali que eles colocavam as minas. Tempos depois, quando os soviéticos já haviam concordado em deixar o país, eles atravessaram com tanques o vilarejo de Paghman uma última vez e bombardearam, só de pirraça, as vilas abandonadas da classe alta de Cabul. Parte da pequena casa de fazenda fora destruída. E, ainda depois, quando os soviéticos já haviam partido e os afegãos lutavam entre si, um míssil solitário veio assobiando pelo céu azul, em um ensolarado dia de inverno, e caiu no jardim atrás da casa em que o irmão mais velho de Sharif estava conversando com o avô, enquanto uma garotinha, uma vizinha, sentada no muro do jardim, conversava com a vaca leiteira da família. Depois da explosão, o avô de Sharif ficara desorientado e confuso. A vaca, a garota e o irmão mais velho de Sharif morreram. Quando me contou essa história, Sharif disse: “Daí eu tenho que sair da escola. Eu tenho que ser avô e pai e irmão velho”. Ele tinha cerca de 14 anos na época e, desde esse momento, tomara conta do que sobrara de sua família.

Ele tinha vindo a Cabul trabalhar para Caroline, que conhecera a família nos velhos tempos, antes dos soviéticos, quando ela fazia parte de uma elite de expatriados que passavam os verões nas colinas de Paghman. Durante o período do Talibã, a polícia havia prendido Sharif 15 vezes por ele trabalhar para a americana infiel. Toda vez, ele pagava para ser solto, e a cada vez o preço subia. Ele entregou à polícia 15 mil afeganis, tudo o que possuía. Na vez seguinte, Caroline pagou dois mil dólares para o soltarem. Mas eles o prenderam de novo e o mantiveram encarcerado por vinte dias. Acusaram-no de ser cristão. Para fazê-lo confessar, haviam golpeado seus pés com cabos de aço e quebrado seus ossos. Seus pés ainda doíam, dizia. Usava sapatos grandes e largos. Mas durante todo esse tempo ele tomara conta de seu irmão mais novo, Kabir, ajudando-o na escola, levando-o às aulas de inglês, vigiando-o de perto e incitando-o a fazer coisas que o próprio Sharif talvez tivesse feito se as coisas tivessem sido diferentes.

Inclinei-me e baixei o volume do rádio:

— Você está muito zangado esta manhã, Sharif — disse. — É por causa dos bombardeios, não é?

Ele ficou quieto por um longo tempo, mordiscando a ponta dos bigodes.

— Vocês bombardeiam o Afeganistão. Muitas pessoas mortas. Mas nós também felizes que o Talibã vai embora. Vocês dizem que nos ajudam. Agora vocês bombardeiam o Iraque. Vão pegar petróleo. O próximo talvez Irã? Síria? Vocês vão bombardear nossos irmãos em toda parte?

— Eu não sei — respondi.

— Vocês já esquecem do Afeganistão — disse. — Como antes. Os russos vão embora. Os americanos vão embora. O que é que vocês se importam com o Afeganistão? Nada. Deixa eles lutarem. Deixa eles se matarem. Vocês podem assistir. Que nem luta de galo no Babur’s Garden. — Sharif colocou uma fitacassete no toca-fitas e uma voz aguda, cortante, encheu o silêncio com uma tristeza indescritível. Era um conhecido lamento Shi’a sobre o assassinato do filho do califa Ali e de seu neto infante nas planícies de Kerbala, cantado por uma mulher cuja voz parecia vergar sob o peso da dor. Ele havia escutado essa canção antes, no dia frio e chuvoso em que me levara ao vale do Panjshir para ver o lugar em que estava enterrado Massoud. Era a música mais triste que eu já ouvira.

— Vocês americanos — disse Sharif, — vocês são crianças. Vocês pensam só no hoje. E os próximos anos? E as promessas que vocês fizeram o ano passado?

Então era isso. Ele acreditara na promessa americana, que dessa vez não abandonaríamos seu país, e nós o havíamos traído. Prometêramos ajuda que a maioria não conseguia ver. Prometêramos uma reconstrução que não aconteceu. Prometêramos uma nova democracia e instalamos no governo os mesmos velhos chefes locais. Prometêramos uma paz que não veio. Prometêramos lealdade, que não durou mais do que as alianças do general Dostum. E, apesar de tudo, Sharif teria sido leal aos EUA e ao presidente Karzai se tivéssemos lhe dado a oportunidade.

— Eu sinto muito, Sharif — disse. — Eu também estou zangada. A música subia a nossa volta, trazendo-me lágrimas aos olhos. — Por favor, não fique zangado comigo, Sharif. Esse homem, o Bush, que faz essas coisas, ele não é meu presidente.

Sharif parou o carro, entalado no tráfego atrás do hospital italiano. Virou-se para mim, mudo, a expressão cheia de tristeza e desdém, e percebi que ele me avaliava exatamente por aquilo que eu era: mais uma americana que não assumiria a responsabilidade pelo que meu país fazia com o mundo. E eu também o vi: mais um jovem afegão muito velho, sozinho, os pés destruídos, em um jardim gelado onde sabe-se lá o que poderia cair do céu.

1 Chris Johnson e Jolyon Leslie, Afghanistan: The Mirage of Peace (London: Zed Books, 2004), p. 11.

 

2 Powell “se preocupava” com o fato de que muito do bombardeio do Afeganistão fosse “bombardeio pelo bombardeio, sem relação com um objetivo militar”. Bob Wooodward, Bush at War (New York: ­Simon & Schuster, 2002), p. 175, 275. Esse bombardeio pode constituir crime de guerra, tendo sido realizado sem levar em consideração a população civil nem o princípio de proporcionalidade do Direito Internacional – de que “uma proporcionalidade razoável exista entre o dano causado e o ganho militar pretendido”. Ver Mahmood Mamdani, Good Muslim, Bad Muslim: America, the Cold War, and the Roots of Terror (New York: Doubleday, 2004), p. 183.

 

3 Roland e Sabrina Michaud, Afghanistan: The Land that Was (New York: Harry N. Abrams, n.d.), p. 246. A fotografia aparece nas páginas 84-85.

 

4 Nancy Hatch Dupree, An Historical Guide to Afghanistan (Kabul: Afghan Tourist Organization, 1970), p. 27.

 

5 Nancy Hatch Dupree, p. 24.

 

6 Dominic Medley e Jude Barrand, Kabul: The Bradt Mini Guide (Chalfont St. Peter, UK: Bradt Travel Guides, 2003), p. 136.

 

7 Ahmed Rashid, Taliban: Militant Islam, Oil and Fundamentalism in Central Asia (New Haven: Yale University Press, 2001), p. 207.

 

8 John K. Cooley, Unholy Wars: Afghanistan, America and International Terrorism, 3rd ed. (London: Pluto Press, 2002), p. xiii-xiv.

 

9 Karen Armstrong usa essa frase em The Battle for God (New York: Alfred A. Knopf, 2000), p. 239.

 

10 Sayyid Qutb, “‘The America I Have Seen’: em the Scale of Human Values (1951)” em America in an Arab Mirror: Images of America in Arabic Travel Literature, An Anthology (1895-1995), ed. Kamal Abdel-Malek (New York: St. Martin’s Press, 2000), p. 9-28. Visitantes mais recentes expressam as mesmas críticas. Vejamos, por exemplo, o caso do romancista egípcio Sonallah Ibrahim, que lecionava literatura árabe em Berkeley, em 1998: “Desprezo o individualismo total, o controle das multinacionais, a manipulação da mídia sobre o cidadão comum, os valores de vida, o viver apenas para comer, beber, transar, ter um carro, e só. [...] Não há valores morais, não há atitudes que mostrem uma visão aberta em relação ao que acontece no mundo, nem qualquer noção do papel que os Estados Unidos estão desempenhando, tentando controlar os recursos mundiais”. Ibrahim estava cansado da “estupidez genuí­na do cidadão americano normal. Ele é ignorante. Não sabe o que o próprio país está fazendo no mundo”. David Remnick, “Letter from Cairo: Going Nowhere”, The New Yorker, 12 e 19 de julho de 2004, p. 80.

 

11 Hamid Algar sugere que o ministro da Educação egípcio enviou Qutb aos Estados Unidos na tentativa de modificar a crítica social, cada vez mais islamista, que Qutb realizava no Egito, mas a experiência absolutamente “negativa” que teve surtiu o efeito oposto, levando-o a abraçar definitivamente o Islã. Ver sua introdução ao livro Social Justice in Islam, de Sayyid Qutb, traduzido por John B. Hardie, revisado e com uma introdução de Hamid Algar (Oneonta, N.Y.: Islamic Publications International, 200), p. 2.

 

12 Armstrong, The Battle for God, p. 238. Ver também Sayyid Abul A’la Mawdudi, Let Us Be Muslims, ed. Khurram Murad (London: Islamic Foundation, 1985). Mawdudi foi o primeiro a rejeitar a esperança reformista de se conseguir alguma acomodação entre o Islã e a modernidade ocidental. Para se opor ao fundador da Liga Muçulmana do Paquistão, o leigo Mohammed Ali Jinnah, Mawdudi fundou a Jamaat-i Islami (Sociedade Islâmica) do Paquistão que, mais tarde, ajudou os partidos islamitas radicais do Afeganistão no exílio. Sobre o início da vida e as posteriores atividades políticas de Mawdudi no Paquistão, ver Tariq Ali, The Clash of Fundamentalisms: Crusades, Jihads and Modernity (London: Verso, 2002), p. 170-178, e Cooley, p. 35-38.

 

13 Sayyid Qutb, Milestones (New Delhi: Millat Book Centre, n.d.), p. 61.

 

14 Para uma discussão sobre as ideias de Mawdudi e Qutb, ver Mamdani, p. 45-62; e Armstrong, The Battle of God, p. 236-244, 291-294, e Islam: A Short History (New York: Modern Library, 2002), p. 168-70. Armstrong observa que a ênfase de Qutb na jihad violenta distorce tanto o Corão, que “se opõe de forma absoluta ao uso da força e da coerção em assuntos religiosos”, quanto a vida do Profeta, Islam, p. 169-170; The Battle of God, p. 243.

 

15 Entrevista por telefone, em 1 de agosto de 2002. O professor falou de maneira não-oficial e solicitou permanecer anônimo.

 

16 Não confundir com a Jamaat-i Islami do Paquistão fundada por Abul A’la Mawdudi. Mawdudi equiparava a modernidade ocidental à jahiliyya (barbárie), uma alusão à ignorância pré-islâmica combatida pelo próprio Profeta. Sayyid Qutb, por outro lado, estabelecia uma distinção entre a jahiliyya da ocidentalização e o que ele chamava de “modernidade”, que oferecia tecnologia e que poderia ser útil às sociedades islâmicas. Ao abraçar o modernismo, a Jamiat-i Islami do Afeganistão se alinha, de maneira mais próxima, aos ensinamentos de Qutb.

 

17 Barnett R. Rubin, The Fragmentation of Afghanistan: State ­Formation and Collapse in the International System, 2nd ed. (New Haven, Conn.: Yale University Press, 2002), p. 83. Os habitantes de Cabul geralmente se referem a Gulbuddin Hekmatyar pelo primeiro nome, como se ele fosse um inimigo particularmente íntimo. Sigo o exemplo deles.

 

18 Gulbuddin é membro dos pashtuns Ghilzai do Afeganistão oriental, que são rivais dos dominantes pasthuns durranis do sul – que incluem a família Karzai e os líderes do Talibã.

 

19 Rubin, p. 83-84. Um segundo partido islâmico Hizb-i Islami foi liderado por Younis Khalis, um acadêmico islâmico mais velho que dirigia uma madrassa e que era muito respeitado entre os pashtuns. O mulá Omar, mais tarde o líder do Talibã, era um dos membros. A distinção entre os dois partidos é geralmente feita com base no nome dos líderes. A menos que contrariamente indicado, todas as referências, neste livro, ao Hizb-i islâmico indicam o Hizb-i islâmico de Hekmatyar.

 

20 Robert D. Kaplan diz que o general paquistanês Zia ul-Haq preferia Hekmatyar porque, não tendo “praticamente nenhum apoio popular, nem base militar” no Afeganistão, Hekmatyar ficava “totalmente dependente da proteção e da generosidade financeira (cortesia dos contribuintes americanos) de Zia” e podia, assim, ser controlado. “Hekmatyar... era a clássica criação artificial de um poder externo.” Soldiers of God: With the Mujahidin in Afghanistan (Boston: Houghton Mifflin, 1990), p. 69. Em maio de 1979, meses antes de os soviéticos invadirem o Afeganistão, o ISI apresentou Hekmatyar ao chefe do escritório da CIA em Islamabad, que concordou em dar armamentos para um grupo de guerrilha liderado por Hekmatyar, “uma cria dos militares paquistaneses”. Para uma análise completa, ver Alfred W. McCoy, The Politics of Heroin: CIA Complicity in the Global Drug Trade, Afghanistan, Southeast Asia, Central America, Colombia, 2nd. ed. (Chicago: Chicago Review Press, 2003), p. 475. Cooley descreve o “extremamente radical” Hekmatyar como uma “criação da CIA”. Cooley, p. 141. Apesar disso, um congressista do Texas, Charlie Wilson, essencial para garantir o envio de dólares dos contribuintes para os mujahidin, apoiou Gulbuddin porque acreditou, equivocadamente, que ele fosse um líder popular. Ver Mary Anne Weaver, Pakistan: In the Shadow of Jihad and Afghanistan (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2002), p. 79-80.

 

21 Ao longo dos anos, o ISI desviou o dinheiro americano para outras causas, como seu conflito com a Índia sobre a Caxemira. Ver Cooley, p. 203.

 

22 Rubin, p. 252.

23 Kaplan, p. 168, citando Abdul Haq da Hizb-i Islami de Khalis.

 

24 Para detalhes, ver McCoy, p. 484-485.

 

25 Steve Coll, Ghost Wars: The Secret History of the CIA, ­Afghanistan, and bin Laden, from the Soviet Invasion to September 10, 2001 (New York: Penguin Press, 2004), p. 186.

26 Algumas pessoas no Departamento de Estado advogavam uma resolução política que promovesse um governo moderado de base ampla e que excluísse tanto os comunistas como os extremistas dos partidos de Peshawar, mas foram atropeladas por manobras da CIA para manter a guerra secreta. Ver Coll, p. 207-211.

 

27 Coll, p. 212. bin Laden poderia estar agindo em nome da inteligência saudita ou por conta própria.

 

28 Rubin, p. 264.

 

29 Rubin, p. 271-272; Johnson e Leslie, p. 5.

 

30 Amin Saikal, “The Rabbani Government, 1992-1996”, em­ ­Fundamentalism Reborn? Afghanistan and the Taliban, ed. William Maley (New York: New York University Press, 1998), p. 33.

 

31 Rubin, p. 272-273.

32 Johnson e Leslie, p. 6, citando o ICRC News no 44 de 6 de novembro de 1996.

 

33 Larry P. Goodson, Afghanistan’s Endless War: State Failure, ­Regional Politics, and the Rise of the Taliban (Seattle: University of Washington Press, 2001), p. 75.

 

34 Rashid, Taliban, p. 17.

 

35 Rashid, Taliban, p. 22.

 

36 Há muitas explicações diferentes para o papel do Paquistão no episódio de Spin Baldak. Ver, por exemplo, Anthony Davis, “How the Taliban Became a Military Force”, em Maley, p. 45-46; Ahmed Rashid, “Pakistan and the Taliban”, em Maley, p. 81.

 

37 Rashid, Taliban, p. 27-28, 32.

 

38 “Exército por procuração do Paquistão”, Goodson, p. 110, 114. Cooley escreve que “o Talibã era, de fato, uma criação paquistanesa”. P. 121. Que tanto o ISI como o governo de Benazir Bhutto tenham trabalhado decisivamente para destruir o governo Rabbani e colocar no poder o Talibã é fato amplamente reconhecido, embora ainda negado oficialmente. Ver, por exemplo, Saikal em Maley, p. 39; Davis em Maley, p. 54-55, 69-71; Anwar-ul-Haq Ahady, “Saudi Arabia, Iran and the Conflict in Afghanistan”, em Maley, p. 126-127.

 

39 Coll, p. 332-333. As explicações para a queda de Cabul variam nos detalhes, mas parece claro que o fator decisivo na vitória dos talibãs foi o planejamento militar e o apoio do Paquistão e de bin Laden. Ver também Rashid, Taliban, p. 41-54.

 

40 A Médecins Sans Frontières (Médicos Sem Fronteiras) retirou-se do Afeganistão em 2004, depois que cinco membros de sua equipe de campo foram assassinados.

 

41 Há duas divisões principais nas tribos pashtun: os pashtuns abdalis — agora chamados durranis —, que escolheram como xá Ahmed Shah Durrani, e os rivais pashtuns ghilzais. Os durranis alegam que descendem do filho mais velho de Qais, um companheiro do Profeta, enquanto os ghilzais afirmam que seus ancestrais descendem do segundo filho de Qais. Ver Rashid, Taliban, p. 10.

 

42 Em 1973, Daoud conclamou os pathans (pashtuns) do Paquistão à secessão. O presidente paquistanês Zulfikar Ali Bhutto respondeu convidando pashtuns afegãos antiseculares a desertarem. Ele organizou os cinco mil que aceitaram seu convite em uma força de guerrilha – mujahidin – para desestabilizar o regime de Daoud, seis anos antes dos soviéticos invadirem o Afeganistão. Ver Weaver, p. 60.

 

43 Martin Ewans, Afghanistan: A Short History of Its People and Politics (New York: HarperCollins, 2002), p. 7.

 

44 Louis Dupree, Afghanistan (Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1973), p. xvii.

 

45 Carta de George Eden, conde de Auckland, então governador geral da Índia, e o Manifesto Simla, citado em Ewans, p. 61-62.

 

46 Lord Hartington, citado em Ewans, p. 97.

 

47 Jonathan Randal, Osama: The Making of a Terrorist (New York: Alfred A. Knopf, 2004), p. 78.

 

48 Para um relato em primeira mão da retirada pelo Passo de Salang, ver Artyom Borovik, The Hidden War: A Russian Journalist’s ­Account of the Soviet War in Afghanistan (New York: Atlantic Monthly Press, 1990).

 

49 Kaplan, p. 19. Kaplan acreditava que os afegãos eram “diretos” e facilmente se tornavam amigos porque estavam livres dos “medos e preconceitos em relação ao Ocidente” que “sobrecarregavam” os muçulmanos de países colonizados pelas potências ocidentais.

 

50 George Crile, Charlie Wilson’s War: The Extraordinary Story of the Largest Covert Operations in History (New York: Atlantic Monthly Press, 2003), p. 470-475. Os persistentes problemas de Wilson com drogas, álcool e mulheres são documentados ao longo de todo o livro. Membro do Comitê de Verbas da Câmara, Wilson conseguira milhões em ajuda para o ditador nicaraguense Anastasio Somoza, antes de se envolver na causa afegã. Crile, p. 34-39; Cooley, p. 89; Coll, p. 91-92. Entre os grupos de interesses especiais que deram a Wilson mais dinheiro do PAC que a praticamente qualquer outro no Congresso, “nenhum grupo tinha maior dívida de gratidão com ele do que as empreiteiras do setor de Defesa”. Crile, p. 249. Segundo se afirma, ele estava “sempre pronto a promover os interesses das empreiteiras do Texas, do setor de Defesa, que o apoiavam”. Cooley, p. 89.

 

51 Coll, p. 100.

 

52 Rashid, Taliban, p. 130, 128.

 

53 Coll, p. 92-93, 97-98. Casey organizou apoio a muitos outros movimentos terroristas e proto-terroristas, incluindo o Renamo, em Moçambique, a Unita, em Angola, e os contras na Nicarágua, que lutavam contra regimes que ele considerava pró-soviéticos. Ver Mam­dani, p. 87.

 

54 Coll, p. 168. Coll relata que embora Shevardnadze tenha feito essa solicitação ao secretário de Estado George Shultz, “nenhum funcionário graduado no governo Reagan jamais tomou o assunto em grande consideração”. Temendo ser considerado muito brando em relação ao comunismo, Shultz também guardou consigo “por semanas” a decisão soviética de deixar o Afeganistão.

 

55 Ewans, p. 280-281. Cooley escreve que a CIA e o exército americano “treinariam um enorme exército mercenário estrangeiro; um dos maiores já vistos na história militar americana. Quase todos os soldados seriam muçulmanos”. Cooley, p. 14.

 

56 Cooley, p. 69-72. Iniciado em 1980, o treinamento secreto foi realizado em bases como o Forte Bragg e o Harvey Point na Carolina do Norte, e Forte A. P. Hill, Camp Picketti, e Camp Peary, da CIA, na Virginia; continuou até 1989, momento em que os soldados árabe-afegãos já estavam deixando o Afeganistão para outros países-alvo. A CIA também cuidava do recrutamento nos Estados Unidos, frequentemente disfarçada sob instituições de caridade islâmicas legítimas, mesquitas e frentes como o Centro para Refugiados Afegãos Al-Kifah no Brooklyn, cujas operações de recrutamento e de obtenção de financiamento foram tão bem-sucedidas que se tornou conhecido como o centro al-Jihad. Entre os notáveis colaboradores da CIA estavam o xeque Omar Abdel Rahman (velho camarada de Peshawar de Gulbuddin Hekmatyar e Osama bin Laden), o líder de orações egípcio, cego, posteriormente condenado em Nova York por várias conspirações, incluindo o atentado ao World Trade Center em 1993, e o xeque Abdullah Azzam, fundador palestino do Hamas, mentor de Osama bin Laden em Jedda e Peshawar e fundador, em Peshawar, do Escritório de Serviços, sua própria agência de recrutamento e rede de apoio que se tornou, após seu assassinato em 1989, a Al-Qaeda de bin Laden. Ver Cooley, p. 27-30, 214-217; Coll, p. 204; Mamdani, p. 126-128; sobre as amizades paquistanesas do xeque Omar Abdel Rahman, ver Weaver, p. 79-80, 201.

 

57 Kaplan, p. 19.

58 Coll, p. 182.

 

59 Mamdani, p. 139, citando, entre outras, as investigações rea­lizadas por repórteres do Los Angeles Times. Mamdani faz a importante observação de que a “privatização de informação [por parte da CIA] sobre formas de produzir e disseminar violência” está se mostrando muito mais danosa que sua distribuição de armas e dinheiro. A presidente paquistanesa Benazir Bhutto reclamou à correspondente do New Yorker, Mary Ann Weaver: “O governo dos Estados Unidos armou esses grupos, treinou-os, deu-lhes capacidade organizacional; muito, muito dinheiro foi gasto, e tanto o dinheiro quanto o zelo islâmico transbordaram para o lado de cá. E então os americanos se retiraram para Washington e ficaram olhando para a bagunça que haviam criado”. Ela desejava acabar com a “influência dos clérigos islâmicos”. Weaver, p. 203. Agora, Bhutto está no exílio, e os clérigos islâmicos continuam no Paquistão.

 

60 Rashid, Taliban, p. 25.

 

61 O incidente mais notório, conhecido como o Massacre de Ashfar, ocor­reu em 11 de fevereiro de 1993, quando forças da Jamiat-i Islami de Rabbani (e de Massoud) e da Ittihad-i Islami de Abdur Rasul Sayyaf entregaram-se a uma farra de vinte e quatro horas de estupros, assassinatos, incêndios dolosos e rapto de crianças no distrito hazara de Ashfar, na parte oeste de Cabul. O presidente Rabbani posteriormente classificou o massacre como “um erro”. Internatio­nal Crisis Group, Afghanistan: Women and Reconstruction, ICG Asia Report nº 48, Cabul/Bruxelas, 14 de março de 2003, p. 7. Ver também Peter Marsden, The Taliban: War, Religion and the New Order in Afghanistan (London: Zed Books, 1998), p. 39.

 

62 Kaplan, p. 35-36, 49. Na introdução de uma edição posterior, Kaplan diz que o Afeganistão o atraía como uma forma de escapar ao mundo moderno, um lugar “não adulterado pelos poliésteres baratos do Ocidente”; mas é exatamente de poliéster que são feitas as burcas – parecidas com tendas – das mulheres. Soldiers of God: With Islamic Warriors in Afghanistan and Pakistan (New York: Vintage, 2001), p. xvi.

 

63 Scott Carrier, “Over There: Afghanistan After the Fall”, Har­per’s Magazine, abril de 2002, p. 68; Borovik, p. 112.

 

64 Jason Elliot, An Unexpected Light: Travels in Afghanistan (London: Picador, 1999), p. 145.

 

65 Rubin, p. 230-231.

 

66 Alexander Cockburn e Jeffrey St. Clair, Whiteout: The CIA, Drugs and the Press (London: Verso, 1998), p. 263; Crile, p. 463. Goodson relata que o Afeganistão recebeu mais de 7,2 bilhões de dólares durante a década de 1980, p. 152-153. Só Israel e o Egito receberam mais ajuda estrangeira.

 

67 Weaver, p. 99.

 

68 Sobre a operação de despiste secreta, ver Lawrence Lifschultz, “Pakistan Was Iran-Contra’s Secret Back Door”, Sunday Times of India, 24 de novembro de 1991, citado em Rubin, p. 198, n. 7. ­Lifschultz relata a porta de trás trancada em novembro de 1986. Bob Woodward relata que, em determinado momento, o dinheiro para ambas as operações secretas passava pela mesma conta em um banco suíço. Veil: The Secret Wars of the CIA, 1981-1987 (New York: Simon and Schuster, 1987), p. 502.

 

69 Alguns dizem que a sugestão de armar os mujahidin com Stingers chegou à CIA vinda de Osama bin Laden, com base em conselhos de seus amigos na inteligência saudita. Peter Dale Scott, Drugs, Oil, and War: The United States in Afghanistan, Colombia, and Indochina (Lanham, Md.: Rowman & Littlefield, 2003), p. 32. Ao final da guerra, não se sabia do paradeiro de pelo menos 500 mísseis Stinger. O Paquistão ficou com alguns. Segundo se alega, os homens de Gulbuddin conseguiram um milhão de dólares vendendo 16 deles à Guarda Revolucionária do Irã. Outros apareceram nas mãos de militantes no Golfo Pérsico e nas Filipinas e derrubaram aviões no Tajiquistão e na Geórgia. Em poucos anos, os russos já estavam produzindo cópias passáveis. Ver Cooley, p. 144-46; Weaver, p. 77, 97-98.

 

70 Rubin, p. 181-182.

 

71 Rubin sobre “isolar os extremistas”, p. 251; sobre a ajuda americana e saudita e armas para o Iraque, p.182-183; sobre o Crescente Vermelho, p. 197; sobre a conta da assistência, p. 179.

 

72 Coll, p. 228. Coll não dá o nome do oficial que entrevistou.

 

73 McCoy, p. 478. Weaver relata que 42 comandantes mujahidin, liderados por Abdul Haq, recusaram-se a tentar tomar Jalalabad. Haq se opunha à “crescente determinação do ISI de sequestrar a jihad”. Weaver, p. 83.

 

74 Coll, p. 264-265.

 

75 Escreve Ahmed Rashid: “Ficara claro para mim que a estratégia para os oleodutos havia se tornado a força motriz por trás do interesse de Washington no Talibã”. Rashid, Taliban, p. 163. Ver também Mamdani, p. 159-161.

 

76 Johnson e Leslie, p. 89. Khalilzad expressou sua opinião em um editorial de 1996 para o Washington Post. Cientista político, ele é discípulo (assim como Paul Wolfowitz e Richard Perle) de Albert Wohlstetter, professor da Universidade de Chicago, o teórico da guerra fria que se tornou o famoso modelo para o Dr. Strangelove (NT: Personagem paranoico interpretado por Peter Sellers em um filme de Stanley Kubrik). Jon Lee Anderson relata que o próprio Khalilzad é visto em alguns setores como uma figura à la Dr. Strangelove”, uma “eminência parda do poder imperial americano”, reputação que ele conseguiu, em parte, por conta de seu envolvimento com o Taliban, a Unocal e o Plano de Orientação para Defesa, de 1992, documento que definiu a doutrina neoconservadora linhadura, incluindo o conceito de guerra preventiva. Ver “American Viceroy: Zalmay Khalilzad’s Mission”, The New Yorker, 19 de dezembro de 2005, p. 54-65.

 

77 Em abril de 2005, funcionários anunciaram que havia previsão de se iniciar a construção de um gasoduto ao final do ano. No mesmo dia, talvez por coincidência, o presidente Karzai e o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, encontraram-se em Cabul para discutir a possibilidade de se estabelecerem bases militares americanas permanentes em solo afegão. A Al-Qaeda também escolheu esse dia para anunciar sua promessa de continuar a jihad contra a coalizão, liderada pelos EUA, no Afeganistão. “Gas Pipeline Likely to Start by End of 2005”, “Afghanistan Seeks Long-Term Security Relationship with US”, “Al-Qaeda Vows Jihad against US-led Forces”, Daily Outlook Afghanistan, 14 de abril de 2005 (25 Hamal, 1384), p. 1. No verão de 2005, os interesses petrolíferos americanos estavam combatendo uma tentativa pouco amistosa do governo chinês de assumir o controle da Unocal. Em depoimento ao Comitê de Serviços Armados do Congresso, James Woolsey, diretor da CIA durante o governo Clinton, insistiu que o Congresso bloqueasse a venda, uma vez que manter a Unocal em mãos americanas é um “assunto de segurança nacional”. A China retirou sua oferta e a Chevron abocanhou a Unocal. Steve Lohr, “Unocal Bid Denounced at Hearing”, New York Times, 14 de julho de 2005, p. C1.

 

78 Coll, sobre o manifesto de bin Laden, p. 380; sobre os atentados na embaixada, p. 403-4; sobre a tomada de Mazr-i Sharif pelo Talibã, p. 429.

 

79 Coll, p. 429.

 

80 A jornalista Christina Lamb cita uma opinião de amplo curso no Afeganistão: “Os paquistaneses são os verdadeiros terroristas. [...] São piores do que os russos porque os russos vieram como homens, como inimigos, ao passo que os paquistaneses fingiram ser nossos amigos, mas enviaram seus fundamentalistas para cá. Eles têm os campos de treinamento, os recursos financeiros; por que o Ocidente não está bombardeando eles e sim nós?” The Sewing Circles of Herat: A Personal Voyage through Afghanistan (New York: HarperCollins, 2002), p. 304.

 

81 Rashid, Taliban, p. 120-121. No início da guerra secreta no Afeganistão, Washington tomou a decisão política de “sacrificar a guerra contra as drogas para lutar a guerra fria”. McCoy, p. 480. Para saber a história completa da CIA e do tráfico internacional de drogas, ver McCoy.

 

82 Coll, sobre o conselho de Musharraf, p. 481. O general Musharraf tomou o poder em um golpe militar em outubro de 1999. Sobre os ataques com mísseis, p. 409-412; sobre o financiamento saudita, p. 512; sobre as artimanhas do ISI paquistanês, p. 506. Cooley cita um antigo funcionário da CIA, anônimo: “O ISI nunca teve intenção de caçar bin Laden. Fomos completamente enganados”. Cooley, p. 206.

 

83 Richard A. Clarke, Against All Enemies: Inside America’s War on Terror (New York: Free Press, 2004), p. 209.

 

84 Coll, p. 518; Clarke, p. 209-210.

85 Coll, sobre a pressão sobre Massoud para capturar bin Laden, p. 458, p. 489; sobre a leitura de Massoud da política americana, p. 468-469; sobre a Al-Qaeda, p. 471; sobre o plano para o 11 de setembro, p. 485.

 

86 Coll, sobre Abdul Ahad Karzai, p. 459-460; sobre o lugar de Massoud na História, p. 569.

 

87 Coll, sobre Rice, p. 539; sobre a impermeabilidade a avisos do governo Bush, p. 541-543; sobre a adoção de um plano de segurança nacional, p. 560-561. Sobre o plano de segurança nacional, ver também Wooodward, Bush at War, p. 34-36; para detalhes, ver Clarke, p. 227-247.

 

88 Rubin, p. 5. Depois da Guerra do Vietnã, os EUA envolveram-se em guerras por procuração em Angola, em Moçambique, no Congo, na Nicarágua e no Afeganistão, apenas para citar os principais campos de batalha, e realizaram operações de apoio secretas no Camboja e na Etiópia, antes de invadirem, abertamente, o Iraque a primeira vez e de adotarem a política da guerra preventiva (a doutrina Bush) para invadir o Iraque pela segunda vez. Para uma discussão ampla da política de guerras por procuração, suavizadas, no jargão militar, como “conflitos de baixa intensidade”, ver Mamdani.

 

89 Sobre bin Laden como protégé, Chalmers Johnson, Blowback: The Costs and Consequences of American Empire (New York: Metropolitan Books, 2000), p. 10.

 

90 O sociólogo francês Olivier Roy descreve a sociedade afegã como um “desequilíbrio constante”, uma expressão que também descreve o buzkashi. Islam and Resistance in Afghanistan, 2nd ed. (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1990), p. 23. Roy afirma que “nunca houve uma nação afegã”, embora “haja certamente um Estado afegão cuja história pode ser contada”, p. 12.

 

91 G. Whitney Azoy, Buzkashi: Game and Power in Afghanistan, 2nd ed. (Prospect Heights, Ill.: Waveland Press, 2003), p. x.

 

92 A piada sugere os problemas de identidade mais profundos essenciais à política afegã. Os khalquis, de bigode, eram pashtuns, em sua maior parte de origem operária ou rural. Os parchamis, de cabelos curtos, eram não-pashtuns falantes de dari, geralmente pertencentes às elites urbanas. O presidente Najibullah é frequentemente descrito como um “parchami típico”.

 

93 Sobre Taraki, escreveu o vice-presidente Hafizullah Amin: “Nosso grande líder percebeu a verdade de que, devido ao fato de a classe trabalhadora não ser ainda desenvolvida como força política nos países desenvolvidos, há uma outra força que pode derrubar um governo feudal e opressivo e, no Afeganistão, essa força é o exército. Ele também deu ordens expressas para que a ideologia das classes trabalhadoras seja difundida dentro do exército. [...]”, Kabul Times, 19 de abril de 1979, citado em Roy, p. 85.

 

94 Lamb, p. 130.

 

95 O presídio de Pul-i Charkhi foi construído por Daoud, que o utilizou, primeiramente, para abrigar inimigos políticos. No que diz respeito aos massacres, estima-se que 1.170 civis desarmados foram mortos, em um único dia, em um vilarejo na província de Kunar. Ver Rubin, p. 115. Roy relata massacres também em vilarejos em Samangan, Farah e Darrah-yi Souf. Roy, p. 97. Foi amplamente noticiada, também, a execução, em uma única noite, de 70 homens da moderada família Mujaddidi.

 

96 Karl E. Meyer, The Dust of Empire: The Race for Mastery in the Asian Heartland (New York: Public Affairs Books, 2003), p. 127.

 

97 Sobre o número de mortos e desaparecidos, ver Rubin, p. 115; Roy, p. 95; Kaplan, p. 115.

 

98 Ewans, p. 202. Segundo Coll, a KGB soviética tentou primeiro desacreditar Amin plantando falsos boatos de que fosse agente da CIA, mas, em um caso típico de tiro que saiu pela culatra, eles posteriormente começaram a acreditar em sua própria história e a agir como se fosse verdade. Coll, p. 47.

 

99 Brzezinski revelou esse esquema, pela primeira vez, em 1998, em uma entrevista ao Le Nouvel Observateur de 15 e 21 de janeiro de 1998, e essa informação é agora rotineiramente apresentada como fato. Ver, por exemplo, Mark Danner, “Taking Stock of the Forever War”, New York Times Magazine, 11 de setembro de 2005, p. 49. Ver também Cooley, p. 10-11; Mamdani, p. 123-124. O texto com a parte mais significativa da entrevista foi reproduzido em Scott, p. 35, n. 17. Ver a nota 101 seguinte.

 

100 Azoy, p. 118.

 

101 Para o esquema de Brzezinski, ver a nota 99 anterior. Coll, entretanto, relata que os memorandos de Brzezinski à época da invasão soviética não dão qualquer sinal de satisfação com o fato de que os soviéticos houvessem mordido qualquer isca. Coll, p. 581, n. 17. Não há dúvidas, entretanto, quanto à ação que ele sugeriu ao presidente Carter naquele momento, embora ele possa mais tarde ter exagerado tanto sua presciência como sua importância.

 

102 Woodward, Veil, p. 79.

 

103 Essa interpretação dada à “mudança de regime” é falsa. O objetivo, a princípio, na medida em que o governo tivesse qualquer objetivo, era simplesmente forçar o Taliban a entregar bin Laden e outros “assassinos” da Al-Qaeda. Ver Woodward, Bush at War, p. 124, 163.

 

104 Sobre a quantidade de pessoal, Woodward, Bush at War, p. 314. Sobre sua retirada, Barton Gellman e Dafna Linzer, “Afghanistan, Iraq: Two Wars Collide”, Washington Post, 22 de outubro de 2004.