7. O que é a vida?

 

LEONARD

No antigo Egito, a cada primavera, o rio Nilo transbordava sobre as terras vizinhas. Quando a água baixava, deixava para trás um lodo rico em nutrientes que possibilitava às pessoas plantar e colher para se sustentar. O lodo também dava origem a algo que não existia nos tempos de estiagem: um grande número de sapos. Os animais surgiam tão de repente que pareciam vindos da lama – e era a maneira como os egípcios explicavam a origem deles. Os europeus medievais viveram experiências análogas. Açougueiros descobriram que vermes e moscas apareciam na carne deixada à exposição. Gansos que migravam durante a noite apareciam de repente na costa oeste da Europa, como que saídos de restos de naufrágios. Camundongos também pareciam gerar a si mesmos nos grãos armazenados nos celeiros. No século XVII, um místico e químico chamado Jan Baptist van Helmont chegou a criar uma “receita” para fazer camundongos: depositar roupas de baixo sujas num recipiente aberto, com alguns grãos de trigo, e esperar 21 dias. Apesar de furada, a ideia dava certo. Durante a maior parte da história da humanidade, parecia óbvio que organismos vivos simples podiam surgir do nada, num processo que ficou conhecido como geração espontânea.

Mas logo começaram a aparecer explicações diferentes. Em 1668, um físico e naturalista italiano chamado Francesco Redi desconfiou que os vermes que surgiam na carne – e as moscas que eles originavam – nasciam de ovos invisíveis postos por outras moscas. Redi realizou uma das primeiras experiências verdadeiramente científicas da biologia para verificar sua ideia. Pôs amostras de carne de cobra, peixe e vitela em vidros de boca larga, deixando alguns deles destampados e cobrindo outros, alguns com papel, outros com um tecido semelhante à gaze. Sua hipótese era de que, se sua teoria estivesse errada, moscas e vermes apareceriam na carne, independentemente da situação. Se estivesse certa, eles deveriam infestar a carne destampada, mas não a recoberta com papel. Imaginou também que houvesse moscas zunindo ao redor do vidro coberto de gaze, mas não dentro do recipiente. Pensou que depois iam aparecer vermes na gaze, e eles cairiam na carne dentro do vidro. Foi exatamente o que aconteceu.

O experimento de Redi foi uma ducha fria na teoria da geração espontânea, mas esta última ideia não foi abandonada. Com o desenvolvimento e aperfeiçoamento do microscópio, nos anos 1700, as pessoas conseguiram pela primeira vez observar várias formas de vida desconhecidas, como bactérias e outros organismos unicelulares. Ninguém sabia de onde vinham, mas a maioria dos pesquisadores suspeitava que estivessem associados ao refugo de carnes e outros alimentos em deterioração. Mesmo assim, alguns continuaram a adotar a hipótese da geração espontânea, pois ela parecia comprovar a existência de uma força vital imanente no Universo. Também podia ser considerada indício de que Deus teria criado a vida a partir do nada. Em 1745, um biólogo e padre católico chamado John Needham realizou um experimento semelhante ao de Redi, mas em escala microscópica. Sabendo que o calor matava as bactérias associadas à putrefação, ele aqueceu uma canja de galinha por alguns minutos para matar tudo que estivesse vivo ali dentro; em seguida, deixou a sopa esfriar e vedou o recipiente. Alguns dias depois, a canja mostrou sinais de putrefação. Um abade italiano chamado Lazzaro Spallanzani repetiu a experiência de Needham com um protocolo de esterilização mais rigoroso, e a canja não estragou. Mas a experiência de Needham já tinha dado nova vida à tese de geração espontânea, e o trabalho científico mais meticuloso do abade não foi suficiente para descartar a ideia.

A crença de que havia uma espécie de essência – uma força vital – presente no Universo era (e ainda é) atraente para muitos cuja religião ou visão espiritual afirmava que a vida está impregnada de uma qualidade especial não explicável pelas forças da natureza. Desde o início dos tempos, as pessoas perceberam que as coisas vivas parecem essencialmente diferentes das inanimadas, por isso, à parte motivos religiosos, era natural ver na geração espontânea a prova de alguma força portadora dessa essência. Mais ou menos um século depois da controvérsia entre Needham e Spallanzani, Louis Pasteur resolveu a questão da geração espontânea com experimentos acurados, provando, de modo convincente, que os micro-organismos trazidos pelo ar estragavam a canja, e não seres nascidos no próprio alimento.

Então, o que é a vida? O que significa estar vivo? Deepak considera a consciência o alicerce de um Universo vivo. Seu ponto de vista é remanescente de uma teoria conhecida como vitalismo, segundo a qual a vida surge a partir de um princípio ou força vital que permeia o cosmo e está fora do domínio da química e da física. Se houvesse uma força desse tipo no interior de todos os organismos vivos, o ato de determinar o que é vivo equivaleria, digamos, a estabelecer se um objeto é um ímã. Assim como o ímã é uma fonte de – e reage à – força magnética, se houvesse força vital, um objeto vivo interagiria com ela, e poderíamos usar essa interação para definir e mensurar o que é vivo. Mas, se não existe uma força vital, o que torna as coisas vivas “essencialmente diferentes”? Como decidir o que está vivo?

Os biólogos não concordam quanto à melhor forma de definir a vida. Os organismos vivos que encontramos no nosso mundo cotidiano têm algumas propriedades em comum, semelhantes aos critérios que Deepak apresentou no Capítulo 6: eles possuem um metabolismo que os faz converter e utilizar nutrientes e energia; eles se reproduzem; crescem; respondem a estímulos, como quando as folhas de uma planta se voltam para a luz solar; numa escala de tempo maior, as espécies mudam ao adaptar suas características às exigências do meio ambiente; e são dotados de homeostase, o processo de autorregulação (relacionado a tudo no corpo, desde a temperatura corpórea ao equilíbrio de substâncias bioquímicas na corrente sanguínea) que permite aos organismos manter um estado interno coeso. Por exemplo, um cubo de gelo jogado numa piscina é mais frio que a água, mas, em pouco tempo, vai aquecer e derreter, enquanto a piscina fica um pouco mais fria. As forças do calor e do frio, em outras palavras, lutam entre si e atingem o equilíbrio sob a forma de temperatura uniforme. Do mesmo modo, um pote de água fervente colocado numa corrente fria vai esfriar, enquanto a corrente aquece um pouco, até os dois chegarem à mesma temperatura. No entanto, uma pessoa jogada numa piscina ou numa corrente fria é capaz de realizar a homeostase, e mantém a temperatura do corpo.

Embora a lista dessas propriedades funcione bem como definição de vida para tartarugas, sequoias e fungos, ela se torna controversa nos casos-limite, como vírus, proteínas autorreplicantes e vírus de computador. Quem sabe quais outras criaturas vivas exóticas poderemos descobrir um dia, em outros planetas, que se encaixam nas nossas definições? Já vimos que, aqui na Terra, num ambiente rico em arsênico, a sagrada molécula de DNA funciona de uma maneira alternativa, na qual os átomos de fósforo de sua estrutura são substituídos por arsênico, elemento da mesma família do fósforo, mas bem diferente.

Pode-se argumentar que os biólogos não precisam de uma definição única de vida – a solução talvez seja aceitar diversas categorias de vida, cada qual exibindo diferentes combinações de características vitais. Um vírus pode não preencher todos os critérios tradicionais, a halita satisfaz um ou dois, e um micro-organismo de Marte, três – mas os detalhes de como escolhemos definir a vida não são importantes se todos conhecermos os critérios a que cada um de nós recorre.

Os biólogos querem saber como funcionam as coisas vivas, e precisam de uma definição de vida por razões operacionais. Mas, aqui, Deepak e eu estamos interessados numa questão mais profunda: qual a relação das coisas vivas com o Universo físico? Ou seja, se considerarmos que esquilos, sequoias e fungos estão vivos, e que os vírus, até os de computador, são no mínimo “formas de vida”, quais características físicas distinguem os átomos e moléculas que compõem cada uma dessas coisas dos átomos e moléculas num pedaço de metal ou no sal marinho?

Se houvesse uma força vital, poderíamos dizer que ela instila em cada uma de nossas moléculas um quantum de vitalidade, tornando vivo cada átomo dentro de nós. Seríamos como um bolo no qual a doçura de cada migalha se acrescenta à doçura do todo. Uma coisa viva, porém, não é tão viva quanto a soma de suas partes. A vida é o que os cientistas chamam de “propriedade emergente”. Uma onda no oceano depende de interações entre diversas moléculas; portanto, para analisar uma onda, é preciso entender conceitos como temperatura e pressão, que não têm sentido quando se fala apenas de algumas moléculas. Da mesma forma, é difícil ou impossível entender o que significa estar vivo estudando apenas moléculas individuais. Átomos e moléculas de uma coisa cujas características se encaixam na definição de vida não são diferentes dos átomos e moléculas de um pedaço de metal. O que difere é a organização.

Do ponto de vista da física, as coisas vivas se distinguem pela organização e pela capacidade de mantê-la. Há muito mais formas de rearranjar os componentes num caldeirão de sopa de legumes sem destruir sua identidade como sopa do que de rearrumar as partes de um gato sem destruir sua identidade como coisa viva: portanto, a organização e a ordem são mais importantes para o gato que para a sopa. Se começamos a mexer com a maneira como nossas moléculas se encaixam, ou como os órgãos estão ligados um ao outro, não vamos viver muito tempo. Quando paramos de manter a ordem, morremos, voltando a um estado altamente desordenado.

Essa ideia começou a ser popularizada por Erwin Schrödinger, um dos fundadores da teoria quântica, numa série de palestras públicas ministradas na Irlanda e publicadas em 1944, no livro O que é a vida? Não costumo citar físicos que morreram há algum tempo, e isso por algumas razões. Uma delas é que, ao contrário dos religiosos, os físicos não atribuem muito peso à autoridade. Sem dúvida eles ouvem com atenção os argumentos dos colegas brilhantes – e depois vão verificar as equações. Mais importante ainda: como a ciência progride, qualquer estudante graduado em física hoje sabe muito mais sobre física quântica ou qualquer outra teoria física fundamental que Schrödinger, Heisenberg, Bohr, Planck, Einstein ou qualquer dos pioneiros das ideias quânticas. Qualquer leitor da revista Scientific American conhece mais sobre o cérebro e a neurociência do que eles sabiam. Não quer dizer que tudo o que esses cientistas falaram está errado, mas nem tudo o que disseram estava certo, e por boas e compreensíveis razões.

Parte da fama de O que é a vida? vem da especulação apresentada por Schrödinger sobre como a informação genética pode ser codificada nas coisas vivas. Depois o livro foi reconhecido como fonte de estímulo pelo físico e depois biólogo molecular Francis Crick. Ele, James Watson e Rosalind Franklin descobriram a estrutura de dupla hélice do DNA. Ao lidar com a questão formulada no título do livro, Schrödinger oferece também uma pérola que ainda inspira a maneira como os físicos entendem a vida, descrevendo seus contornos com muita clareza:

Qual o aspecto característico da vida? Quando se pode dizer que uma porção de matéria é viva? Quando é capaz de “fazer alguma coisa”, se movimentar, trocar material com o meio ambiente e assim por diante; quando faz isso durante um período de tempo maior do que, em circunstâncias similares, um pedaço inanimado de matéria “permanece o mesmo”. … Um organismo parece enigmático por evitar a célere decadência rumo ao estado inerte de “equilíbrio”.

Coisas vivas não são como pedras inanimadas rolando por uma montanha: graças à homeostase, nossos fluidos conservam uma mistura exata, nossas estruturas internas preservam sua composição, e, no caso dos animais de sangue quente, a temperatura se mantém dentro de certo intervalo.

Quando falei de homeostase, mencionei que a água fervente despejada numa corrente fria vai perder calor, enquanto isso não acontece com um ser humano. Claro, se você continuar ali por muito tempo, seus mecanismos homeostáticos serão desarmados a ponto de produzir uma hipotermia, e você acaba morrendo – no momento em que a temperatura de seu corpo for igual à da água e você estiver em equilíbrio com o ambiente. No entanto, a maioria das pessoas se sente desconfortável com o frio e sai do riacho. Por isso, há duas características ativas fundamentais na vida para resistir ao destino da água fervente: o metabolismo (que ajuda a manter a temperatura do corpo, ao menos por algum tempo) e a resposta aos estímulos. Isso é a vida operando no seu nível mais fundamental – como um complexo de moléculas famintas de energia, organizadas temporariamente e resistindo a voltar ao equilíbrio.

Mas o retorno é inevitável. Nesse caso, eu acredito literalmente no que diz a Bíblia, no Gênesis: “Para fora [do solo] foste arrancado; pois do pó viestes e ao pó voltarás.” O pó é um conglomerado desordenado que reúne todos os tipos de partículas; mas, entre o nosso começo a partir do pó e o nosso fim como pó, o Universo provê às coisas vivas a capacidade de manter uma ordem estrita. Para os seres humanos, esse dom representa que, durante algum tempo, nossas células podem se manter organizadas e preservar a integridade de seu conteúdo; nosso sangue pode fluir pelos canais adequados no interior do corpo; nossos músculos, órgãos e ossos mantêm sua estrutura e função. E, mais importante para a nossa sensação do que somos, nosso cérebro funciona, propiciando-nos a faculdade da razão para armazenar momentos queridos da infância, para se ligar a outras pessoas.

Conversei com meu pai enquanto escrevia este livro. Desde que me entendo por gente, eu me preocupava com a saúde dele. Quando conversamos, numa noite dessas, ele me garantiu que está vivo e passa bem, como faz todas as vezes que nos encontramos, nos últimos vinte anos… nos meus sonhos. Meu pai morreu há duas décadas, mas eu ainda não aceitei isso. Prefiro acreditar que ele se reuniu ao Universo ou foi viver sob alguma outra forma. Infelizmente, para mim, esse desejo não é forte o bastante para superar o ceticismo. A metafísica de Deepak não é uma religião, mas, assim como em muitas religiões, suas respostas são tranquilizadoras. É preciso uma coragem especial para acreditar na ciência – para encarar o fato de que, depois da morte, nosso corpo volta à temperatura dos objetos inanimados ao nosso redor; que nós e nossos entes queridos entramos em equilíbrio com o ambiente; que de novo nos tornamos pó.

 

DEEPAK

É preciso uma perspectiva bem ampla para saber o que é a vida. Se ela surgiu dos mecanismos físicos mais básicos que Leonard descreve, como a homeostase e a troca de calor, as algas azul-esverdeadas entenderiam melhor a si próprias. Mas as ricas profundezas da vida não foram sondadas pela ciência, e é para aí que a espiritualidade deseja se dirigir. Em capítulo anterior, Leonard defendeu a superioridade da ciência afirmando que a metafísica não consegue construir um aparelho de ressonância magnética. É verdade, mas o outro gume da espada é que a metafísica também não constrói armas de alta tecnologia. A ciência talvez torne a vida melhor em termos materiais, mas ninguém pode dizer que o mundo está sofrendo por falta de materialismo; na verdade, o mundo sofre pela razão oposta: falta de autoconhecimento.

A ciência poderia ajudar no autoconhecimento se expandisse seus horizontes. Poderia prestar atenção à essência daquilo em que Einstein acreditava: “Afirmo que o sentimento de religião cósmica é o motivo mais forte e nobre para a pesquisa científica.” Segundo minha maneira de pensar, Einstein, Schrödinger, Pauli e outros, chamados de místicos quânticos, mostraram grande sabedoria ao honrar o lado espiritual da mente humana. Depois de dedicar uma vida inteira à pesquisa científica, eles chegaram à conclusão de que a espiritualidade oferece uma exploração muito mais abrangente da vida do que a ciência, por si só, jamais conseguirá realizar.

Então, o que é a vida? A vida é a essência da existência. “Essência” não significa um elixir divino que Deus despejou no ouvido de Adão e Eva. Tampouco é a “força vital” (falarei sobre isso adiante). A essência se refere a algo mais básico, àquilo que não podemos afastar sem negar a criação. A evolução dá origem a milhões de diferentes formas, mas não vamos nos deixar distrair pelo fato de que plantas e animais são diferentes de estrelas e galáxias. A vida está embrenhada na própria trama do Universo. Você não pode afagar uma estrela ou levar um elétron para passear no parque, mas, no fundo, as duas coisas estão vivas.

Por quê? Porque, como vimos, o Universo passa pelos mesmos testes que a biologia aplica a micróbios, vírus, células hepáticas, ratinhos brancos e assim por diante. Todas as criaturas vivas nascem e morrem. A parte física decai e é reciclada em nova vida. As folhas que se desprenderam no ano passado tornaram-se fertilizantes para os brotos da primavera seguinte. (Talvez você sinta um pouco de nojo, porém, quando uma minhoca morta injeta nitrogênio na terra, fazendo com que um carvalho cresça e dê frutos comidos pelos porcos, se você come bacon no café da manhã… Bem, você pode tirar suas conclusões sobre a origem do nosso corpo.) Mas esse ciclo de renascimento não está no piloto automático. Se uma ameba morre e se decompõe, a matéria-prima não precisa voltar como outra ameba. Qualquer forma de vida, inclusive o corpo humano, pode usar esse material.

Em outras palavras, nascimento e renascimento são manifestações muito criativas. Algo antigo e conhecido leva a algo novo e original. O Universo vem aperfeiçoando sua capacidade criativa há bilhões de anos. Esse impulso criador é o que eu chamaria de “força vital”. Leonard acredita que as verdadeiras forças podem ser mensuradas, que algum tipo de aferidor, como o relógio de energia elétrica instalado em sua casa, deve ser capaz de medi-las. A força vital parece ser mais o poder da imaginação. Se você conseguisse medir as calorias emitidas pelo cérebro de Leonardo da Vinci, estaria calculando o poder de imaginação do artista. O cérebro emite calor, mas esse é um efeito colateral, não o verdadeiro poder, que é invisível e imensurável.

Os materialistas podem menear a cabeça em desacordo, mas há forças que os instrumentos científicos não podem registrar. (A força do desejo, a força da curiosidade e a força do amor poderiam estar no topo da lista.) A espiritualidade argumenta que a criatividade está no cerne de tudo que pode ser definido como vivo. Quer dizer então que uma pedra no seu sapato está viva? Sim, pois é parte do mesmo processo criativo que inclui você, um processo que sempre aparece com novos produtos. (É fascinante notar que as pedras precisaram de vida para evoluir. A primeira fase da história da Terra começou com 250 minerais, que, como vimos, vieram com a poeira de supernovas e as colisões de asteroides. As turbulentas forças da crosta terrestre, inclusive o imenso calor liberado pelos vulcões, elevaram o número de minerais para mais ou menos 1.500. Porém, cerca de 2 bilhões de anos atrás, organismos vivos começaram a processar esses minerais – como alimento e para construir conchas e esqueletos. Minúsculos plânctons oceânicos, cujos esqueletos são basicamente feitos de cálcio, formaram os Penhascos Brancos de Dover e a maior parte das outras formações calcárias. De modo surpreendente, coisas vivas fizeram com que os minerais continuassem evoluindo até chegar ao atual número de 4.500. A evolução cósmica confiou na vida como um grande cocriador.)

Leonard pede para não cairmos nas ilusões da metafísica, por mais reconfortante que elas possam ser: a vida é apenas o intervalo antes que o pó volte ao pó. Mas a ciência tomou sua própria decisão metafísica ao depositar sua fé na matéria. Dizer “Nós não precisamos de Deus” é metafísica. Dizer “A vida foi criada somente a partir de moléculas” também é metafísica. Aliás, eu diria que é uma metafísica fraca. A fisiologia básica afirma que nosso cérebro é alimentado por glicose, ou o açúcar no sangue. Eu não seria capaz de escrever uma palavra ou formular um pensamento sem usar moléculas de glicose. Contudo, mesmo que, no futuro, um superequipamento de ressonância magnética consiga identificar uma molécula de sangue no exato instante em que um neurônio dispara o sinal correspondente a uma palavra desta página, isso não seria a prova de que a glicose pensa.

Vamos tentar rastrear uma célula neural até os átomos que a formam, depois seguir até as partículas subatômicas, para afinal atravessar a fronteira do mundo invisível, do que está além. Ninguém pode apontar um processo físico específico e dizer: “Ah, é daqui que vem o pensamento”, ou “Aqui a glicose ganha vida”. O empenho para encontrar esse ponto de partida continua, mas o materialismo se engana. Se uma criança perguntasse como a gasolina aprendeu a dirigir o automóvel, ela estaria cometendo o mesmo tipo de erro de alguns de nossos mais destacados cientistas.

Toda molécula que se transforma num processo vivo apresenta um enigma. Como ela consegue passar de um estado inerte, aleatório (morte), para um estado vital, criativo (vida)? A espiritualidade afirma que nada está morto. Como temos medo de nossa própria desintegração e dissolução, projetamos em nossa morte mais poder do que ela realmente tem. A morte é apenas um estado de transição, quando uma coisa viva renasce em outra. (Não estou fazendo uma declaração religiosa sobre a alma, mas ainda vou chegar lá.) O materialismo, como hipótese, pode seguir o caminho de um átomo de oxigênio no fluxo de ar até entrar no pulmão de um futuro Mozart ou de um Michelangelo, mas não consegue explicar como aquele átomo se relaciona a genialidade, beleza e arte.

Para explicar como a matéria de repente se torna parte da dança da vida, com toda a criatividade que a vida apresenta, é preciso chegar a um nível mais essencial. Tenho argumentado que a consciência é inata na natureza. É parte da nossa essência. Assim como outras características que diferenciam a vida, inteligência, criatividade, organização e evolução são essenciais para os seres vivos. O DNA não cria essas coisas. Dizer que ele cria a vida é como afirmar que a tinta cria a pintura. Creio que chegaremos à verdade revertendo a sequência: a vida veio primeiro, a matéria acabou levando-a à sua forma visível. O físico Freeman Dyson indica o caminho da aceitação do ponto de vista espiritual como parte de uma ciência ampliada: “Descobri um Universo crescendo sem limites em complexidade e riqueza, um Universo de vida que sobrevive para sempre.”

Alguns cientistas querem ampliar a diferença. Deixem que a biologia nos diga como a vida surgiu, afirmam eles, enquanto a religião e a metafísica perguntam por quê. Mas trata-se de uma maneira educada de declarar vitória, ao reivindicar a vida só para a ciência. Depois de identificar o DNA e mapeá-lo, a genética tenta açambarcar tudo. Deve haver um gene do amor, um gene do crime, até um gene da fé. Mas, na verdade, esses genes nunca foram encontrados, e especula-se que jamais o serão. Um problema aparentemente simples, como prever a altura de uma criança, envolve mais de vinte genes em interação; mesmo que cada um deles pudesse ser isolado, os pesquisadores admitem que menos da metade da história teria sido contada. Por que os holandeses são o povo mais alto do mundo? Por que o país dos japoneses está entre as dez maiores potências? Os genes não mudaram. As respostas têm a ver com dieta, ambiente, um comutador genético desconhecido ou talvez um fator X (como a possibilidade de a mente afetar o corpo durante o crescimento. Não duvide. A medicina já sabe que o abuso psicológico pode levar a bebês atarracados, por um processo conhecido como nanismo psicológico).

A ciência está ficando cada vez mais ambiciosa quanto aos temas que pretende abarcar. Como diria Leonard, não há espaço para os excessos de otimismo, que devem ser esquecidos na infância. “Não me venha falar de coisas fantasiosas, como haver inteligência em toda parte.” Minha melhor réplica é a história de uma cadela collie de oito anos chamada Betsy, que mora perto de Viena, na Áustria. A dona e treinadora de Betsy ensinou a cadela a buscar coisas dizendo o nome delas. Se falar “osso”, Betsy vai buscar um osso. Se disser “bola”, Betsy busca uma bola. Qualquer um que tenha um cão vai dizer que isso não é difícil, mas essa dona em particular foi mais ambiciosa. Ela ensinou Betsy a pegar bonecas, queijo e um chaveiro – até que, contra todas as probabilidades, Betsy conseguiu compreender 340 comandos sem se confundir.

A psicóloga cognitiva Juliane Kaminski verificou esse fenômeno, filmado para o programa científico Nova, da TV pública. Os bebês humanos entendem cerca de trezentas palavras quando têm dois anos de idade. O estágio seguinte do desenvolvimento humano, a que nenhum outro primata consegue chegar, é a compreensão de símbolos. Por exemplo, se você mostrar um carrinho de brinquedo e pedir a uma criança de três anos para encontrar a mesma coisa no aposento, ela sabe que o carrinho é um modelo, por isso não encontrará dificuldade em pegar um carrinho maior. Agora, a grande notícia: a collie Betsy também consegue fazer isso. Ela entende que o modelo representa coisas, na condição de símbolo. (Não posso deixar de mencionar que os cães são as únicas criaturas, além dos seres humanos, que sabem o que significa apontar um objeto. Com seis meses, um filhote vai até um objeto que você apontar. Com seis meses, um bebê humano faz o mesmo. Mas os chimpanzés, nossos parentes primatas mais próximos, não são capazes disso. Se você apontar para uma xícara que esconda qualquer ameaça, os chimpanzés não sabem o que você está dizendo. Não conseguem entender nem depois de centenas de repetições.)

Betsy não é único cachorro esperto; pelo menos dois outros cães conseguem entender até duzentas palavras, o que vai contra quase todos os antigos pressupostos sobre inteligência, cérebro e escalada evolutiva, e também contra o orgulho humano em relação à exclusividade de seus dons mentais. Betsy consegue realizar façanhas que deveriam nos tornar mais humildes. Há muito se afirma que só os homens entendem as representações abstratas. Se eu mostrar a imagem de um osso, por exemplo, você pode sair e me trazer um osso de verdade. Betsy também. Quando vê a imagem de qualquer objeto que sabe onde está, a cadela vai buscá-lo. Os pesquisadores ficaram maravilhados, não diante da grandeza do Universo, mas diante de um animal que, cientificamente, não tem o direito de fazer o que faz. Mesmo assim, ela faz.

Uma vez que abrirmos nossa mente, Betsy pode ser a ponta de lança para uma abrangente teoria da vida. O leitor está diante de uma nítida escolha entre a totalidade e as partes. Se a ciência estiver certa, a vida é um enigma, um monte de pedacinhos que, uma vez reunidos, transformaram a matéria inerte em criaturas vivas. Se a espiritualidade estiver certa, a vida é parte da totalidade da natureza, um aspecto que se torna visível por meio das criaturas vivas, mas não depende delas. A escolha a ser feita aqui reflete sua visão de mundo, e o Universo se apresentará em acordo com ela.

O verdadeiro problema da teoria de uma força vital surge quando ela tenta ser materialista. Contudo, como não pode ser medida, a parte “vital” dessa força não tem valor material. Ironicamente, o DNA apresenta a mesma objeção. Sei muito bem que a genética é considerada o maior triunfo da biologia moderna, a brecha que tornou possível decodificar a própria vida. O DNA é o portador químico de uma mensagem incrivelmente complexa, mas não é a própria mensagem, assim como as letras de um telegrama não são a informação nele contida. A vida é a natureza vivenciando a si mesma de todas as formas possíveis. Podemos escolher outras palavras que não “natureza”. Esta é a mensagem. Podemos falar de Deus contemplando sua criação ou de uma mente universal. Cada termo aponta na direção de um cosmo que criou a si mesmo e que se desdobra como entidade viva. A espiritualidade não precisa de um momento especial marcado pelo súbito aparecimento da vida. A vida sempre existiu.