A PERSPECTIVA ESPIRITUAL: DEEPAK
“Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta.”
CARL JUNG
Se quiser vencer a luta pelo futuro, a espiritualidade primeiro deve superar uma grande desvantagem. Na imaginação popular, há muito tempo a ciência já desacreditou a religião. Os fatos substituíram a fé. A superstição foi gradualmente vencida. É por isso que a explicação de Darwin sobre a descendência do homem a partir dos primatas inferiores prevalece sobre o Gênesis, e é por isso que vemos o big bang como a origem do cosmo, e não como um mito de criação povoado de um ou mais deuses.
Por isso é importante começar dizendo que religião não é o mesmo que espiritualidade – longe disso. Nem Deus é a mesma coisa que espiritualidade. As religiões organizadas podem ter perdido o crédito, mas a espiritualidade não sofreu essa derrota. Milhares de anos atrás, em culturas que se espalhavam por todo o planeta, mestres espirituais inspirados, como Buda, Jesus e Lao-Tsé, propuseram profundas visões sobre a vida. Eles ensinaram que existe um domínio transcendente além do mundo cotidiano de dor e luta. Ainda que os olhos contemplem rochas, montanhas, árvores e céu, isso é apenas o véu que encobre uma realidade mais vasta, misteriosa e invisível. Além do alcance dos cinco sentidos, há um domínio imperceptível de infinitas possibilidades; e a chave para desenvolver esse potencial é a consciência. Olhe para dentro, declararam os sábios e videntes, e você encontrará a verdadeira fonte de tudo: sua própria consciência.
Foi essa extraordinária promessa que a religião deixou de realizar. As razões não nos dizem respeito, aqui, pois este livro é sobre o futuro. Basta dizer que, se o reino de Deus está no interior de nós, como declarou Cristo, se o nirvana significa liberdade de todo sofrimento, como pensava Buda, e se o conhecimento do cosmo está encerrado dentro da mente humana, como propunham os rishis, ou sábios da Índia, hoje não podemos olhar ao nosso redor e dizer que esses ensinamentos deram frutos. Cada vez menos gente pratica a devoção dos tempos antigos, no mundo todo; mesmo que os mais velhos lamentem esse declínio, os que se afastaram da religião nem precisam mais de uma desculpa. Há muito a ciência nos mostrou um admirável mundo novo que não exige qualquer crença numa esfera invisível.
A verdadeira questão é o conhecimento e como atingi-lo. Jesus e Buda não tinham dúvida de que descreviam a realidade a partir do verdadeiro conhecimento. Mais de 2 mil anos depois, nós achamos que sabemos mais.
A ciência comemora seus triunfos, que são muitos, e pede desculpas por suas catástrofes, que também são inúmeras – e aumentam a cada dia. A bomba atômica nos levou a uma era de destruição de massa que provoca pesadelos só de pensar. O meio ambiente foi abalado de forma desastrosa por emissões expelidas de máquinas que a tecnologia nos oferece para tornar a vida melhor. Mas os que apoiam a ciência descartam essas ameaças como efeitos colaterais ou falhas da política social. A moralidade, como nos dizem, não é responsabilidade da ciência. Mas, se olharmos mais detalhadamente, a ciência está diante do mesmo problema que a religião. Esta perdeu de vista a humildade diante de Deus, a primeira perdeu o sentido de reverência, encarando cada vez mais a natureza como uma força que devemos conquistar e a que devemos nos opor, desvelando seus segredos em benefício da humanidade. Agora pagamos o preço disso. Quando indagados se o Homo sapiens está em risco de extinção, alguns cientistas acenam com a esperança de que, em algumas centenas de anos, as viagens espaciais estejam avançadas o bastante para abandonarmos o refúgio planetário que agora poluímos. Lá vamos nós estragar outros mundos!
Todos sabem o que está em jogo: o futuro previsível paira sombrio sobre nós. A solução-padrão contra os nossos inimigos atuais é muito conhecida. A ciência vai nos resgatar com novas tecnologias – para recuperar o meio ambiente, substituir os combustíveis fósseis, curar a Aids e o câncer, acabar com a ameaça da fome. Explique a sua doença, e sempre haverá alguém para dizer que há uma solução científica ali na esquina. Mas será que a ciência não está prometendo nos resgatar dela mesma? Por que devemos confiar nessa promessa? O ponto de vista que triunfou sobre a religião, e que vê a vida como algo essencialmente materialista, nos conduziu por um caminho que leva a um beco sem saída. Literalmente.
Mesmo que, por milagre, eliminemos o desperdício e a poluição, tão desastrosos, as gerações seguintes continuarão sem um modelo para viver bem, a não ser aquele que nos fez fracassar: consumo desenfreado, exploração dos recursos naturais e diabólica criatividade na guerra. Como um estudante chinês comentou com amargura sobre o Ocidente: “Vocês comeram o banquete todo. Agora nos dão o café e a sobremesa, mas nos apresentam a conta da refeição inteira.”
A religião não pode resolver esse dilema – ela já teve sua chance. Mas a espiritualidade pode. Precisamos voltar à fonte da religião. Essa fonte não é Deus. É a consciência. Os grandes mestres que viveram milênios atrás ofereciam algo mais radical que a fé num poder superior. Apresentavam uma forma de ver a realidade que não começa nos fatos exteriores e numa existência física limitada, mas na sabedoria interior e num acesso ilimitado à consciência. A ironia é que Jesus, Buda e outros sábios esclarecidos também eram cientistas. Tinham uma maneira de chegar ao conhecimento que corre em paralelo à ciência moderna. Primeiro vinha uma hipótese, uma ideia que precisava ser testada. Depois vinha a experimentação, para verificar se a hipótese era verdadeira. Finalmente vinha a revisão dos pares, oferecendo novos achados a outros pesquisadores e pedindo que reproduzissem a mesma descoberta.
A hipótese espiritual apresentada milhares de anos atrás tem três partes:
1. Há uma realidade invisível que é a fonte de todas as coisas visíveis.
2. Essa realidade invisível pode ser conhecida pela nossa consciência.
3. A inteligência, a criatividade e o poder de organização estão entrelaçadas no cosmo.
Esse trio de ideias equivale aos valores platônicos na filosofia grega, que nos diz que amor, verdade, ordem e razão moldam a existência humana a partir de uma realidade superior. A diferença é que mesmo as antigas filosofias, com suas raízes plantadas há 5 mil anos, nos dizem que a realidade superior está conosco aqui e agora.
Nas próximas páginas, enquanto Leonard e eu debatemos as grandes questões da existência humana, meu papel será oferecer respostas espirituais – não como um padre ou praticante de qualquer fé, mas como um pesquisador da consciência. Existe o risco, eu sei, de alienar os fiéis mais devotos, os muitos milhões de pessoas de todas as crenças para as quais Deus é muito pessoal. Mas as tradições de sabedoria do mundo não excluem um Deus pessoal. (Para ser sincero, quando criança, eu não aprendi a venerar um deus. Mas minha mãe, sim, e todos os dias de sua vida rezava num templo para Rama.) Ao mesmo tempo, todas as tradições de sabedoria incluem um Deus impessoal que permeia todos os átomos do Universo e todas as fibras de nosso ser. Essa diferença incomoda os que acreditam numa única e verdadeira fé – e querem se apegar a ela –, seja qual for a escolha. Mas um Deus impessoal não precisa ser visto como uma ameaça.
Pense em alguém que você ama. Agora pense no próprio amor. A pessoa que você ama dá rosto a esse amor, mas você sabe que o amor existia antes de essa pessoa nascer, e que vai sobreviver a ela. Nesse exemplo simples, vemos a diferença entre o Deus pessoal e o impessoal. Quem acredita pode dar um rosto a Deus – é uma questão de escolha pessoal –, mas espero que você perceba que, se Deus está em toda parte, as qualidades divinas de amor, clemência, compaixão, justiça e todos os outros atributos relacionados a Deus se estendem infinitamente por toda a criação. Não surpreende que essa ideia seja uma vertente comum em todas as principais religiões. O alto nível de consciência permitiu que grandes sábios, santos e visionários chegassem a um tipo de conhecimento que faz a ciência se sentir ameaçada, mas que é totalmente válido. Nesse caso, nosso entendimento comum da consciência é limitado demais para ser aqui devidamente apreciado.
Se eu perguntasse, “Do que você está consciente neste exato minuto?”, você provavelmente começaria por descrever o aposento onde está, as imagens, os sons e aromas ao seu redor. Ao refletir, vai começar a perceber seu estado de espírito, as sensações de seu corpo, talvez uma preocupação escamoteada ou um desejo mais profundo que os pensamentos superficiais. Mas essa jornada interior pode ir bem além disso, levando a uma realidade que não diz respeito a objetos “lá fora” ou a sentimentos e pensamentos “aqui dentro”. Esses dois mundos podem às vezes se fundir numa condição do ser que está além dos limites do espaço-tempo, numa região de infinitas possibilidades.
Mas agora nos vemos diante de uma contradição. Como podem duas realidades opostas se tornar a mesma (torrar um pão não é o mesmo que sonhar com um pão torrado)? Essa perspectiva improvável é descrita de modo sucinto no Isha Upanixade, uma antiga escritura indiana. “Aquilo é completo, e isto também é completo. Esta totalidade foi projetada a partir daquela totalidade. Quando este todo se fundir com aquele todo, o que resta é a totalidade.” Num primeiro olhar, esse trecho parece um enigma, mas pode ser decifrado quando entendemos que “aquilo” é o estado de pura consciência, enquanto “isto” é o Universo visível. As duas coisas são completas em si mesmas – como nos diz a ciência, que há quatro séculos se contenta com a pesquisa do Universo visível. Mas, na perspectiva espiritual do mundo, existe um todo oculto subjacente a qualquer criação; em última análise, é esse todo invisível que mais importa.
A espiritualidade está entre nós há muitos milhares de anos, e seus pesquisadores foram brilhantes – verdadeiros Einstein da consciência. Qualquer um pode reproduzir e verificar seus resultados, como ocorre com os princípios da ciência. Ainda mais importante, o futuro que essa espiritualidade promete – de sabedoria, liberdade e realização – não desapareceu nas épocas de declínio da fé. Realidade é realidade. Só existe uma, e ela é permanente. Isso significa que mundo interno e mundo externo devem se encontrar em algum ponto; não precisamos escolher entre os dois. Esta, em si mesma, será uma descoberta revolucionária, pois o debate entre ciência e religião vem persuadindo quase todos a encarar a realidade e a lidar com as difíceis questões da vida cotidiana (ciência), ou se retirar passivamente e contemplar uma região para além da vida cotidiana (religião).
Essa escolha de tipo e/ou nos foi imposta quando a religião fracassou na realização de suas promessas. Contudo, a espiritualidade, a fonte mais profunda da religião, não fracassou e está pronta para enfrentar a ciência, oferecendo respostas coerentes com a maior parte das teorias científicas. Foi a consciência humana que criou a ciência, e esta, agora, ironicamente, age para excluir a consciência, seu próprio criador! Mas claro que isso iria nos deixar em piores condições, com uma ciência órfã e encolhida – habitaríamos um mundo empobrecido.
Essa época já chegou. Vivemos uma era de inclemente ateísmo, e seus adeptos veem a religião como superstição, ilusão ou engodo. Mas o verdadeiro alvo não é a religião: é a jornada interior. Estou menos preocupado com os ataques a Deus que com um perigo muito mais insidioso: a superstição do materialismo. Para os ateus cientistas, a realidade sempre é externa; de outro modo, todos os seus métodos desmoronam. Se o mundo físico é tudo que existe, a ciência tem razão em esquadrinhá-lo em busca de dados.
Mas é aqui que a superstição do materialismo se rompe. Nossos cinco sentidos nos estimulam a aceitar que há objetos “lá fora”, rios e florestas, átomos e quarks. No entanto, nas fronteiras da física, onde a natureza fica muito pequena, a matéria se desfaz e desaparece. Aqui, o ato de mensurar muda o que vemos: todos os observadores acabam entrelaçados com o que observam. Trata-se de um Universo já conhecido pela espiritualidade, em que a observação passiva dá lugar à participação ativa, e descobrimos que somos parte da tessitura da criação. O resultado é um poder e uma liberdade enormes.
A ciência jamais atingiu uma objetividade pura, nem jamais atingirá. Pois negar o valor da experiência subjetiva é descartar boa parte do que faz a vida valer a pena: amor, confiança, fé, beleza, espanto, maravilha, compaixão, verdade, arte, moralidade e a própria mente. O campo da neurociência já acredita que a mente não existe, é apenas um produto colateral do cérebro. O cérebro (um “computador feito de carne”, como definiu Marvin Minsky, especialista em inteligência artificial) é o nosso chefe, decidindo quimicamente como nos sentimos, determinando geneticamente como crescemos, vivemos e morremos. Essa imagem não é aceitável para mim, pois, ao descartarmos a mente, eliminamos nosso portal para o conhecimento e a visão interior.
Enquanto Leonard e eu debatemos os mais importantes mistérios, os grandes sábios e visionários nos lembram de que só existe uma pergunta: O que é a realidade? Será o resultado natural de leis de causa e efeito que funcionam rigorosamente, ou será algo mais? Há boas razões para que nossos pontos de vista estejam em choque. Ou a realidade é limitada pelo Universo visível ou não é. Ou o cosmo foi criado a partir de um abismo vazio e sem sentido ou não foi. Enquanto não entendermos a natureza da realidade, estaremos como os famosos seis cegos, tentando descrever um elefante ao apalpar apenas uma de suas partes. O que está na perna diz: “Um elefante é como uma árvore.” O que está na tromba fala: “Um elefante parece uma cobra”. E assim por diante.
Essa fábula infantil sobre os cegos e o elefante na verdade é uma alegoria da antiga Índia. Os seis cegos são os cinco sentidos e a mente racional. O elefante é Brahma, a totalidade do que existe. Na superfície, a fábula é pessimista: se você só tiver os cinco sentidos e a mente racional, jamais verá o elefante. Mas há uma mensagem oculta, tão óbvia que a maioria das pessoas não percebe. É que o elefante existe. E já estava lá antes de nós, esperando pacientemente para ser conhecido. Esta é a verdade mais profunda da realidade unificada.
O fato de a religião não ter dado certo não significa que uma nova espiritualidade, baseada na consciência, também não vai dar certo. Nós precisamos enxergar a resposta, e, nesse processo, vamos despertar os poderes profundos que nos foram prometidos milhares de anos atrás. O tempo está esperando. O futuro depende da escolha que fizermos hoje.
A PERSPECTIVA CIENTÍFICA: LEONARD
“Quanto mais avança a evolução espiritual da humanidade, mais certo me parece que o caminho genuíno da religiosidade não reside no medo da vida, no medo da morte ou na fé cega, mas passa pela luta em prol do conhecimento racional.”
ALBERT EINSTEIN
A s crianças vêm ao mundo acreditando que tudo gira em torno delas – e a humanidade também. As pessoas sempre se sentiram ansiosas para entender o Universo, porém, durante a maior parte da história humana, nós não desenvolvemos os meios para isso. Como somos animais antecipatórios e imaginativos, no entanto, não deixamos que a ausência de ferramentas nos detenha. Simplesmente usamos a imaginação para conformar imagens. Estas não se baseiam na realidade, são criadas para atender às nossas necessidades. Todos nós gostaríamos de ser imortais. Desejaríamos acreditar que o bem triunfa sobre o mal, que um grande poder cuida de nós, que somos parte de algo maior, que fomos postos aqui por alguma razão. Gostaríamos de acreditar que nossas vidas têm um significado intrínseco. Antigos conceitos sobre o Universo nos consolavam, ao reafirmar esses desejos. De onde vem o Universo? De onde surgiu a vida? De onde vêm as pessoas? As lendas e teologias do passado nos asseguravam que éramos criados por Deus e que a nossa Terra era o centro de tudo.
Hoje a ciência pode responder a inúmeras das mais fundamentais questões da existência. As respostas que ela dá nascem da observação e de experimentos, não das preferências ou dos desejos humanos. A ciência oferece respostas em harmonia com a natureza enquanto tal, não com a natureza tal como gostaríamos que ela fosse.
O Universo é um lugar espantoso, em especial para os que sabem alguma coisa a respeito dele. Quanto mais aprendemos, mais admirável ele nos parece. Newton disse que enxergou mais longe porque se apoiava sobre os ombros de gigantes. Hoje podemos todos nos apoiar sobre os ombros dos cientistas e enxergar respostas incríveis e profundas sobre o Universo e o nosso lugar nele. Podemos entender como nós e a nossa Terra somos fenômenos naturais, surgidos a partir de leis da física. Nossos ancestrais olhavam o céu noturno com uma sensação de alumbramento, mas ver estrelas que explodem em segundos e brilham com mais luminosidade que galáxias inteiras dá uma nova dimensão ao espanto. Hoje, um cientista pode ajustar o telescópio para observar um planeta semelhante à Terra, a trilhões de quilômetros de distância, ou estudar um espetacular mundo interior, em que milhões e milhões de átomos conspiram para criar um pequeno ponto. Sabemos agora que a Terra é um planeta entre muitos, e que nossa espécie surgiu de outras espécies (cujos integrantes não podemos convidar para o jantar, mas ainda assim são nossos ancestrais). A ciência revelou um Universo muito vasto, antigo, violento, estranho e lindo, com variedades e possibilidades quase infinitas, que talvez um dia acabe num buraco negro, e onde seres conscientes evoluem a partir de uma sopa de minerais. Nesse Universo, as pessoas parecem insignificantes. Mais significativo e profundo é o fato de que nós – conjuntos de um número quase incontável de átomos que não pensam – nos tornamos conscientes e entendemos nossas origens e a natureza do cosmo em que vivemos.
Deepak acha que as explicações científicas são estéreis e reducionistas, que elas resumem a humanidade a uma simples coleção de átomos não muito diferente de qualquer outro objeto no Universo. Mas o conhecimento científico não reduz nossa humanidade, assim como saber que nosso país é um entre muitos não reduz a avaliação que fazemos de nossa cultura nativa. Na verdade, o contrário está mais próximo da verdade. Emoção, intuição, apego à autoridade – traços que levam à crença na religião e a uma explicação mística – são características que podem ser encontradas em outros primatas e até em animais inferiores. Mas os orangotangos não conseguem pensar nos ângulos dos triângulos, e os chimpanzés não olham para o céu e se perguntam por que os planetas percorrem órbitas elípticas. Só os homens podem se envolver nos maravilhosos processos da razão e do pensamento chamados de ciência; só eles podem entender a si mesmos ou como o planeta chegou até aqui; só os seres humanos teriam como descobrir que somos formados por átomos.
O triunfo da humanidade é nossa capacidade de entender. O que nos destaca é nossa compreensão do cosmo, nossa visão acerca da nossa origem, nossa visão sobre o lugar que ocupamos no Universo. Um dos subprodutos dessa compreensão científica é o poder de administrar a natureza em nosso benefício ou, verdade seja dita, de usá-la contra nós mesmos. As escolhas éticas e morais específicas que as pessoas fazem dependem da natureza e da cultura humanas. As pessoas jogavam pedras sobre o inimigo muito antes de entender a lei da gravidade. E já despejavam poluição no ar bem antes de compreender a termodinâmica da queima do carvão.
A promoção do bem e a inibição do mal fazem parte do papel das religiões organizadas. E foram essas empreitadas – e não a ciência – que em geral deixaram de cumprir o que prometeram. As religiões orientais não evitaram uma história de guerras brutais na Ásia, assim como as religiões ocidentais não pacificaram a Europa. Na verdade, mais pessoas foram chacinadas em nome da religião do que por todas as bombas atômicas criadas pela física moderna. Apesar de ser um instrumento de bondade e amor, as religiões têm sido usadas como ferramentas de ódio, desde as Cruzadas até o Holocausto. A abordagem pacífica e universalista que Deepak tem da espiritualidade é portanto uma alternativa bem-vinda. Sua metafísica vai além da orientação espiritual, para oferecer perspectivas sobre a natureza do Universo. A convicção de Deepak, de que o Universo tem um projeto e está penetrado de amor, pode ser atraente, mas será correta?
Deepak critica a ciência por sua visão “essencialmente materialista” da vida. Por materialista, ele não está sugerindo que os cientistas se concentram apenas nas coisas e no desejo de possuí-las, mas que eles lidam somente com fenômenos que podem ser vistos, ouvidos, cheirados, detectados por instrumentos ou medidos por números. Deepak compara o Universo visível (ou detectável) estudado pela ciência a uma “região de infinitas possibilidades”, implicitamente superior, mas invisível, que se encontra além de nossos sentidos, um “domínio transcendente” que é a fonte de todas as coisas visíveis. Deepak argumenta de forma apaixonada que, apenas aceitando esse domínio, a ciência pode evoluir para além de seus limites e ajudar a salvar o mundo. Mas alegar que esse domínio pode expandir os limites da ciência, que pode ajudar a humanidade, ou que os sábios antigos já o ensinavam, não o torna verdadeiro. Se você acha que está comendo um hambúrguer, e eu digo que em alguma outra região invisível seu sanduíche na verdade é de filé mignon, você vai querer saber como eu sei disso, em que evidências se baseia minha ideia. Só essas respostas fazem com que uma crença transcenda a realização do desejo. Portanto, se Deepak quiser ser convincente, deve encarar o desafio representado por essas questões.
O verdadeiro problema, como diz Deepak, é o conhecimento e como obtê-lo. Ele critica a ciência por negar “o valor da experiência subjetiva”. Mas a ciência não teria ido muito longe se um cientista descrevesse um átomo de hélio como “bem pesado”, enquanto outro dissesse que, para ele, o átomo “parece leve”. Os cientistas empregam medidas e conceitos objetivos por boas razões, e o fato de tentarem garantir que suas medições e conceitos não sejam influenciados por “amor, confiança, fé, beleza, espanto, maravilha, compaixão” etc. não significa que eles descartem o valor dessas qualidades em outras áreas da vida.
Cientistas muitas vezes se guiam por suas intuições e seus sentimentos subjetivos, mas reconhecem a necessidade de outro passo: a verificação. A ciência avança numa espiral de observação, teoria e experimento. A espiral é repetida até que teoria e prova empírica se harmonizem. Mas o método não funciona se os conceitos não forem definidos com precisão e se os experimentos não forem rigorosamente controlados. Esses aspectos do método científico são cruciais, eles que determinam a diferença entre a boa e a má ciência, ou entre ciência e pseudociência. Deepak disse que Jesus foi um cientista. Será? Jesus não reuniu uma amostragem da população e, depois de ser insultado, ofereceu a outra face para metade dela, enquanto nocauteava a outra metade com um bom e sólido gancho de direita, a fim de calcular depois a estatística da eficácia das duas abordagens. Pode parecer tolice eu fazer uma objeção quando Deepak chama Jesus de cientista, mas isso introduz um tema – o uso da terminologia – que se tornará importante adiante, neste livro, em contextos mais substantivos: quando debatemos questões científicas, devemos ter cuidado para não usar as palavras assim tão livremente. É fácil empregá-las de forma imprecisa num argumento, mas também é perigoso, pois a substância do argumento, em geral, depende da nuance das palavras.
Não estou sugerindo que a ciência seja perfeita. Deepak diz que ela nunca atingiu uma objetividade pura, e tem razão. Uma dessas razões é que os conceitos usados pela ciência são concebidos pelo cérebro humano. Alienígenas com estruturas cerebrais, processos de pensamento e órgãos sensoriais diferentes poderiam considerar o problema de forma bem distinta, mas igualmente válida. Se existe certa subjetividade em nossos conceitos e teorias, também há subjetividade em nossos experimentos. Na verdade, experimentos realizados com experimentalistas mostram uma tendência de os cientistas verem o que querem ver e se deixarem convencer por dados que desejam considerar convincentes. Sim, os cientistas são falíveis, assim como a ciência. Contudo, todas essas razões não levam a duvidar do método científico, e sim a segui-lo da forma mais escrupulosa possível.
A história mostra que o método científico funciona. Como são apenas seres humanos, alguns cientistas podem de início resistir às ideias novas e revolucionárias. No entanto, se as previsões de uma teoria forem confirmadas pelos experimentos, ela logo se torna consagrada. Por exemplo, em 1982, Robin Warren e Barry Marshall descobriram a bactéria Helicobacter pylori, e lançaram a hipótese de que ela provocava a úlcera. Na época, o trabalho, não foi bem-recebido, pois os cientistas acreditavam com firmeza que o estresse e o estilo de vida eram as principais causas das doenças envolvendo úlceras pépticas. Porém, novos experimentos comprovaram a hipótese, e em 2005 ficou estabelecido que a Helicobacter pylori é causa de mais de 90% das úlceras de duodeno e de mais de 80% das úlceras gástricas, e Warren e Marshall ganharam o Prêmio Nobel. A ciência também poderia aceitar Deepak se suas afirmações fossem verdadeiras.
Quando teorias que encantam algumas pessoas são descartadas pela comunidade científica, em geral surgem acusações de caretice. Mas a história da ciência mostra que o verdadeiro motivo para a rejeição de algumas teorias é que elas se chocam com evidências observacionais. De fato, por uma única razão, algumas ideias muito estranhas, surgidas de áreas obscuras e inesperadas – como a relatividade e a incerteza quântica –, logo foram aceitas, apesar de desafiar o pensamento convencional: elas passaram por testes experimentais. Os proponentes da metafísica e da espiritualidade de Deepak estão muito menos abertos para revisar ou expandir seus pontos de vista de modo a abranger novas descobertas. Em vez de se mostrar receptivos a novas verdades, eles em geral se aferram a ideias, explicações e textos antigos. Mesmo que em algumas ocasiões recorram à ciência para tentar justificar suas ideias tradicionais, sempre que ela parece recusar esse apoio, eles logo lhe dão as costas. E quando empregam métodos científicos, fazem isso de forma tão livre que os significados são alterados, e, por isso, as conclusões a que chegam não são válidas.
Não se espera que a ciência responda a todas as questões do Universo. Pode muito bem haver segredos na natureza que permanecerão para sempre além dos limites mais avançados da inteligência humana. Outras problemáticas, como as relacionadas às aspirações humanas e ao significado da nossa vida, são mais bem-avaliadas a partir de múltiplas perspectivas, tanto científicas quanto espirituais. Essas abordagens podem coexistir e respeitar umas às outras. O problema surge quando a doutrina religiosa e espiritual se pronuncia sobre o Universo físico contradizendo o que observamos como verdade.
Para Deepak, a chave de tudo é a compreensão da consciência. É verdade que a ciência apenas começou a lidar com essa questão. Como esses átomos não pensantes de que somos feitos conspiram para criar amor, dor e alegria? Como o cérebro produz o pensamento e a experiência consciente? O cérebro tem mais de 1 bilhão de neurônios, mais ou menos o número de estrelas numa galáxia, porém, as estrelas quase não interagem, enquanto um neurônio normalmente está conectado a milhares de outros. Isso faz do cérebro algo muito mais complexo e difícil de decifrar que o Universo de galáxias e estrelas. Essa é uma das razões de termos dado grandes passos na compreensão do cosmo, enquanto nosso autoconhecimento continua a engatinhar. Será isso um sinal de que nossa mente não pode ser explicada?
É uma espécie de miopia acreditar que, se hoje a ciência não consegue explicar a consciência, esta está além do seu alcance. Contudo, mesmo que a origem da consciência seja complexa demais para ser entendida pela mente humana, isso não prova que a consciência resida num reino sobrenatural. Na verdade, embora o surgimento da consciência ainda represente um enigma, já temos muitas evidências de que ela funciona de acordo com as leis da física. Por exemplo, em experimentos de neurociência, pensamentos, sentimentos e sensações na mente dos sujeitos – o desejo de mover um braço, pensar em alguma pessoa específica, como Jennifer Aniston ou madre Teresa, ou a fissura por uma barra de chocolate – já foram localizadas em áreas e atividades específicas no cérebro físico. Cientistas chegaram a descobrir o que chamam de “células conceituais”, que disparam quando o sujeito reconhece um conceito como uma pessoa, um lugar ou um objeto específicos. Esses neurônios são o substrato celular de uma ideia. Eles disparam, por exemplo, cada vez que alguém reconhece madre Teresa numa foto, não importa sua posição ou o que esteja vestindo. Disparam até se o sujeito só vê o nome dela escrito num texto.
A ciência pode responder à intratável questão de como o Universo começou, e há razões para acreditar que acabe explicando as origens da consciência também. Ela é um processo sempre em movimento, cujo final não está à vista. Se em algum dia, no futuro, conseguirmos explicar a mente em termos de atividade de um conjunto de neurônios, se ficar provado que todos os nossos processos mentais são produzidos no fluxo de íons carregados no interior das células nervosas, isso não significa que a ciência irá negar o valor de coisas como “amor, confiança, fé, beleza, espanto, maravilha, compaixão, verdade, arte, moralidade e a própria mente”. Como já disse, explicar uma coisa não significa reduzir ou negar seu valor. Também é importante reconhecer que, embora uma explicação científica dos nossos processos de pensamento (ou de qualquer outra coisa) seja considerada insatisfatória ou não palatável em termos estéticos ou espirituais, isso não significa que ela seja falsa. Nossas explicações devem se guiar pela verdade, e a verdade não pode ser ajustada para se conformar ao que desejamos ouvir.
Infelizmente, a atual ausência de uma teoria científica bem desenvolvida sobre a consciência dá margem ao tipo de raciocínio impreciso que leva a conclusões conflitantes com as leis físicas conhecidas. A filosofia e a metafísica não podem explicar um aparelho de ressonância magnética, uma televisão ou uma torradeira. Será que podem explicar a consciência, ou por que o Universo é tal como o percebemos? Talvez, mas, enquanto Deepak oferece suas explicações de uma consciência universal, eu pretendo manter um importante princípio da ciência, o ceticismo. Deepak diz que, em nosso debate, ele é o injustiçado. Os dados mostram o contrário. Segundo amostragens aleatórias, somente 45% dos norte-americanos acreditam na evolução, mas 76% acreditam em milagres. Nenhum candidato a presidente seria viável se não proclamasse sua fé em algum poder mais elevado, e muitos percebem que podem obter vantagens políticas negando a teoria de evolução. A ciência não é a senhora da vida moderna como imagina Deepak, mas sua desvalorizada servidora.
As respostas da ciência não vêm com facilidade. O físico Steven Weinberg, ganhador de um Prêmio Nobel, tem dedicado a vida ao incansável estudo da teoria de partículas elementares como o elétron, o múon e o quark. Ele já escreveu que jamais considerou essas partículas muito interessantes. Por que então se dedica a entendê-las? Por acreditar que, neste momento da história do conhecimento humano, seu estudo indica o caminho mais promissor para a compreensão das leis fundamentais que regem toda a natureza. Alguns dos 10 mil cientistas que trabalharam, muitos por mais de uma década, para construir em Genebra o Grande Colisor de Hádrons, o acelerador de partículas que custou vários bilhões de dólares, talvez não achassem fascinantes as inúmeras horas passadas calibrando delicados instrumentos e sintonizando espectrômetros (embora alguns realmente gostem da tarefa!). Eles fizeram isso pela mesma razão que Weinberg estuda os múons. Os seres humanos são diferentes dos outros animais na maneira de formular perguntas sobre o ambiente. Colocado num novo ambiente, o rato o explora por um tempo, forma um mapa mental, sente-se seguro e para de fuçar. No entanto, uma pessoa iria perguntar: Por que estou nesta jaula? Como cheguei aqui? Há um bom café por perto? Os seres humanos estudam ciência porque têm necessidade de saber como nossa vida se encaixa no esquema maior do Universo. Essa é uma das características específicas que nos tornam humanos. Mas as respostas só podem ser proveitosas se forem verdadeiras. A você, leitor, eu recomendaria que, ao ponderar sobre a visão de mundo às vezes muito atraente de Deepak, tivesse em mente as palavras do ícone da física do Caltech, Richard Feynman: o primeiro princípio é não enganar a si mesmo – e você é a pessoa mais fácil de ser enganada.