12. Qual a conexão entre mente e cérebro?
A ciência ainda não consegue explicar a conexão entre os padrões neurais e a mente quando se trata de sensações, emoções e da questão principal da consciência. Podemos caracterizar muitas emoções de acordo com as reações psicológicas que as acompanham – um rubor e uma mudança na condutividade elétrica da pele, por exemplo; também fizemos progresso na compreensão do que acontece em nosso cérebro, tanto anatômica quanto quimicamente, quando vivenciamos essas emoções. Então, entendemos bastante sobre como o cérebro funciona. O que entendemos pouco é a experiência subjetiva dessas emoções, a “qualidade sentida” da experiência, como define o filósofo David Chalmers.
O que significa “sentir-se mal”, ou sentir uma queimadura, perceber a cor azul ou ter um desejo sexual?
Em 1915, um cientista chamado Alfred Sturtevant observou atentamente o que vemos como o estereótipo do comportamento num bar – dois machos brigam por uma fêmea, arremetem um contra o outro e terminam numa contenda caótica. O que tornou a pesquisa valiosa foi que os vértices desse triângulo amoroso eram moscas-das-frutas. Até criaturas mais simples como os nematódeos, dos quais muitas espécies são microscópicas, também exibem comportamentos especiais relacionados ao acasalamento. Os nematódeos procriam como loucos – pegue um punhado de humos do solo, e provavelmente você vai ter nas mãos milhares desses prolíficos vermes. Portanto, desista de tentar entender as complexidades da mente humana – qual a “sensação de sexo” para uma criatura do filo dos nematódeos? Pode parecer tolice perguntar sobre sentimentos numa espécie tão simples que consegue sobreviver em nitrogênio líquido congelado. Mas, para uma das espécies de nematódeos, a C. elegans, nós temos o diagrama completo de formação – um mapa de todas as suas 959 células, inclusive a tessitura de sua rede neural de 302 nós (você pode encontrar na internet); havia a esperança de que ele nos ajudasse a compreender como surgem as sensações a partir dessa rede de neurônios. Mas não foi possível, nem numa criatura tão simples.
Qual a natureza da experiência interna e como isso pode ser o resultado de processos neurais? Como os processos neurais criam a mente? Chalmers definiu isso como “o problema difícil”. Tão difícil que há milênios filósofos, poetas, teólogos, cientistas e físicos vêm se debatendo com o problema da conexão entre os mundos material e imaterial.
Platão, por exemplo, achava que as pessoas tinham uma alma imortal dentro de um corpo mortal. O cristianismo adotou essa ideia, assim como muitas outras religiões e também alguns dos primeiros cientistas. O grande físico, matemático e filósofo do século XVII René Descartes, como muitos antes dele, diferenciava substância física e substância mental. De seu ponto de vista, o cérebro era uma estrutura física, uma máquina, mas a mente – nossos pensamentos e a consciência – era algo totalmente diverso, não funcionava de acordo com as leis da física. Hoje chamamos essa noção de “dualismo mente-corpo”.
Parece que a motivação de Descartes – como é a de Deepak – eram as considerações filosóficas. Em parte ele tentava refutar os “irreligiosos”, que só depositavam fé na matemática, não aceitavam a imortalidade da alma, a não ser que pudesse ser demonstrada matemática e cientificamente. Mas Descartes também lidava com o problema de como abordar fenômenos físicos de uma forma coerente com sua visão de mundo. Nisso ele se diferenciava da tradição aristotélica, convicção filosófica dominante na época, que afirmava, assim como Deepak, a existência de um desígnio no Universo. Segundo a versão de desígnio de Aristóteles, todos os objetos da natureza, tanto animados quanto inanimados, se comportam como tal em nome de algum fim ou objetivo, às vezes chamado de “causa final”. Por exemplo, dizia-se que uma pedra jogada ao ar cairia de volta à Terra para tentar chegar ao centro do planeta. Ao contrário da maioria dos cientistas e professores de sua época, Descartes se opôs a essa ideia e à aparente implicação de que as pedras podem ter conhecimento de um objetivo e de como alcançá-lo. Em vez disso, ele preferia uma abordagem mecanicista, afirmando que objetos não humanos seguem as leis da física. Sua teoria do dualismo mente-corpo em parte era uma tentativa de dissuadir as pessoas de atribuir propriedades mentais a objetos inanimados e animais não humanos – e, portanto, de diferenciar o mundo humano, que em última análise ele via como dirigido pela mente e por um propósito, do inanimado e do não humano.
Descartes estava ciente de certas dificuldades que assolavam o dualismo mente-corpo do ponto de vista científico. Por exemplo, por qual mecanismo físico a mente controla o cérebro? Anatomista praticante, ele acabou chegando à conclusão de que a interface entre a mente e o cérebro era uma estrutura física chamada glândula pineal, situada entre os dois hemisférios do cérebro. Como é uma das únicas estruturas não espelhadas no hemisfério esquerdo e no direito, Descartes julgava que aí estava o local onde mente e cérebro se comunicavam, e qualificou-a como “a principal sede da alma”.
A teoria de Descartes, baseada na anatomia, hoje não é aceita nem pelos que acreditam no dualismo mente-corpo. O “problema difícil” – a questão de saber de onde vem a experiência interna – continua sem solução. Mas os cientistas não se envergonham por não terem ainda chegado às respostas. Elas podem vir no próximo século ou no próximo milênio. Ou, se forem complexas demais para a compreensão humana, talvez não cheguem jamais. Em todo caso, mesmo baseado no nosso limitado conhecimento atual, é difícil defender a existência de uma diferença entre a mente imaterial e o cérebro material. Uma das razões é: se um domínio que obedece às leis da física interagisse com um domínio que não as obedece, será que a interação não causaria exceções perceptíveis às leis da natureza no mundo físico? Hoje conseguimos medir fenômenos físicos sem dificuldade, inclusive no interior do cérebro humano, e com alto grau de precisão. Mas não observamos evidência de tais exceções. Se elas existem, por que não as vemos? Por outro lado, abundam evidências de que os pensamentos e mesmo os sentimentos subjetivos são manifestações do estado físico de neurônios que se conectam.
Por exemplo, durante o tratamento de pacientes epilépticos, às vezes os neurocirurgiões implantam minúsculos eletrodos no cérebro e estimulam o tecido com breves pulsações de corrente elétrica. O que eles observam vai bem além das respostas mecânicas que estudantes de biologia no ensino médio costumam obter quando aplicam uma corrente elétrica para fazer a perna de um sapo se contrair. Dependendo do lugar onde colocam o eletrodo, os cirurgiões podem fazer os pacientes ouvir sons identificáveis, como uma campainha ou o canto de pássaros (quando não existem esses sons na vizinhança); rememorar de repente algum acontecimento da infância; ou sentir desejos, como a vontade de mexer um braço ou uma perna. Esses sentimentos e experiências, que todos nós concordamos que se processam na “mente”, podem ser retraçados diretamente a partir da estimulação física do cérebro, prova convincente de que ele controla as experiências da mente, e não vice-versa.
Uma indicação ainda mais drástica vem de pacientes com epilepsias tão graves que os cirurgiões precisam secionar um feixe de nervos, chamado corpo caloso, para lhes propiciar algum alívio. Diz-se que esses pacientes têm “cérebros divididos”, pois o secionamento do corpo caloso parte o cérebro nos dois hemisférios quase especulares, deixando-os sem ligação. Sem a ponte do corpo caloso entre eles, os hemisférios direito e esquerdo não conseguem mais se comunicar, coordenar ou integrar informação. O que a divisão do cérebro faz com a mente de um paciente? Se a mente existe num domínio imaterial, a cirurgia não deveria afetá-la. Mas se a mente for parte do cérebro físico, a divisão do cérebro deveria também dividir a mente.
O neurocientista Christof Koch escreveu sobre um desses casos, o de uma paciente com o cérebro secionado a quem se perguntou quantos ataques ela tivera nos últimos tempos. A mulher ergueu a mão direita, mostrando dois dedos; depois, a mão esquerda, controlada pelo hemisfério oposto do cérebro, se ergueu e forçou para baixo os dedos da mão direita. Após uma pausa, a mão direita ergueu-se outra vez indicando três, mas a mão esquerda subiu e indicou só um. A paciente parecia ter duas mentes, e as duas estavam em discussão. Afinal, a mulher reclamou verbalmente que sua mão rebelde andava “fazendo coisas por conta própria”. A linguagem, como se sabe, é uma das poucas funções que reside apenas num dos lados do cérebro, em geral o esquerdo, que controla a mão direita. Embora não falasse, o hemisfério direito da paciente podia ouvir a observação. E parece que não gostava do que ouvia, pois a certa altura irrompeu uma briga entre as duas mãos. Se a mente não fosse redutível ao cérebro, não haveria motivo para que a partição do cérebro em dois não dividisse também uma consciência em “duas mentes conscientes num crânio”, como escreveu Koch.
Deepak escreve que não adianta “rastrear uma célula neural até os átomos que a formam, depois seguir até as partículas subatômicas. … Ninguém pode apontar um processo físico específico e dizer: ‘Ah, é daqui que vem o pensamento.’” Embora seja verdade que ainda temos muito a aprender sobre a conexão entre neurônios e pensamentos, não saber de onde “vem o pensamento” não prova que sua fonte resida num domínio imaterial. Os cientistas não negam o que parece específico na experiência humana, mas tentam evitar explicações contrárias à evidência. Hoje há um número estimado de 50 mil cientistas em todo o mundo estudando o cérebro, e nenhum deles, nem qualquer de seus predecessores, jamais encontrou provas viáveis e cientificamente reprodutíveis de que as experiências mentais das pessoas sejam resultado de quaisquer outros processos que não físicos; e que, portanto, obedecem às mesmas leis de qualquer outro conjunto de moléculas.
Já foi repetidas vezes demonstrado pela biologia que a origem da mente está na substância física do cérebro, e isso também é confirmado pela física. Claro que se alguma entidade imaterial de outro mundo derrubar o abajur de uma mesa as leis da física foram violadas. Você não precisa estudar mecânica newtoniana para saber que as leis naturais não permitem que coisas saltem sem uma causa física. Mas a mente imaterial, tal como divisada por Deepak, não sai por aí derrubando abajures de mesas. Deepak a vê como uma arruaceira mais sutil. No entanto, uma de suas principais atividades não é nada sutil: a mente imaterial, segundo Deepak, processa conhecimento. Em sua visão, a essência do que somos é essa mente não física; ela sabe o que sabemos, sente o que sentimos, faz nossos julgamentos e toma decisões. Mas, de acordo com as leis da física, a existência de conhecimento, pensamentos, sentimentos ou de qualquer outro tipo de informação numa mente imaterial – isto é, num domínio sem substância física – é uma impossibilidade.
O tipo de problema que podemos encontrar quando admitimos a existência de informação imaterial foi ilustrado por um famoso experimento mental concebido pelo físico James Clerk Maxwell em 1867. Imagine, como fizemos no Capítulo 8, uma caixa de gás com uma divisória no meio. Desta vez, em lugar de um buraco na divisória, imagine uma minúscula porta – tão pequena que possa ser aberta e fechada sem se gastar uma quantidade apreciável de energia. Quando a porta está fechada, as moléculas nos dois lados estão num estado de movimento constante, chocando-se contra a divisória e as paredes da caixa, mas sempre do lado onde já estavam. Em seguida, imagine uma criatura, também de tamanho e massa insignificantes, parada na porta, observando as moléculas e deixando-as passar para um lado ou para o outro, de acordo com seus caprichos. Da forma como Maxwell mentalizou, essa criatura tem livre-arbítrio e inteligência, mas substância negligenciável. Em outras palavras, ela pertence a um mundo imaterial, exatamente como Deepak acredita acontecer com nossa consciência. William Thomson, contemporâneo de Maxwell, apelidou essa criatura de “o demônio de Maxwell”.
Vamos supor que esse demônio resolva deixar apenas moléculas velozes, de alta energia, transitar da esquerda para a direita; e somente moléculas lentas, de baixa energia, transitar da direita para a esquerda. Como a temperatura do gás é a medida da velocidade de suas moléculas, com o tempo o gás no lado direito da caixa ficará quente, e o gás no lado esquerdo, frio. No Capítulo 8, expliquei por que as moléculas de gás numa caixa nunca se reúnem espontaneamente num só lado, mas também podemos dizer que jamais vão se separar em frias e quentes. Se tal cenário fosse possível, seria uma revolução. Por exemplo, seria possível usar o diferencial de temperatura para acionar uma máquina, o que significa mover um veículo sem combustível algum. Mas isso seria uma violação da segunda lei da termodinâmica, determinando que a entropia – ou desordem – de um sistema fechado nunca decresce. A entropia dos gases na caixa de Maxwell, no entanto, decresce, quando o demônio as organiza de forma tão bem-ordenada.
Essa violação da segunda lei, que deixa os físicos matutando para aonde teria ido a entropia que falta, acontece porque se supõe que o demônio tem uma mente imaterial. Por outro lado, se a mente do demônio tiver uma base material, o “sistema fechado” que descrevi incluiria não apenas a caixa de gás, mas também a mente do demônio. Vamos examinar como isso mudaria a equação da entropia. Para o demônio fazer seu trabalho, ele precisa anotar e lembrar as informações sobre a velocidade das moléculas. À medida que essas informações se acumulam em sua mente (ou num bloco de anotações ou na memória de um computador, se o demônio for um robô), a entropia da mente aumenta. Para entender por que, compare um recinto vazio com uma sala mobiliada. Por mais que você arrume mesas, cadeiras e outros móveis, a sala nunca vai estar em ordem, como ela se encontra quando está vazia. As mesas e cadeiras são como bits de informação atulhando a mente do demônio: quando você acrescenta informação, aumenta a entropia. Resultado final: a redução da entropia das moléculas de gás na caixa é compensada pelo aumento da entropia causado pela informação acumulada na mente física do demônio. Dessa forma, entendemos para onde foi a entropia que faltava, e descobrimos que a segunda lei não foi violada. (Para os inteligentes leitores conjecturando por que não se pode apagar periodicamente a memória do demônio, a resposta é que isso só transfere a entropia para outro lugar, por meio do processo de apagamento!)
Os físicos definem não apenas o conhecimento do tipo que o demônio possui como informação, mas todas as ideias, memórias, pensamentos e sentimentos; isso significa, segundo as leis da física, que eles devem residir em algum lugar do Universo físico – seja incorporado aos padrões neurais do nosso cérebro, seja codificado num circuito de computador, ou ainda impresso com letras numa página. Mesmo nossa experiência com a beleza, a esperança, o amor e a dor se originam de um cérebro que obedece às leis comuns da física. Infelizmente, aceitar que uma mente portadora de informação não pode existir em algum reino imaterial não significa que entendemos o funcionamento da consciência. Os desafios que enfrentamos ao tentar compreender como um sistema neural que obedece às leis comuns da física pode dar origem à experiência subjetiva constitui um dos grandes projetos científicos do nosso tempo. Embora Deepak talvez considere a tentativa de localizar a mente no mundo material um sonho reducionista sem sentido, muitos cientistas estão trabalhando nesse projeto, por mais complexo e impossível que possa parecer. E estão fazendo grandes progressos.
Koch escreveu que, quando começou a fazer pesquisas sobre as questões da consciência, no fim dos anos 1980, isso era considerado um sinal de decadência cognitiva – uma atividade malvista na carreira de um jovem professor, que fazia os estudantes já formados arregalar os olhos. Mas ele e outros resolveram trabalhar nisso, e hoje essa atitude mudou. Existe toda uma nova ciência da consciência. É uma ciência legítima e tem nos ajudado a entender quais estruturas do cérebro produzem emoções, sensações e pensamentos, como são quimicamente reguladas e eletricamente conectadas. Ainda não estamos perto de descobrir a base da “mente” ou da consciência como um fenômeno que resulta das interações entre neurônios. Mas todos os dias surgem novas evidências em apoio à ideia de que experiências mentais como beleza, amor, esperança e dor são produzidas pelo cérebro físico. Pesquisadores do laboratório de Koch, por exemplo, desenvolveram uma forma de os sujeitos ativarem células nervosas individuais nas profundezas de seus cérebros – células conceituais como as mencionadas no Capítulo 1 –, permitindo que controlem o conteúdo de uma imagem sobre uma tela de computador externa, apenas por pensar na imagem que desejam ver. Experimentos como este, e o trabalho feito em muitos outros centros ao redor do planeta, nos fazem achar que nos encontramos no caminho certo, embora ainda estejamos muito mais perto do começo que do fim da estrada.
Alguns anos atrás, algumas faculdades para negros, nos Estados Unidos, quiseram angariar recursos muito necessários, e para isso elaboraram uma brilhante campanha publicitária. O slogan era “Uma mente é algo terrível de se desperdiçar”. Mais terrível ainda seria eliminar a mente de todo. Leonard faz isso quando afirma que o amor pode ser entendido como um processo essencialmente cerebral. Em todas as circunstâncias, seria uma afirmação bizarra, embora possa parecer mais razoável quando a sentença toda é reunida: “A beleza, a esperança, o amor e a dor se originam de um cérebro que obedece às leis comuns da física.” Amor e beleza são experiências centrais na vida espiritual. Precisamos chegar ao fundo do local de onde elas vêm. Existe uma resposta. Mas, para aceitá-la, você deve perceber a diferença entre o amor e os produtos de um laboratório de química.
Leonard se apoia em 50 mil pesquisadores do cérebro e apresenta bem sua posição. No campo da neurociência, a mente é considerada um produto residual do cérebro, assim como o suor é um produto residual da queima de calorias, ou as bochechas coradas são um produto residual da excitação sexual. Contudo, os pensamentos não podem ser reduzidos a dados. Tampouco o amor e a beleza. Como escreve o eminente físico britânico Russell Stannard: “Não há como quantificar conceitos como esperança, medo e dor.” Para seguir a injunção de Cristo, de procurar o reino do céu dentro de si, ou o ideal grego, de conhecer a si mesmo, a estrada só pode passar pela mente. Por isso a espiritualidade coloca a mente em primeiro lugar, no lugar que lhe é próprio.
Mas como o cérebro conseguiu destronar a mente? Vinte ou trinta anos atrás, o cérebro humano ainda era muito mal compreendido. Um neurologista gracejou que sabíamos tão pouco sobre a memória que o crânio podia estar cheio de serragem. Mas o advento de novas tecnologias estimulou a pesquisa sobre o cérebro, e, hoje, uma sondagem com um aparelho de fMRI (sigla em inglês para mapeamento funcional por ressonância magnética) não apenas revela os centros de memória do cérebro: pode mostrá-los se iluminando em tempo real, ou se apagando, caso o paciente sofra de mal de Alzheimer. Esperança, dor e medo não podem ser quantificados, mas ao menos conseguimos filmar imagens dessas emoções como atividades cerebrais.
No entanto, a lógica que situa o cérebro antes da mente é surpreendentemente fraca. Vou apresentar uma analogia: sei que você vai concordar em que não é possível tocar “Twinkle, Twinkle, Little Star” no piano sem um piano. Isso é o óbvio, tão óbvio quanto não ser possível pensar sem um cérebro. Mas, se alguém dissesse que o piano compôs “Twinkle, Twinkle, Little Star”, a afirmação não faria sentido. Um piano é só uma máquina; não cria novas músicas. Não se pode descartar esse fato examinando as moléculas de cada tecla de marfim com um microscópio eletrônico para explicar de onde surgiu Mozart. Só que os pesquisadores do cérebro fazem exatamente isso quando sondam a estrutura molecular dos neurônios em busca da origem oculta dos pensamentos e dos sentimentos. Antes de um piano produzir música, uma mente teve de escrever as notas. Antes de um cérebro registrar um pensamento, uma mente deve pensar.
Durante séculos o mistério de como a mente se relaciona com o corpo tem sido uma questão filosófica, e não prática. Na vida comum do dia a dia, o debate cérebro versus mente não chega a ser importante. Nós dizemos “Eu mudei de ideia”, não “eu mudei de cérebro”. A média das pessoas passa pela vida sem questionar o que torna humana uma mente. Mas essa questão, que parece estar numa torre de marfim, tem implicações práticas incríveis. Não se pode ficar indiferente à questão da mente versus cérebro se a mente serve como portal para uma realidade mais profunda; se chegar a essa realidade pode transformar sua vida, esse problema se torna o mais importante de todos.
Nós também temos nossos viajantes interiores. Os neurocientistas já demonstraram que sondagens no cérebro de monges budistas avançados são muito diferentes da norma. (Já mencionei a descoberta de que os cérebros dos monges funcionam com o dobro das frequências de cérebros normais na região das ondas gama.) A maior descoberta foi que a atividade geral no córtex pré-frontal era muito intensa – mais intensa, aliás, do que jamais observado antes –, alteração que surge após anos de se meditar sobre a compaixão. Assim, o córtex pré-frontal é o centro da compaixão, entre outras funções superiores. Nesse caso, não seria inexato dizer que o cérebro mudou a si mesmo. Primeiro os monges tiveram a intenção se ser compassivos, depois meditaram sobre isso, e seus cérebros foram atrás.
Isso é o contrário do que esperava a ciência. Um dos enfoques muito divulgados entre médicos ocidentais foi que visionárias como santa Teresa d’Ávila ou santa Bernadete, figuras que viveram experiências místicas, poderiam sofrer de lesões cerebrais, epilepsia, ou qualquer outra doença que as tivesse levado a crer que tinham uma experiência divina. (Entre os ateus declarados, a maneira de explicar uma visão sagrada se reduz a uma escolha entre embuste, ilusão e doença mental. Esta última, na verdade, é a explicação mais piedosa.) Os céticos podem argumentar o que quiserem sobre quanto um cérebro desequilibrado é capaz de enganar os pacientes mentais, levando-os a acreditar em ilusões. Alguns esquizofrênicos com delírios de grandeza creem poder parar uma locomotiva postando-se à frente dela e desejando que ela pare. Curandeiros acreditam debelar um câncer pedindo a ajuda de Deus. Gozadores chamam todas essas crenças de pensamento mágico. Todo mundo sabe que não é possível mover objetos com a mente. Mas é precisamente o que fazemos quando fechamos o punho ou lançamos uma bola: nossa mente não só mobiliza milhares de moléculas no cérebro como nossa intenção se difunde pelo sistema nervoso, chegando a músculos e ossos – e cada passo do caminho é uma questão da mente sobre a matéria. Quanto a relacionar santidade à doença mental, este é um julgamento insultuoso e tolo.
O que importa, na verdade, é um forte desejo de estar próximo de Deus. Como vimos no caso dos monges tibetanos, a intenção se traduz em novo funcionamento do cérebro. Por que isso é tão inacreditável? Ninguém pode explicar por que temos qualquer pensamento, então, uma experiência divina não é mais misteriosa que provar um suco de laranja ou assistir à final de um torneio. Só podemos mudar numa direção espiritual se o cérebro também mudar, e nosso desejo é alterar a paisagem material do cérebro, e não o contrário.
De diversas maneiras, a neurologia escamoteia fatos ao decidir sobre a validade da experiência humana, já que o córtex visual não acende apenas quando você vê um cavalo, mas também quando sonha com um cavalo. Uma imagem é uma imagem é uma imagem, parafraseando Gertrude Stein. A espiritualidade adota uma perspectiva mais ampla. O cosmo não teve de esperar bilhões de anos até o cérebro humano evoluir. O cosmo já se comportava como se tivesse uma mente muito antes disso. Eis o que diz o eminente físico Freeman Dyson: “Parece que a mente, tal como se manifesta na capacidade de fazer escolhas, até certo ponto, está em todos os elétrons.”
Então, o que veio primeiro, a mente ou o cérebro? A ciência está acostumada a resolver problemas difíceis, mas este, como observa Leonard, é considerado o problema difícil. Gostaria de propor que jogar a mente contra o cérebro é uma proposta sem vencedores. O problema difícil pode ser resolvido sem que nenhum dos lados saia perdendo. Para começar, por que devemos afirmar que a mente cria a matéria – ou vice-versa? Essa necessidade desaparece se concordarmos que não há um ponto específico, nos últimos 13,7 bilhões de anos, em que a matéria de repente aprendeu a pensar e a sentir. Quando abandonamos a busca superficial desse momento fictício, surge uma resposta melhor: a mente sempre esteve aqui, se não pela eternidade, ao menos pelo mesmo tempo que a gravidade e as leis da natureza.
Nessa visão alternativa, a mente cósmica está tão à nossa volta que não desaparece, não importa o que fizermos. Está em nossos corações, no fígado e nas células das entranhas, assim como em nosso cérebro, provendo inteligência, poder de organização, criatividade e tudo mais. Mesmo quando alguém perde as funções mentais por efeito de psicose, drogas ou algum acidente catastrófico, o aspecto da inteligência que mantém o corpo funcionando estará intacto (como observamos em pacientes em coma). Isso resolve de vez o enigma do tipo “o ovo ou a galinha”, sobre o que veio primeiro, a mente ou o cérebro. “O que veio primeiro” não vale nem é relevante no vácuo quântico, que está fora do espaço e do tempo. Se a matemática e a gravidade começaram lá, é um pequeno passo conferir o mesmo status à mente. Afinal, não há como vivenciar a matemática, a gravidade e tudo o mais sem uma mente.
Sei que esse pequeno passo conduz a ciência para uma direção que muitos não querem assumir, para o domínio de coisas que não podem ser quantificadas. Mas a ciência já está lá. (Uma digressão pessoal: certa vez debati a questão da consciência com um preeminente físico versado nesse problema difícil. Quando perguntei se gostaria de discutir o tema em público, ele recuou. “Você não entende. Consciência é um esqueleto no armário. Nós não discutimos isso. Se eu o discutisse, minha reputação profissional estaria arruinada.”) Rumi, o adorado místico sufi, entendia que a mente está em todo lugar quando disse: “Todo o Universo existe dentro de você. Pergunte a si mesmo.” Situar a mente no centro do palco do Universo resolve um enigma constrangedor, envolvido no problema difícil: quando vejo um pôr do sol na minha imaginação, a luminosidade alaranjada tingindo o céu cor de safira, onde está esse pôr do sol? Não está no meu cérebro, pois dentro dele não há luzes nem imagens. Não há nada no cérebro a não ser tecido mole e gelatinoso, bolsões de água e escuridão sombria. Mas o pôr do sol que vislumbro tem de estar em algum lugar, e a melhor resposta é o espaço mental.
No espaço mental, mente e matéria se movimentam como uma coisa só. Se eu quiser lembrar o rosto de minha mãe, eu o evoco no mesmo instante. Não importa quantos milhares de neurônios precisam ser orquestrados, quais centros do cérebro devem ser acesos para transformar a memória em imagem visual. Mente e matéria são inseparáveis. Como instrumento da consciência, o cérebro humano precisava de tempo para evoluir. Quando evoluiu o suficiente, um pensamento e um neurônio se ligaram de modo perfeito, como um pianista e o seu piano – só que, nesse caso, o cérebro toca a música da vida.
Leonard lançou mão do demônio de Maxwell para defender as leis básicas da física. Não tenho problema com isso, desde que as “leis básicas” incluam o mundo quântico, onde se originam todas as possibilidades. Permita-me recorrer ao demônio de Deepak para defender a mente. Esse demônio está empoleirado no alto do Empire State Building, olhando para o trânsito lá embaixo. Os automóveis na Quinta Avenida às vezes viram para a direita e às vezes para a esquerda. O demônio sabe que todos os automóveis obedecem às leis da física, assim como os átomos nos corpos dos motoristas. Ele sabe que se pode fazer a previsão estatística quanto aos carros que irão virar à direita ou à esquerda. Isso significa que as leis da probabilidade nos dizem o que cada motorista está fazendo? De jeito algum, pois o demônio de Deepak entende que cada automóvel representa uma mente que toma uma decisão. Será que vou para a Macy’s ou para as Nações Unidas? Uma fica à esquerda, outra à direita. Sem uma decisão da mente, os carros não fazem a curva.
Por isso, o problema difícil pode ser resolvido, mas ele requer uma visão mais abrangente da questão. O reducionismo não é suficiente. Quando indagados sobre o que o mundo quântico significa na vida cotidiana, os físicos costumam dar de ombros e continuar em seus afazeres diários. Essa atitude é sintetizada na ordem “Cale a boca e faça os cálculos”. Os físicos se orgulham de sua vontade de se manter afastados da metafísica. Mas, gostem ou não, precisamos trazer o cerne da existência para o centro do palco. Nossas mentes não podem descansar enquanto não soubermos o que é a mente. A espiritualidade sempre recebeu bem essa missão; agora chegou a hora de a ciência fazer o mesmo.