No dia 25 de abril de 1953, dois jovens pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra – James Watson e Francis Crick – publicaram um trabalho na revista Nature argumentando que a estrutura do DNA consistia em duas fitas entrelaçadas, organizadas numa dupla hélice, algo parecido com uma escada de corda retorcida. No modelo proposto, cada degrau da escada consistia em uma molécula chamada de base para uma corda, pareada com uma base complementar da outra corda. Assim, se você separasse as cordas, cada uma agiria como modelo a partir do qual poderia se criar uma nova parceira complementar. Dessa forma, uma molécula de DNA poderia se transformar em duas. O artigo de Watson e Crick era curto e tinha só uma frase sugerindo suas implicações: “Não nos passou despercebido que o pareamento específico aqui postulado indica um possível mecanismo de cópia do material genético.”
O artigo de Watson e Crick foi publicado quase exatamente dois anos depois da morte de Einstein. Ao contrário da relatividade geral, o trabalho dos dois não representava um grande salto conceitual; nenhum avanço teria deixado de acontecer caso eles não tivessem chegado ali. Mas ele marcou o início de uma nova era na biologia, que permitiu aos cientistas estudar os detalhes da hereditariedade no plano molecular. Ninguém sabia onde aquela investigação ia dar, embora Watson e Crick tenham divulgado, um mês depois, um texto especulativo sobre o significado do primeiro trabalho. Em junho, o New York Times publicou um artigo com um título tímido: “Encontrada pista para a química da hereditariedade”, com uma advertência do famoso químico Linus Pauling, da Caltech, declarando “não acreditar que haviam afinal resolvido o problema da compreensão da genética molecular”. Pauling – que no ano seguinte ganharia o primeiro de seus dois Prêmios Nobel – estava certo.
Quanto pode ser complexo o mecanismo da hereditariedade? Hoje, quase sessenta anos depois, foram realizados incríveis progressos, porém, milhares de cientistas continuam trabalhando nos detalhes.
A ideia da evolução retrocede até os gregos antigos, mas o que muitos consideram a primeira teoria coerente sobre o assunto – envolvendo o conceito de traços hereditários – foi proposto por volta de 1800, décadas antes de Darwin, pelo cientista francês Jean-Baptiste Lamarck. Segundo a evolução darwiniana, novas características, como o longo pescoço da girafa, surgiam por meio de mutações; isso queria dizer que as características de uma criança não necessariamente correspondiam às características de seus pais. Se, num determinado ambiente, o novo traço se mostrasse vantajoso, a criança se desenvolvia, se reproduzia e transmitia a mutação para as gerações seguintes. Contudo, Lamarck acreditava que os traços dos animais não se limitavam aos efeitos da hereditariedade. Ele achava que essas características podiam mudar ao longo da vida de um organismo, a fim de permitir que ele se adaptasse melhor ao ambiente; e que o traço recém-desenvolvido podia então se transmitir para a geração seguinte. Segundo essa visão, por exemplo, se uma girafa fosse transladada de repente para um ambiente com árvores mais altas, seu pescoço ficaria mais longo, o que faria com que seus filhotes também nascessem com pescoços mais longos. Hoje chamamos esse processo de herança branda. Não é o caminho em geral percorrido pela evolução, ainda que, recentemente, os cientistas tenham descoberto que tais processos ocorrem, dando origem a um campo chamado epigenética, ao qual voltaremos adiante.
As teorias da evolução de Darwin e Lamarck suscitam uma questão crucial: como as características passam de pai para filho? Em 1865, o monge tcheco Gregor Mendel publicou um artigo mostrando que certos traços das ervilhas, como formato e cor, são transmitidos em pacotes discretos que agora chamamos de genes, mas seu trabalho não foi reconhecido até o fim do século XIX. Enquanto isso, a molécula agora conhecida como DNA era descoberta em 1869 por Friedrich Miescher, físico suíço que estudava glóbulos brancos extraídos do pus em gazes cirúrgicas. Miescher não imaginava para que servia aquela substância, mas sabia que era muito importante – na verdade, em quase todas as células humanas, existe DNA suficiente para fazer um fio de quase dois metros. A relação entre genes e DNA só foi percebida em 1944. Antes disso, se havia algo em que os cientistas acreditavam, era que a o DNA não era a molécula da hereditariedade. Isso porque ele era simples demais – pensava-se que era formado apenas por quatro componentes diferentes, chamado nucleotídeos. (Cada nucleotídeo consiste em uma base, como mencionei – entre quatro tipos diferentes –, mais duas outras pequenas moléculas, uma de açúcar e uma de fosfato, que agora sabemos formar a espinha dorsal do DNA.) Em 1944, depois de muitos anos de complicados experimentos, um tímido pesquisador de 27 anos chamado Oswald Avery e seus colegas mostraram que, se extraído de uma bactéria morta e injetado numa cepa viva, o DNA injetado provocava mudanças permanentes no DNA da cepa e em suas características vivas, e isso era passado para as gerações subsequentes. O trabalho de Avery inspirou a pesquisa para descobrir a estrutura daquela misteriosa molécula, culminando na descoberta da dupla hélice por Watson e Crick, em 1953.
Grosso modo, no jargão moderno, um gene é a região do DNA de um organismo que contém instruções para gerar uma proteína específica. Os biólogos dizem que o gene “serve de código” para a proteína. O código, ou receita, é escrito com apenas quatro letras – A, C, G e T, que são as quatro bases do DNA –, mas o livro de receitas é bem grande, contendo mais de 3 bilhões de pares de bases. Quando a receita é bem-preparada para criar o produto da proteína, diz-se que o gene foi “expressado”. Todas as proteínas são “cozidas” a partir de uma despensa de apenas vinte aminoácidos. As proteínas constituem boa parte de qualquer estrutura física de um organismo, estão envolvidas em quase todas as funções celulares e controlam todos os processos químicos dentro da célula. Nosso corpo contém mais de 100 mil diferentes proteínas, incluindo hormônios, enzimas, anticorpos e moléculas transportadoras, como a hemoglobina.
Os traços que herdamos são determinados pelas proteínas que o nosso corpo produz; estas, por sua vez, são ditadas pelas receitas contidas em nossos genes. O livro de receitas com todas essas receitas é uma obra em vários volumes chamado genoma, sendo que os diferentes volumes se denominam cromossomos. Todos nós temos características distintas, algumas produzidas pelo ambiente e pelas experiências, outras derivadas da hereditariedade. Como cada um tem elementos de hereditariedade dessemelhantes, meu genoma é diferente do seu. O que significa, então, falar de “genoma humano”?
Nossas diferenças pessoais nos parecem grandes. Alguns preferem cavar a neve a ouvir ópera, enquanto outros não conseguem se imaginar num mundo sem A traviata. Alguns fazem um pedido de casamento num tranquilo piquenique na praia, outros, numa mesa da churrascaria Outback, perto de uma equipe de rúgbi bêbada. No nível dos genes, contudo, o que nos distingue é muito, muito mais que aquilo que nos torna diferentes: os genomas de quaisquer dois seres humanos diferem apenas uma letra em cada mil. Eles são virtualmente idênticos, como cópias do mesmo livro, diversos apenas nos erros tipográficos.
A metáfora dos erros tipográficos cabe bem nesse caso: nossas dessemelhanças genéticas surgiram por meio de mutações – alterações aleatórias nas letras genéticas – que ocorreram ao longo de milênios. Essas alterações são responsáveis pela parte de variabilidade humana que não se deve a diversidades de experiência ou de ambiente, como as diferenças de tipos sanguíneos, cor dos olhos e cabelos, traços faciais e talvez até da razão por que alguns conseguem cantar, enquanto outros podem ser usados para espantar ratos do porão.
Levando em conta tudo isso, consta que os humanos têm 23 mil genes, até agora. Menos que uma salamandra ou uma uva, e isso vai incomodar um pouco os que acreditam que tamanho é documento. O exemplo ilustra os perigos de um pensamento simplificado demais, pois, embora eu tenha feito um apanhado geral de como os genes se ligam às características, é importante ter em mente que essa é uma versão muito simplificada. Por exemplo, cada célula não tem só uma, mas duas cópias do livro de receitas, pois recebemos um genoma intacto de cada genitor. Quando as receitas entram em conflito, uma prevalece sobre a outra. Às vezes sela-se um acordo, ou cria-se uma proteína completamente diferente. Além disso, muitos genes contribuem com receitas para mais de uma proteína – quase metade dos nossos genes divide-se para produzir proteínas múltiplas, razão pela qual temos mais de 100 mil proteínas, mas só 23 mil genes.
O efeito de um gene depende também de uma grande quantidade daquilo que se chama de “regulação genética” – processos que determinam se a receita ditada pelo gene é mesmo levada adiante ou expressada. No plano molecular, a regulação genética acontece quando certas substâncias químicas interagem com partes da molécula do DNA para desativar um gene. É isso que faz, por exemplo, com que dois gêmeos idênticos – que por definição têm o mesmo DNA – sejam tão diferentes. Entre os roedores chamados ratos aguti, um dos gêmeos pode ser magro e castanho, enquanto o outro é obeso e amarelo. Os ratos amarelos obesos são resultado de efeitos ambientais. Às vezes eles ocorrem em condições naturais, mas quando as ratas aguti grávidas são expostas a uma substância chamada bisfenol A, presente em muitas garrafas plásticas de bebidas, nasce um número maior de ratos amarelos e obesos. Descobriu-se que, como resultado dessa exposição, o DNA dos filhotes tem menos “metilação”, processo que desliga genes. Isso resulta na excessiva produção de certa proteína que, em alguns ratos, têm dois efeitos distintos – um na pele (impedindo que as células gerem pigmentos pretos) e outro no cérebro (afetando o comportamento alimentar). Embora as girafas não desenvolvam pescoços mais longos esticando-se para alcançar as árvores, como acreditava Lamarck, a expressão dos genes – e portanto a formação de um indivíduo – pode ser profundamente afetada pelo ambiente, por meio da regulação genética, e não é preciso haver toxinas químicas para isso. Coelhos do Himalaia, por exemplo, são portadores de um gene para o desenvolvimento de pigmentos. Mas o gene permanece inativo em temperaturas acima de 35°C, mais baixas que a temperatura do corpo do animal, exceto as extremidades, que são mais frias. Por isso, os coelhos do Himalaia são brancos, com orelhas, ponta do nariz e patas pretos.
Mudanças como essas, atribuíveis a mecanismos outros que não uma alteração no DNA subjacente, se chamam epigenéticas. Por causa da regulagem do gene e das alterações epigenéticas, pode haver muitas características em um organismo (de qualquer espécie) que não estavam ali na concepção, mas refletem a interação entre o genoma e a informação recebida do ambiente do organismo, durante o período no útero e depois, ao longo da vida. Em alguns casos, essas alterações epigenéticas podem ser observadas ao longo de muitas gerações. Esses exemplos correspondem a uma visão lamarquiana da evolução, segundo a qual características que mudam durante o tempo de vida de um indivíduo podem ser transmitidas para os descendentes.
Outra complicação nessa imagem simples é que apenas 1% ou 2% do genoma correspondem aos genes que descrevi acima, as receitas para as proteínas. O restante foi mal batizado pelos cientistas como “DNA lixo” antes mesmo que alguém entendesse para que servia; mas, desde então, descobriu-se que a maior parte desse DNA “intergênico” ou “não codificado” – termos preferidos agora pelos cientistas – na verdade desempenha uma importante função. Mais ou menos metade dele estabiliza a estrutura do cromossomo, que é uma sequência de DNA empacotada numa proteína. Outras sequências definem onde os genes começam e terminam, algo parecido com a letra maiúscula e o ponto final, na linguagem escrita. Sequências denominadas pseudogenes são cópias de genes normais contendo um defeito que evita sua expressão como proteína. Costumam ser consideradas vestigiais – talvez o único verdadeiro “lixo” do nosso genoma. Porém, uma descoberta feita em 2010 indicou que elas podem ter importante papel epigenético, ao impedir que seus genes irmãos sejam desativados.
Se tudo isso parece complicado, é bom que assim seja, pois coisas vivas são complicadas. Em programação de computadores, um kludge é uma alteração ad hoc e inteligente (mas não elegante) em um programa, para se obter algum propósito adicional, ou talvez para consertar um bug. Um programa com muitos kludges pode ser complexo e difícil de decifrar, para o leigo. Mas é assim que funciona a evolução. Por exemplo, nossos ancestrais precisavam de uma cauda quando ainda tínhamos o gene para fazer uma cauda; mas, em lugar de simplesmente extirpar o gene com o desaparecimento da necessidade da cauda, a seleção natural o desligou.
Embora, de maneira geral, as ideias da ciência possam ser descritas de forma sucinta, a incrível complexidade dos sistemas biológicos não se encaixam nesse panorama. É possível definir o hipocampo como uma minúscula estrutura no fundo do cérebro, com importante função nas emoções e na memória de longo prazo, e até aí a definição é bem precisa; mas o livro-texto padrão sobre o hipocampo tem alguns centímetros de espessura. Outro trabalho recente, um artigo acadêmico resenhando as pesquisas dos interneurônios – um tipo de célula neural de outra parte do cérebro, chamada hipotálamo –, tinha mais de cem páginas e citava setecentos intrincados experimentos. Poucos de nós teriam capacidade ou paciência para digerir essas publicações. Contudo, e felizmente para o arcabouço de conhecimento humano, há os que se sentem atraídos por esses textos, graças a sabe-se lá qual interação entre genomas e meio ambiente.
Como somos seres humanos, costumamos preferir ligações simples, como uma correspondência fácil entre um só gene e uma característica ou doença, e os cientistas às vezes confirmam isso – como na fibrose cística ou na anemia falciforme. A metafísica de Deepak sempre se sente à vontade para fornecer respostas fáceis, porém vagas, e afirmações sem base, como “não é possível começar em um cosmo sem sentido e chegar até a riqueza do significado da vida humana”, ou “a vida humana está imbricada num domínio além do espaço-tempo”. Mas a ciência precisa dar respostas que sejam verdadeiras, determinadas por experimentos, e a verdade raramente é uma coisa simples.
A riqueza da vida vem de sua complexidade. É uma grande dádiva poder viver, amar e funcionar como um ser, com o esforço cooperativo de milhares de trilhões de células organizadas de forma intrincada e elaborada. Mas, mesmo em meio à complexidade da vida, é possível encontrar uma unidade. Eu disse acima que só 0,1% de nossos genes diferencia um ser humano de outro. A dessemelhança genética entre uma pessoa e um chimpanzé é apenas quinze vezes mais que isso – nós partilhamos 98,5% de nossos genes com nossos primos primatas, mais de 90% com os camundongos e 60% com as moscas-das-frutas. Parece existir uma integridade na vida na Terra, resultado de sua base comum, a molécula de DNA.
Estamos todos aqui – da uva às moscas-das-frutas e aos seres humanos –, seguindo em frente com nosso DNA. Todas as criaturas da Terra são uma expressão única disso. Porém, por mais que sejamos únicos, todos os organismos têm em comum o mesmo mandamento evolutivo: promulgar sua própria versão específica da extraordinária molécula que descobriu sua própria existência em 1869 – disfarçada num ser chamado Friedrich Miescher.
Numa perspectiva espiritual, meu papel não é argumentar contra o belo relato tecido por Leonard sobre como os genes evoluíram até a rica complexidade que hoje exibem. Em todas as grandes questões que temos diante de nós, a ciência é nossa melhor forma de descrever eventos físicos. Mas, falando em termos espirituais, os genes existem para fazer mais que oferecer um livro de receitas para a vida. Vamos ver o que é esse “mais”, que contém muitas surpresas.
Considero de grande importância o pequeno número de genes humanos, mas é preciso certa discussão para explicar por quê. Quando o Projeto Genoma Humano estava próximo da conclusão, em 2003, houve certas apostas informais. Será que teríamos 80 mil ou 120 mil genes? O pressuposto era de que, como espécie mais avançada do planeta, nossa complexidade exigisse muito mais genes que qualquer outra. Que assombro, então, quando o número ficou entre 20 mil e 25 mil, mais ou menos o mesmo que a galinha ou uma forma inferior, como o nematódeo. O milho tinha mais genes, o que foi espantoso. Vivenciamos uma versão minorada do choque que abalou os vitorianos quando Darwin revelou que o Homo sapiens, assim como todos os mamíferos, era descendente dos peixes.
Em ambos os casos, o choque se mostrou muito producente. Como Leonard descreveu tão bem, a hereditariedade é muito mais flexível do que se poderia supor cinquenta ou mesmo vinte anos atrás. Naquela época, nós estávamos chegando no ponto em que dizer que “meus genes me levaram a fazer isso” se tornara uma explicação universal: meus genes me faziam comer demais, causavam minha depressão, reduziam meu apetite sexual, me tornavam um suicida ou me faziam acreditar em Deus. O código da vida era interpretado como um código legal. No entanto, as células não são estruturas fixas: elas são fluidas, mutáveis e dinâmicas; respondem a pensamentos e sentimentos; adaptam-se ao ambiente com toda a imprevisibilidade de uma pessoa. Para qualquer um que valorize as ricas possibilidades da vida, essa foi uma ótima notícia.
Quando as crianças aprendem na escola sobre a dupla hélice, o exemplo usado é sempre o de que existe um gene para olhos azuis, outro para cabelo loiro e ainda outro para as sardas. Isso dá a impressão de que um gene é igual a uma característica, mas essa é a exceção, não a regra. Já mencionei como foi frustrante para os geneticistas verificar que aquilo que deveria ser uma simples indicação da altura a ser atingida por uma criança se transformara num processo dinâmico e complexo, envolvendo não só vinte genes diferentes, mas também um monte de fatores externos, ambientais. Parece que a doença de Alzheimer e o câncer abrangem ainda mais genes.
Como resultado desse emaranhado, geneticistas ansiosos para realizar a promessa do DNA, de prolongar a vida humana, redobram seus esforços. Essa também é uma meta espiritual, portanto, como as duas partes podem unir esforços? Uma forma é deixar logo o determinismo químico de lado. O público continua sendo informado de que pode existir um “gene do crime”, por exemplo, explicando o comportamento antissocial. Especula-se inclusive se esse gene poderia ser usado como defesa num tribunal, e não estamos muito longe da proposta de que os genes antissociais sejam removidos por algum procedimento médico, digamos, para o bem do criminoso e da sociedade como um todo. Mas como os geneticistas são obrigados a descartar a noção simplista de um só gene para cada anomalia, surge uma abertura para a espiritualidade, que se posiciona a favor do livre-arbítrio, da consciência, da criatividade e da transformação pessoal – o contrário do determinismo químico. Deveríamos comemorar a libertação de nossas algemas genéticas, e buscar ao mesmo tempo a melhor compreensão de como os genes se relacionam com a consciência.
O DNA é tratado pelos cientistas como qualquer outra sequência química, mas seu comportamento rompe as regras de mero objeto ao se dividir espontaneamente ao meio, transformando-se em duas versões idênticas de si mesmo. Ele não só codifica a vida como também a morte, já que existe um gene para o câncer, disparado quando a doença se desenvolve. Mas por que a evolução reteria esse gene, se o único propósito dela é sustentar a vida? Num nível mais básico, como os genes operam para fazer com que substâncias químicas inanimadas, a exemplo do hidrogênio, do carbono e do oxigênio, ganhem vida?
Rastrear essas questões até o genoma é um dos aspectos do materialismo. Em lugar de fugir diante dos fatos, a perspectiva espiritual evoca fatos ampliados. Sem eles, não podemos resolver, por exemplo, a questão de como o DNA lida com o tempo. Os genes sincronizam suas ações com exatidão anos ou décadas antes. Dentes de leite, puberdade, menstruação, padrão de calvície masculina, começo da menopausa – tudo isso aparece numa determinada hora; o mesmo pode ser aplicado ao câncer, que em grande parte é uma doença da velhice. Como uma substância química se relaciona com o tempo? Fiz essa pergunta a um biólogo celular, e ele me falou da telomerase, o material genético que reveste os terminais dos genes como uma cauda pendurada. (Já esbarramos com ele quando debatemos a natureza do tempo.) A telomerase termina uma sentença genética, da mesma forma que um ponto final encerra esta frase. Mas ela se degrada com o tempo, e o envelhecimento pode estar relacionado ao seu crescimento cada vez menor, levando à deterioração celular e ao maior risco de mutações prejudiciais.
Porém, se a telomerase parece mesmo um relógio, de onde vem seu sentido temporal? As pedras são erodidas pelo vento e pela chuva, mas isso não as transforma em relógio. Além do mais, como a telomerase pode ter efeitos ao mesmo tempo prejudiciais, na velhice, e benéficos, na perda dos dentes de leite e na transição para a puberdade? Ainda mais misterioso: o DNA coordena muitos relógios diferentes ao mesmo tempo, pois as sincronias dos processos que mencionei são muito diferentes umas das outras. A menopausa segue um relógio que demora décadas para se desenvolver, enquanto a produção regular de enzimas numa célula leva alguns centésimos de segundo, os glóbulos vermelhos seguem um ciclo de alguns meses e assim por diante.
O leitor vai perceber aonde isso vai chegar. Os genes não se comportam como coisas comuns, pois servem à consciência. A sincronia requer uma mente, e deixar a mente fora da equação é fatal para qualquer teoria genética. Para um materialista, imaginar uma mente fora do corpo é um absurdo, mas o fato é que existe muita coisa que simples reações químicas aleatórias e sem consciência não podem explicar. No fundo está uma profunda questão espiritual: liberdade versus determinismo. No início, o determinismo era só físico, mas recentemente tem sido invocado também para ditar o comportamento humano; esteja você agindo de forma criminosa, esteja deprimido ou maravilhado diante de Deus, o argumento é o mesmo: se os genes causam X e você não pode mudar os genes com que nasceu, então X veio para ficar.
A experiência cotidiana contraria essa lógica: nenhum de nós se sente controlado pelo núcleo de nossas células. Leonard admite que o ambiente influencia nossos genes. Eu diria que isso é um fator decisivo. Gêmeos idênticos oferecem um bom caso de estudo. Eles nascem com os mesmos genes, mas, ao longo da vida, fazem diferentes escolhas e passam por diferentes experiências. Um dos gêmeos pode fugir para trabalhar num circo, enquanto outro pode entrar para um convento. Um pode se tornar alcoólico, enquanto outro se torna vegano. Aos setenta anos, a expressão de seus genes será completamente diferente da combinação perfeita exibida no nascimento. Em outras palavras, os cromossomos não se alteraram, mas os genes disparados, assim como os produtos que eles criaram nos tecidos, terão divergido bastante. A rota de fuga do determinismo químico sempre esteve aí, esperando para ser usada.
Os genes só fazem efeito quando são disparados; até então, permanecem mudos, por assim dizer. Quando eles falam, as experiências de toda uma vida moldam as palavras expressadas, ainda que o ponto de partida seja o mesmo alfabeto. Os genes não contam nossa história; eles nos dão as letras para contarmos nossa própria história, e essa expressão genética pode ser positiva ou negativa. Se o gêmeo A dorme pouco, vive estressado, come mal e não faz exercícios, é provável que esse estilo de vida leve a resultados dramáticos, se comparados aos do gêmeo B, que optou por um etilo de vida oposto. Estudos sobre escolhas positivas de estilo de vida, realizados pelo dr. Dean Ornish e sua equipe de pesquisa, mostraram que mais de quatrocentos genes mudam sua expressão de forma positiva quando alguém pratica as bem conhecidas medidas preventivas de dieta, exercícios, controle do estresse e boas noites de sono.
Em uma palavra, trata-se de virar a mesa. Onde os genes costumavam tirar a responsabilidade dos nossos ombros pelas coisas de que não gostamos em nós mesmos, agora eles se tornaram servos das escolhas que fazemos. A “herança branda” acontece a cada segundo, quando nossas células se adaptam às instruções que transmitimos a elas. Há décadas sabemos que pessoas deprimidas correm mais risco de adoecer, assim como os solitários, os viúvos recentes e os executivos demitidos de seus empregos. O corpo não pode responder a tais traumas sem envolver os genes. Mas, quando os genes eram considerados fixos, permanentes e incontestáveis, ninguém pensava muito sobre a relação entre ambiente e DNA. (Neste caso, “ambiente” é um termo abrangente, abarcando qualquer influência exterior a uma célula.) Agora é rotina os médicos alertarem mulheres grávidas quanto ao risco, para o feto, do cigarro e da bebida, por exemplo, pois sabemos que essas substâncias tóxicas, na corrente sanguínea, degradam o ambiente de um bebê ainda não nascido.
O próximo passo é mostrar que o comportamento nocivo pode ter o mesmo efeito. Durante um bom tempo, pensava-se que os embriões se desenvolviam automaticamente a partir da cópia do DNA herdado dos pais. À medida que o feto recebia os nutrientes corretos no útero, afirmava a teoria, a cópia se desenvolvia passo a passo, até o nascimento do bebê. Como explica o professor Pathik Wadhwa, especialista em obstetrícia e ciência comportamental da Universidade da Califórnia, em Irvine: “Essa visão foi mais ou menos invertida. … A cada estágio do desenvolvimento, [o feto] usa pistas de seu ambiente para decidir como se construir melhor dentro dos parâmetros de seus genes.”
De repente descobrimos que podemos acrescentar um novo capítulo à autopoiesis, ou autocriação. O embrião não nascido é parte de um complexo círculo de retroalimentação, avaliando o presente e criando um futuro por si mesmo. O DNA faz a mesma coisa. Segue as pistas de pensamentos, humores, dieta e níveis de estresse de uma pessoa (para resumir os milhares de sinais químicos que chegam a uma célula em qualquer dado momento) para se expressar baseado nelas. Uma mãe estressada transmite mais hormônios de estresse ao feto, há risco de nascimento prematuro, e muito mais. O professor Wadhwa prossegue: “O feto se forma de modo contínuo para lidar com esse tipo de ambiente de alto estresse; quando nasce, corre mais risco de desenvolver uma série de patologias relacionadas ao estresse.”
Aonde isso nos leva? Nosso conhecimento de medicina e biologia foi abalado em sua essência. Os genes não controlam a si mesmos. São controlados por todo o sistema corpo-mente: em outras palavras, não somos peões, mas senhores de nossos genes, que respondem a tudo que pensamos e fazemos. Os sinais da epigenia, a bainha de proteínas que rodeia nosso DNA, podem provocar 30 mil expressões diferentes a partir de um só gene. O programa da vida é dinâmico, está em constante mudança e sob nossa influência, de acordo com as escolhas boas ou más que fazemos.
Os pesquisadores percebem, a cada dia, que os genes estão mais para reostatos do que para interruptores que ligam e desligam. Algumas áreas do “DNA lixo” são de importância vital, como Leonard menciona, pois decidem quais genes ligar, quanta atividade um gene expressa, quando essa atividade vai ocorrer e como se relaciona com milhares de outros genes. Contudo, como sabemos agora, esses genes não controlam a si mesmos. Ninguém pode contar a história final do gene sem incluir a maneira como metabolizamos a experiência. A epigenia nos mostra que até coisas invisíveis, como o estresse, se transformam em processos corporais; o que você sentir, todas as células do seu corpo também sentirão. Nada disso surpreende aqueles que, como nós, trabalham no mundo da espiritualidade. A própria base do ponto de vista espiritual é que tudo está imbricado e interligado; um processo se diversifica em milhares de processos específicos sem perder sua totalidade.
Sinto-me muito comovido quando releio alguns trechos do grande poe ta bengali Rabindranath Tagore, ao se dirigir a seu criador. “O tempo não tem fim em tuas mãos, meu Senhor. Não há quem conte os teus minutos. Dias e noites se passam. Tu sabes como esperar. Teus séculos seguem-se uns aos outros, aperfeiçoando uma flor silvestre.” Não interpreto essas palavras no sentido teísta, baseado na existência do Deus de qualquer fé específica. O que me comove é a paciência e o complexo trabalho da inteligência cósmica, que se move através de nós para nos criar – e como a vida se desdobra em si mesma.