H á séculos a possibilidade de vivermos em um Universo que tem vida própria intriga os homens. A religião nos diz que o Universo está imbuído da força divina do criador, portanto, ele está vivo. Mas minha responsabilidade é rever todos esses conceitos de acordo com uma perspectiva que leve a sério tanto a ciência quanto a espiritualidade. Isso não é fácil, uma vez que a ciência defende a ideia de que as primitivas formas de vida surgiram 3,8 bilhões de anos atrás, o que vale afirmar que a Terra – e o Universo – estava morta antes desse momento. Por que será tão necessário fazer da morte a fundação da vida, como se a morte fosse mais real? É nisso que insiste a ciência.
Mais real que a morte, contudo, é o fluxo. O cosmo é parte de um interminável processo que recicla matéria e energia. Nada tem uma identidade fixa: nem uma estrela, um elétron ou uma pessoa – nem você ou eu. Nada, então, é de fato real. Isso não é apenas filosofia, mas uma verdade observável. Cada átomo de seu corpo se originou da explosão de uma supernova ou de gases interestelares; você e eu somos feitos de poeira estelar. Nossas vidas se estendem muito além do que acontece pessoalmente conosco, e, num nível mais sutil, a natureza também recicla informação e memória. Cada vez que se divide, uma célula precisa lembrar como fazer isso a partir das células que vieram antes; quer dizer, dentro de uma célula, as moléculas produtoras de enzimas e proteínas são programadas com a informação ou têm código sobre o que fazer.
Você é a personificação de um Universo dinâmico; isso significa que você se estende bem além de identidades restritas como “eu sou um homem branco”, ou “eu tenho quarenta anos e sou feliz no casamento”. Formar uma visão de si mesmo de um modo limitado é uma ilusão, apenas uma lufada de pensamento flutuando num eterno continuum. A espiritualidade oferece uma maneira de se conhecer além do pessoal, e que leva ao esclarecimento. Sei que isso parece imponente. Para botar o pé no chão, precisamos elaborar um argumento baseado em fatos críveis. O primeiro fato é o que acabamos de debater: o Universo é um processo vivo, apesar das afirmações em contrário.
É óbvio que presenciamos aspectos físicos da morte em toda parte. Mas relacionar isso à própria morte é uma falta de visão. A ciência e a espiritualidade discordam de forma decisiva nesse aspecto, pois a primeira define a morte em termos puramente físicos. Sem um traje espacial, um ser humano (ou qualquer coisa viva, supõe-se) morreria em segundos no vácuo congelativo do espaço exterior. Esse fato, no entanto, é irrelevante para determinar se o cosmo é animado. O que está em questão em decidir entre um Universo morto e um Universo vivo é a consciência. Se o cosmo está parcialmente consciente, como argumentei, é porque ele é vivo.
Descobrir a consciência no Universo é muito mais importante que descobrir a gravidade, ainda que a ciência não pense assim. Há boas razões para essa resistência. No esquema materialista, a matéria deve preceder o surgimento da vida. O Universo é considerado morto antes da ocorrência do DNA. Mesmo assim, parece um milagre – ou a mais remota probabilidade no Universo – que o DNA, uma molécula que de alguma forma consegue se dividir em imagens especulares idênticas, tenha aprendido a se reproduzir. Nenhuma outra molécula tinha essa capacidade antes dele (embora os cristais sejam capazes de replicações simples, como as estalactites numa caverna). A espiritualidade não precisa de um milagre para explicar a vida quando se descarta o conceito de Universo morto. O que quero é espalhar luz, não defender um caso de magia. Muito mais forte é o argumento de que o Universo originou a vida complexa porque a vida sempre existiu, mesmo antes da criação.
Uma célula que cresce e se multiplica parece um robô que aprendeu a se construir. Logicamente, é impossível haver robôs sem um criador, pois alguém ou alguma coisa teve de montar e programar o primeiro deles. Aplico a mesma lógica ao cosmo. O Universo cria a si mesmo, e, se isso é fisicamente impossível sem algum tipo de programação, o milagre executado pelo DNA – a autorreplicação – deve ser somente um aspecto do programa cósmico. A cada segundo o Universo desaparece no nada e volta a se recriar. A física explica esse renascimento pelas leis que regem o Universo: elas atuam como as engrenagens entrosadas de um velho relógio, só que, nesse caso, as engrenagens são invisíveis.
Eu argumento que a receita para a vida na Terra está entrelaçada à existência subjacente da autocriação cósmica. O termo técnico empregado é autopoiesis: “auto”, em sentido literal, combinado com a palavra grega que significa “fazer”. Ninguém pode negar que o Universo se cria e se mantém, assim como o paramécio ao flutuar numa lagoa sob a luz solar.
No plano da célula, cada paramécio não descende do primeiro, que evoluiu bilhões de anos atrás: ele é o primeiro. Versões completamente idênticas são produzidas por divisão celular, sem nada se acrescentar ou subtrair. É verdade que novas matérias-primas devem ser coletadas para construir cada geração de paramécios (e pode haver mutações no caminho, como a morte da maioria), mas isso é secundário. A vida é como uma casa que se mantém de pé, parecendo a mesma, dia após dia, embora cada tijolo seja constantemente substituído por outro. Ar e alimento estão sempre entrando e saindo de todas as células vivas, mas alguma coisa permanece intacta.
Posso escolher chamar de “vida” esse invisível poder de organização, porém, uma explicação mais específica só pode surgir quando observamos mais de perto a autopoiesis, ou autocriação. Quatro elementos estão envolvidos, e peço desculpas antecipadas pela explicação técnica. Para se autocriar, é preciso:
1. Um mecanismo unificado, com capacidade de se autoconstruir.
2. Partes componentes que se auto-organizam nesse mecanismo.
3. Uma teia de processos que pode se transformar em qualquer coisa exigida pelo mecanismo.
4. Um espaço autocontido que não depende de uma causa exterior.
Isso é muito mais abstrato que dizer “Nós moramos num Universo vivo”, embora as quatro exigências levem a essa conclusão. Vou começar aplicando essas condições a um embrião em gestação no útero. O embrião é unificado – vemos uma célula se dividir em dois, quatro, oito, dezesseis e assim por diante, passando por cinquenta replicações, todas orientadas para o mesmo objetivo: um bebê. O embrião vai crescendo à medida que seus componentes (alimento, ar e água) se juntam para servir a uma meta em comum. Uma teia de processos constrói cada célula, levando a outra teia, que transforma células-tronco em órgãos especializados, como coração, fígado e células cerebrais. Finalmente, não há mais necessidade de uma causa externa. O óvulo fertilizado pode ser posto num tubo de ensaio. Mesmo nessas condições de isolamento estéril em relação à mãe, enquanto forem fornecidos os três primeiros ingredientes, o bebê vai começar a crescer.
Um cético pode argumentar que o Universo não funciona dessa maneira. Por analogia, os cristais de açúcar que crescem em fio, ao pingar numa solução saturada de açúcar, não estão vivos, ainda que se desenvolvam e se reproduzam. Mas a autopoiesis não pode ser comparada aos cristais. O Universo não tinha um meio onde crescer, nada equivalente à solução de açúcar. Ele criou a si mesmo a partir do nada. A autocriação simplesmente muda de roupa quando nasce um bebê. Um recém-nascido, uma galáxia, um fóton e a ecologia de uma floresta tropical não se assemelham, mas, quando se examina a vida no nível mais profundo, o nada está criando cada aspecto do Universo vivo. A vida é a maneira pela qual o Universo inventa olhos e ouvidos para ver e ouvir a si próprio. O cérebro humano é um posto de observação para o cosmo vivenciar a si mesmo.
Quando se segue esse caminho de investigação, são inúmeras as evidências de que, desde o começo, o potencial das formas de vida complexas está entrelaçado ao cosmo. Como, nos próximos capítulos, vamos nos prolongar no debate sobre a vida, apresento um resumo para montar o cenário.
O Universo pode ser entendido como uma coisa viva, pois:
1. Autopoiesis: Todas as coisas vivas crescem a partir de dentro.
2. Totalidade: As coisas vivas funcionam como um processo simples, unificando muitas partes separadas.
3. Consciência: As coisas vivas, sejam elas primitivas ou complexas, são dotadas de consciência. Ao contrário das substâncias químicas inertes, elas respondem ao meio ambiente.
4. Ciclo de vida: As coisas vivas passam do nascimento à morte, e sustentam a si mesmas entre esses dois momentos.
5. Reprodução espontânea: As coisas vivas se multiplicam e se reúnem em populações. No interior dessas populações, existe uma relação entre os membros individuais.
6. Criatividade: As coisas vivas evoluem; elas não reproduzem clones de forma mecânica. Por isso, temos uma constante demonstração de criatividade.
7. Manifestação: Um organismo animado capta ingredientes abstratos e os projeta no espaço-tempo como um holograma vivo. Essas projeções podem ser vistas; elas se comunicam, entram na dança da vida. Quando esquadrinhamos qualquer coisa viva, inclusive o Universo, chegamos outra vez ao plano abstrato. No caminho, parece que a centelha da vida desapareceu. Examinado sob um microscópio capaz de revelar sua estrutura molecular, o tecido vivo se reduz a substâncias químicas inertes. Na verdade, contudo, a centelha da vida não apagou, porque não há uma centelha a ser apagada. A vida também está no vazio, mas de forma tão abstrata que é preciso um holograma – como eu ou você – para se manifestar.
Do ponto de vista espiritual, perguntar se o Universo é hospitaleiro à vida é uma questão sem sentido. O Universo e a vida são a mesma coisa. Não podemos nos deixar enganar pela máscara do materialismo. Atrás dessa máscara, o dançarino é a dança – sempre foi e sempre será.
Em 1944, os psicólogos Fritz Heider e Marianne Simmel fizeram um curta-metragem que mostrava um círculo, um triângulo grande e um pequeno. A ação envolve essas figuras geométricas perseguindo umas às outras até a cena final, quando uma delas sai da tela e outra se despedaça. Podemos achar que esse filme tem a ressonância emocional de um texto sobre geometria euclidiana. Mas quando Heider e Simmel pediram aos sujeitos pesquisados para “escrever o que aconteceu”, verificaram que os espectadores pareciam ter assistido a um filme indicado ao Oscar, interpretando as formas geométricas como pessoas, atribuindo motivações humanas às figuras e inventando um enredo para explicar os movimentos. Nós gostamos tanto de uma boa história que vemos uma em quase qualquer coisa. Antropomorfizamos tudo, de gatos e cães a carros, e parece que até figuras geométricas; por isso, é fácil entender por que nos sentimos atraídos por uma teoria metafísica sobre o Universo vivente e pensante.
Deepak apresenta uma história envolvente, segundo a qual equacionar o aspecto físico da morte com o fim da vida é sinal de “miopia”, pois todos somos parte de um Universo “autoconsciente”, e, portanto, “vivo”. Para dar sentido à afirmação de que o Universo é uma entidade viva, precisamos entender o que significa alguma coisa estar viva. Pode-se dizer que uma torrada está viva, mas tente fazer com que ela passe manteiga em si mesma. Pode-se declarar que uma pedra está viva, mas não é provável ver uma pedra dar à luz. Em geral, quando pensamos em algo vivo, devemos imaginar, no mínimo, que ele reaja ao ambiente e seja capaz de se reproduzir. O que esses critérios significam quando falamos do Universo?
Deepak relaciona sete exigências para a vida, e diz que o Universo as satisfaz. A primeira da lista é o crescimento. O Universo cresce? Crescer significa aumentar de tamanho e substância. O Universo não está aumentando em substância, e os físicos acreditam que ele seja infinito, por isso, a questão do tamanho é sutil. Mas se estabelecermos qualquer região no interior do Universo, essa região cresce porque, como expliquei antes, o espaço se expande. Então, podemos dizer que a exigência de crescimento está preenchida. O segundo critério, o de totalidade, requer que uma coisa viva funcione como unidade. Esse é um argumento piegas. Pegue um time do seu esporte preferido. Ele funciona como unidade? Um bom time funciona, um mau, não, e técnicos, comentaristas e fãs podem argumentar até o fim da vida sem chegar a uma conclusão. Mas, por definição, o Universo inclui tudo, por isso seria difícil argumentar que ele não satisfaz ao conceito de “totalidade”. A exigência do ciclo de vida, que as coisas vivas seguem do nascimento até a morte, é satisfeita por qualquer objeto que não dure pela eternidade. O nascimento de uma criança não é a mesma coisa que o nascimento de um bolo de chocolate, mas, ainda assim, poderíamos dizer que o Universo também satisfaz a esse critério.
Por outro lado, a maior parte dos físicos não diria que o critério de reprodução é preenchido. Podemos deixar isso como uma questão em aberto, já que alguns modelos não testados e altamente especulativos, em cosmologia – como o chamado Universo epirótico –, chegam perto disso, permitindo que os Universos renasçam, como uma fênix, a partir de seus próprios remanescentes. Mas, mesmo nesses modelos, os Universos recém-nascidos não “se multiplicam e se reúnem em populações”, como requer Deepak, por isso, só se pode concluir que o critério de reprodução não é satisfeito. A condição de consciência – um organismo responde ao seu ambiente – não pode ser aplicada ao Universo, porque ele, sendo “tudo”, não está num ambiente. Da mesma forma – como argumentei no Capítulo 4 –, uma vez que o cosmo não existe num ambiente externo e não passa por uma seleção natural, não se pode dizer que ele esteja evoluindo no sentido biológico do termo. Por isso, o Universo também não satisfaz a esse critério. O conceito de Deepak, de um Universo vivo, é interessante, mas os últimos três critérios mostram que, mesmo de acordo com a própria definição de Deepak, o Universo não está vivo.
Será que se poderia considerar o Universo vivo, num sentido mais abstrato ou generalizado? Deepak fala de mudanças que acontecem no cosmo, como o desenvolvimento de galáxias e da vida, e avalia que “a vida é a maneira pela qual o Universo inventa olhos e ouvidos”. O verdadeiro critério para julgar se o Universo está vivo, ele sugere, não é sua listagem de características usuais, mas o seguinte: se o cosmo é autoconsciente, ou consciente, ele está vivo.
Deepak acredita que descobrir a consciência no Universo é mais importante que a descoberta da gravidade, “ainda que a ciência não pense assim”. Na verdade, a ciência pensaria assim. Claro, haveria a vociferante oposição que em geral acompanha as novas hipóteses. Mas a história mostra que, caso se descobrisse – e não meramente se propusesse – que o Universo é consciente, os cientistas se atirariam de cabeça sobre o achado, e logo haveria ganhadores de Prêmio Nobel e milhares de artigos escritos sobre a psicologia do cosmo, com títulos como “As supernovas são autodestrutivas?”, ou “Os buracos negros são sintoma de depressão?” Os cientistas constroem suas trajetórias com ideias novas e revolucionárias – em especial jovens cientistas, cuja reputação não depende da manutenção das ideias revolucionárias antigas. Contudo, para ganhar aceitação na ciência, a ideia deve ter implicações verificáveis, coisa que não parece acontecer com esse conceito de consciência universal.
A prova que Deepak apresenta é a seguinte: ele diz que a consciência universal explica como a vida se originou no Universo. Logo iremos chegar a essa afirmação. Antes quero esclarecer a questão. Deepak compara a aparência do DNA a um zíper que de alguma forma consegue se abrir. De onde veio o DNA? – ele pergunta. Isso requer uma explicação. Sabemos o que acontece quando organismos unicelulares se constituem: a evolução promove o incessante desenvolvimento de formas de vida, desde células simples a complexas, depois à vida multicelular e a seguir a criaturas como insetos, peixes, anfíbios, répteis, pássaros, mamíferos, finalmente primatas e nós. Mas embora a evolução crie organismos cada vez mais complexos, todos eles, desde a mais simples bactéria, têm algo em comum: estão envolvidos em máquinas moleculares que criam energia, transportam nutrientes, transmitem mensagens, constroem e consertam estruturas celulares, além de desempenhar outras tarefas fascinantes. Essas moléculas costumam ser de um tipo chamado enzima, um catalisador feito de proteínas (catalisador é uma molécula que muda a velocidade de uma reação química). À medida que todas as formas de vida utilizam essas moléculas, pode-se concluir que elas são uma das exigências da vida, ao menos como a conhecemos. A questão é: se até os primeiros organismos vivos simples, a partir dos quais todos evoluíram, incluem até hoje essas estruturas, como as moléculas surgiram pela primeira vez?
A origem da vida é um campo de pesquisa em andamento, com muitas perguntas a responder; mas as experiências sugerem que é possível as moléculas genéticas semelhantes ao DNA se formarem de modo espontâneo; outros experimentos indicam que é possível que elas se desdobrem para agir como catalisadores. Isto é, as primeiras formas de vida, ou o que chamamos de “pré-vida”, poderiam consistir em membranas formadas a partir de ácidos graxos – outro tipo de molécula que sabemos se formar espontaneamente – que encapsularam uma mistura de água e moléculas genéticas. Mutações aleatórias podem ter assumido o comando, capacitando essas células a se adaptar ao ambiente e criando a vida como a conhecemos. Lembre-se: mesmo que essa origem espontânea, ou pré-vida, seja improvável em alguns sistemas estelares, isso não excluiria sua ocorrência, dada a existência de 10 bilhões de trilhões de estrelas no Universo observável. Se “improvável” não se refere a menos de um em 1 trilhão, dá para imaginar mais de 1 bilhão de sistemas estelares capazes de abrigar a vida.
Vamos supor que a vida num dado sistema estelar seja uma probabilidade em 1 trilhão. Como podemos explicar a sorte que tivemos? Se um sistema desenvolver a vida num grupo de 1 trilhão de estrelas, pelos processos normais da natureza, pode parecer aos seres desse sistema estelar que sua existência é um milagre. Se eles tentassem escolher um lar lançando um dardo num mapa do céu, a probabilidade seria de uma em 1 trilhão de acertar um sistema solar portador de vida. Mas não foi o que aconteceu. Esses seres nasceram num sistema estelar no qual a vida se desenvolveu. E, independentemente de quanto for rara a vida, por definição, se os seres vivos olharem ao redor, irão perceber que nasceram num sistema estelar que favorece a vida. Por isso, não se trata de um milagre, nem mesmo de boa sorte. É apenas uma consequência lógica.
Os cientistas podem não ter resolvido ainda o problema da origem da vida, mas nossa civilização não avançou tanto em suas descobertas a ponto de chegar à conclusão de que, se a ciência ainda não explicou alguma coisa, é porque nunca mais explicará. Como alternativa à ciência, o que a metafísica de Deepak oferece? Como um Universo vivo e consciente explica o surgimento da vida? Ele diz: “A espiritualidade não precisa de um milagre para explicar a vida quando se descarta o conceito de Universo morto. … Muito mais forte [que o apelo ao milagre] é o argumento de que o Universo originou a vida complexa porque a vida sempre existiu, mesmo antes da criação.” Esse argumento pode parecer profundo quando aplicado à vida no Universo, mas vamos examinar a lógica num contexto mais terreno – digamos, nas refeições matinais. O argumento ficaria mais ou menos assim: “Nós não precisamos de um milagre para explicar como o ovo frito apareceu no meu prato quando o conceito de prato sem ovos foi descartado. Muito mais forte que o apelo ao milagre é o argumento de que o Universo originou os ovos fritos porque eles sempre existiram, desde que o prato foi fabricado.” Essa explicação realmente não esclarece muito.
O argumento de Deepak é semelhante à “primeira prova da causa” da existência de Deus, de são Tomás de Aquino, no século XIII. É algo como: nada pode causar a si mesmo, por isso, tudo tem uma causa prévia. Cada causa prévia também deve ter uma causa prévia. A única maneira de terminar essa corrente é a existência de alguma coisa extraordinária que não exija uma causa, e isso é Deus. Ele é aquele que pode criar, mas não precisa de um criador para si próprio. Mesmo se aceitarmos o argumento, há um passo gigantesco entre esse conceito de Deus e o conceito mais específico de Deepak, de uma consciência universal, ou o Deus bíblico em que são Tomás de Aquino se baseou para justificar sua argumentação. Essa explicação não faz mais do que transferir o mistério do surgimento do Universo do nada para o mistério de como Deus pode ter vindo do nada. A simples asserção de que Deus é Deus porque Ele não precisa de causa não nos leva muito longe.
Quando Stephen Hawking e eu terminamos de escrever O grande projeto, tentei explicar o livro para minha filha Olivia, que na época tinha nove anos, enquanto esperávamos uma mesa na lanchonete IHOP. A ciência trabalha com as grandes perguntas, falei, e queremos explicar nossas entusiasmantes respostas para pessoas que não são cientistas. De onde nós e o Universo viemos, por que isso é do jeito que é? Ela ouviu com atenção. Depois pensei em verificar quanto ela tinha absorvido. “Por que nós estamos aqui?”, perguntei. Ela me olhou com uma expressão curiosa. “Porque estamos com fome!”, respondeu. Acho que eu não devia tentar debater questões intelectuais profundas antes do café da manhã.
Todos nós temos abordagens pessoais das questões importantes, mas, quando nossa fome vai além do gosto por panquecas e parte para anseios humanos mais profundos, é melhor tomar cuidado antes de começar a interrogar a fada dos dentes. A rigorosa abordagem da ciência, que Deepak acredita obscurecer a riqueza da vida, serve para não acreditarmos em ideias sedutoras que não se apoiem em evidências extraídas da natureza.
Deepak escreve que “o alto nível de consciência permitiu que grandes sábios, santos e visionários chegassem a um tipo de conhecimento que faz a ciência se sentir ameaçada”. Podemos todos concordar que os grandes sábios, santos e visionários exploraram um conhecimento que está fora do domínio da ciência; também podemos concordar que há muitos tipos de conhecimento subjetivo importantes para nós. Por exemplo, interessa muito saber o que faz um filho se sentir amado, seguro e feliz. Por exemplo, quando Olivia diz que o adjetivo que melhor a descreve é “alegre”, isso dá um grande significado à minha vida. A importância desse tipo de experiência subjetiva não ameaça um cientista. Mas o perigo de pôr a subjetividade num pedestal e aceitar sem críticas as especulações metafísicas, como se elas fossem verdadeiras, é negligenciar a mais importante compreensão intelectual que podemos atingir: conhecer o verdadeiro lugar que a humanidade ocupa no cosmo físico. Para mim, isso também faz parte da riqueza da vida.