Eu equiparo o futuro da fé ao futuro de Deus. A fé moderna numa divindade é muito diluída, o que requer uma conversa mais direta. É fácil ver as discussões acerca de Deus se transformar em murmúrios educados, no chá das cinco, a respeito de questões bem distantes das coisas práticas da vida cotidiana. Para um incontável número de pessoas, a fé pessoal é fonte de constrangimento e de hesitações. Por outro lado, eu tenho defendido o caminho espiritual como algo urgente e vital. O futuro do planeta depende da elevação de nossa consciência. Como Deus está intimamente ligado ao que somos e ao que a vida significa, não há um futuro de Deus separado do porvir individual. Você e eu tomaremos decisões que irão determinar se Deus terá um amanhã viável.
O aspecto principal é fazer com que Deus deixe de ser uma força externa para se tornar uma experiência interna, da religião para a espiritualidade. Não estamos falando de uma volta ao misticismo. A vida moderna se apoia em duas coisas: informação e satisfação pessoal. Mas não há fatos concretos provando que Jesus Cristo se levantou dos mortos, que o arcanjo Gabriel ditou o Corão ou que Moisés realmente existiu. Com isso, resta apenas a satisfação pessoal, e é aqui que a espiritualidade encontra sua porta de entrada.
As pessoas anseiam por valores e significados em suas vidas. Se uma experiência interna de Deus conseguir satisfazer esse anseio, poderá suplantar as antigas formas de abordagem do divino. Um Deus externo e acima das nuvens, como o representado pelas religiões populares, tem uma perspectiva sombria. Atrás de cada púlpito há um relógio invisível tiquetaqueando, contando as horas, enquanto milhares de fiéis fogem dos templos e das igrejas. Em quase todos os países desenvolvidos, o público religioso diminuiu para menos de 20% da população, e, em muitos lugares, como a Escandinávia, o número fica abaixo de 10%. Deus não é mais pessoalmente satisfatório. Religiões que enfatizam o pecado, a culpa e o castigo não conseguem mais atrair pessoas que desejam se realizar sem ser estigmatizadas (um exemplo é a condenação da meditação oriental pela Igreja católica, por considerá-la herética).
Estou convencido da necessidade de uma mudança para dentro. Precisamos nos libertar do peso do dogma religioso, mas também não podemos ceder ao materialismo. Mesmo quando defendido por uma voz simpática, como a de Leonard, o determinismo mecanicista não propicia satisfação pessoal a não ser por uma austera valorização da coragem exigida para encarar um Universo frio e oco. A espiritualidade pode fazer melhor que isso. Contudo, os céticos têm o direito de exigir mais especificidade, pois certas armadilhas devem ser evitadas.
Certa vez, um visitante procurou um famoso mestre espiritual. Foi convidado a se sentar no assoalho de uma sala gelada e vazia. Em frente estava o mestre, vestido de branco e em silêncio, enquanto um atendente servia o chá. O visitante tinha dificuldade de esperar; estava claramente agitado.
Assim que o atendente saiu, o visitante se pronunciou, falando:
“Senhor, ouvi dizer que o senhor é um sábio reverenciado. Mas já encontrei muitos outros como o senhor e, francamente, demorou muito tempo para eu me convencer a vir aqui falar sobre o meu problema. O mais provável é que o senhor também me decepcione, como todos os outros.”
O mestre continuou imperturbável. “Qual é esse seu problema?”
O visitante suspirou. “Estou com sessenta anos, e desde a infância me senti atraído por Deus. Continuei em minha busca enquanto ganhava a vida e sustentava minha família. Rezei, meditei e fiz retiro. Li toda a escritura. Passei meses na companhia de homens considerados santos.”
“E o que sua busca revelou? Você encontrou Deus?”
O homem meneou a cabeça com tristeza. “Tive incontáveis experiências que pareciam certas. Tive visões. Fui inundado de luz. Todos os budas e sinos dourados que possa imaginar apareceram para mim. Mas tudo virou pó. Sinto-me vazio e deprimido, abandonado por Deus. É como se eu não tivesse vivenciado nada.”
“Claro”, murmurou o mestre espiritual. O homem ficou assustado. “Quer dizer que Deus não existe?”
“Quero dizer que a mente pode projetar o que você pedir. Se estiver procurando por budas dourados, eles vão aparecer. Assim como todos os deuses, ou o Deus. Cada caminho leva a um objetivo previamente conhecido. Mas será mesmo Deus? Deus tem a ver com liberdade. Você seguiu intensamente todas essas disciplinas, mas ainda não chegou ao seu destino” – e o mestre deu um sorriso enigmático. “Agora vou fazer uma pergunta: você consegue se disciplinar para ser livre?”
Esse diálogo, que por acaso é verdadeiro, lança uma dúvida radical sobre os caminhos convencionais para Deus. Mas aponta também outro caminho, às vezes chamado de “o caminho sem caminho”. Nessa trilha, não existe um objetivo fixo e nenhum processo prescrito a seguir. Ao se examinar intimamente, a cada momento, você descasca os aspectos irreais de si mesmo até restar apenas o real. Muitas coisas são irreais, de acordo com as sábias tradições do mundo. A ignorância é irreal, em particular a ignorância sobre quem você realmente é. O ego e suas necessidades urgentes são irreais. Como esses desejos compõem os alicerces da vida da maioria das pessoas, dá para perceber como é profunda a transformação exigida.
Chegar lá parece difícil, eu sei. Tendo se despedido das religiões organizadas, será melhor enfrentar a própria dor e o sofrimento? Será que alguém realmente consegue se livrar dos intermináveis desejos do ego? A graça salvadora do caminho espiritual é que ele surge naturalmente. Embora a vida seja cheia de sofrimento e o ego exija ser satisfeito, essas coisas não são tão substanciais quanto parecem. Se você andar por um jardim cheio de plantas e flores, elas parecem reais. Mas as aparências enganam – a realidade mais profunda é o solo rico do jardim e a renovação da vida, que não se pode deter. No nosso caso, o alimento do solo é a alma, e a renovação da vida acontece por dentro. Você não precisa dizer ao seu corpo para se renovar; ele faz isso naturalmente. Você não precisa obrigar a mente a ter novas percepções; bilhões de bits de dados sensoriais inundam a mente todos os dias. O processo de renovação orienta a vida em todos os níveis. Para mim, um futuro viável do espírito está centrado na descoberta de que o ímpeto criador e evolutivo da natureza é a mesma força que reside no núcleo do que somos.
Sempre pensei que qualquer um poderia levar uma vida espiritual só observando as crianças com mais atenção. As crianças não resistem ao seu desenvolvimento interior. Elas não têm medo de que a vida possa parar aos três, aos cinco ou aos dez anos; quando chega o momento de abandonar as bonecas de papel e aprender a ler, esse novo estágio surge de modo espontâneo. Como uma criança de três anos se prepara para ter quatro anos? Ela não se prepara. Cada criança faz o que faz, deixando que aquilo que vem depois se desenvolva com naturalidade. Esse é um segredo que a natureza dominou – como permitir que surja o novo sem destruir o velho, mas brotando de dentro, de forma invisível e silenciosa, até o novo florescer natural.
No caminho sem caminho ocorre processo semelhante. Novas características surgem em nossa consciência, não lutando contra o nosso antigo eu, mas estimulando o crescimento natural a partir de dentro. As pessoas atuais se surpreendem ao olhar o passado e ver uma era de fé, mas o fato de vivermos em outra época não invalida o despertar da consciência. Aliás, muito ao contrário. Desbastado das ervas do dogma e da superstição, o caminho espiritual ficou mais fácil de trilhar. A melhor maneira de satisfazer suas aspirações é despertar, não escolher a renúncia ao mundo em nome de Deus, mas escolher abrigá-lo dentro de si. No entanto, para tornar possível essa mudança tão radical, precisamos descobrir o que significa despertar.
O processo de despertar está concentrado na transcendência, como já argumentamos. Além do nosso desperto estado cotidiano, há um nível mais profundo de silêncio interior. Isso não é uma busca de paz e tranquilidade; o que fazemos é transcender o remoinho dos pensamentos diários para encontrar a fonte da mente. Em termos práticos, existem muitos níveis de transcendência. O mais profundo é a meditação, que, como já se sabe, altera a estrutura do cérebro e leva a transformações duradouras. Na parte mais superficial encontra-se o entusiasmo que torcedores experimentam numa partida de futebol ou que consumidores de carteirinha sentem quando fazem uma boa compra. Esses dois polos parecem não ter nada em comum, mas há um vínculo invisível. Sempre que você vivenciar qualquer estado de pura consciência, mesmo que passageiro, terá transcendido.
Consciência pura não é uma maneira de pensar ou um ponto de vista. É o potencial invisível do qual tudo se origina. As qualidades da consciência pura parecem sutis a princípio, mas tornam-se mais poderosas enquanto seguimos em frente no caminho. Eis os principais atributos definidos pelas grandes tradições de sabedoria.
AS DEZ QUALIDADES DA CONSCIÊNCIA PURA
1. A consciência pura é silenciosa e pacífica. Ao vivenciar essa característica, você se sente livre dos conflitos interiores, da raiva e do medo.
2. A consciência pura é autossuficiente, ou centrada em si mesma. Ao experimentar esse atributo, desaparece a necessidade de distrações. Você se sente confortável simplesmente em estar aqui. A mente não fica inquieta e em busca de estímulos.
3. A consciência pura está totalmente desperta. Essa qualidade é vivenciada como um estado mental de alerta e frescor. A mente não se sente mais embotada ou fatigada.
4. A consciência pura contém potencial infinito; está aberta para qualquer resultado. Ao viver essa característica, você deixa de estar limitado por hábitos e convicções fixos. O horizonte parece aberto, o futuro, cheio de possibilidades. Quanto maior for sua experiência de puro potencial, mais criativo você se torna.
5. A consciência pura organiza a si mesma. Sem esforço, ela coordena todos os aspectos da existência. Você vivencia esta qualidade quando as coisas se encaixam em seus lugares de um modo próprio. Há menos luta para obrigar diferentes partes da vida a se harmonizar, pois você está mais afinado com a harmonia natural que perpassa todas as coisas.
6. A consciência pura é espontânea. Cronogramas, limites e regras não mais se aplicam; nem são necessários. Libertar-se das antigas restrições, onde elas estiverem, faz você se sentir mais seguro para expressar o que é e o que deseja sem restrições. É o estado de liberdade absoluta, que você experimenta sempre que se sente livre.
7. A consciência pura é dinâmica. Embora não esteja em movimento, ela fornece energia para todas as atividades no Universo. Você vivencia esta característica quando sente que pode acolher a vida de maneira total. Você tem energia e vontade para fazer grandes coisas.
8. A consciência pura é um estado de graça; é a raiz da felicidade em sua mais elevada expressão. Qualquer surto de felicidade, seja qual for sua causa, é uma sensação de êxtase. Um orgasmo é benéfico, mas a compaixão também. Qualquer experiência amorosa pode ser retraçada até suas origens na bem-aventurança.
9. A consciência pura é sabedoria; tem as respostas para todas as perguntas e, de maneira mais crucial, o conhecimento prático necessário para o desenvolvimento do Universo, do corpo humano e da mente. Qualquer experiência de intuição, insight ou verdade deriva desse atributo.
10. A consciência pura é integral; abrange tudo. Portanto, apesar das infinitas adversidades do mundo físico, num nível mais profundo, só ocorre um processo: a totalidade se move como um só oceano que contém todas as ondas. Você experimenta essa característica quando sua vida faz sentido e você passa a fazer parte da natureza; sente-se à vontade simplesmente por estar vivo.
Como se pode ver, eu não usei nenhum termo religioso, mas essa é uma divindade, despida das exigências de fé e obediência. A essa altura, não se pode esperar que você admita que as dez qualidades são divinas em sua essência. Mas pode usar essa ideia como hipótese de trabalho. Nesse sentido, você vai ser o experimentador e o experimento. Se quiser transcender a realidade do dia a dia, os dez atributos irão se desenvolver em sua vida. Você vai perceber uma maior realização e a criatividade. Sua sensação de segurança vai aumentar ao saber quem você realmente é.
Agora sabemos com certeza que tipo de ação exige o caminho espiritual. Não é necessário se preparar para se tornar “espiritual” entre aspas. A única exigência é medir sua atividade, interior e exterior, segundo um critério: o que pode desenvolver a manifestação da consciência pura? Na espiritualidade, há espaço para pessoas muito religiosas e para pessoas “temporais” (inclusive os cientistas). Fazer um bom trabalho e ser prestativo não são garantias de transcendência, contudo, são marcos num caminho espiritual reconhecido; muitos dos que os procuram percebem que isso aumenta a sensação de graça, paz, concentração e autossuficiência. Outro caminho reconhecido é a contemplação profunda; outro, ainda, é a atenção – conscientizar-se de que seus pensamentos são apenas pensamentos, indo e vindo como nuvens no eterno céu da consciência. O experimento espiritual pode ser realizado à medida que você o desejar.
Não estou sugerindo que você adote um regime e se apegue a ele. A consciência faz esse trabalho por você, assim como os genes fazem o trabalho necessário para o embrião se desenvolver. A diferença é que o crescimento espiritual exige escolhas. Quando você souber o que é a consciência pura, irá orientar sua mente nessa direção. Para não parecer místico demais, vou contar uma parábola dos Upanixades da antiga Índia.
Um cocheiro conduz uma parelha de cavalos, usando o chicote para que galopem cada vez mais depressa. O dia é ensolarado; ele está exaltado, como se fosse dono do mundo. De dentro da carruagem, soa uma voz longínqua: “Pare.” Em seu entusiasmo, o cocheiro ignora aquela voz; nem sabe ao certo se ouviu alguma coisa. De novo, a mesma voz suave ordena de dentro da carruagem: “Pare.”
Dessa vez o cocheiro sabe que ouviu uma ordem, o que o deixa raivoso, por isso chicoteia os cavalos para correrem ainda mais depressa. Mas a voz dentro da carruagem continua a repetir sua ordem, sem jamais aumentar de tom, até o cocheiro se lembrar de uma coisa. O passageiro é o dono da carruagem! O cocheiro puxa as rédeas, e, lentamente, os cavalos param de correr.
Nessa parábola, os cavalos são os cinco sentidos e a mente, sempre fustigados pelo ego para seguir adiante. O ego sente que controla tudo. Mas o dono da carruagem é a alma, cuja voz suave espera paciente até ser ouvida. Quando é afinal escutada, o ego se afrouxa. Desiste da falsa posse. A mente reduz sua atividade frenética e, com o tempo, aprende a parar. Parar não é um fim em si mesmo; é a base para saber quem você realmente é: uma alma com seus atributos divinos. Esses atributos são as características da consciência pura.
Acredito que todas as casas deveriam ter um recanto dedicado à divindade – uma capela de rosas ou um altar de lavanda perfumada. Uma lasca de cristal também serve, ou um pequeno Buda de bronze, em um local ensolarado. Se quisermos que o divino tenha um futuro, precisamos de lembretes diários. Lembretes do quê? Da voz dentro da carruagem.
Essa tentativa de definição não vai restringir a alma. Faz parte do experimento descobrir isso por si mesmo. Mas não consigo deixar de citar um trecho do Bhagavad Gita, escrito do ponto de vista da alma:
Este Universo inteiro está permeado por Mim, o Brâman não manifesto. Todos os seres dependem de Mim. Eu sou a origem, a semente de todos os seres.
Não há nada, animado ou inanimado, que não seja permeado por Mim. Sou encontrado em toda a criação. Estou dentro e fora de tudo o que existe.
No fim, o caminho espiritual só realiza uma coisa bem simples: faz com que essas palavras atemporais se mostrem verdadeiras para você. A crença se torna um conhecimento em que se pode confiar, e, sobre essa base, Deus pode ser reverenciado outra vez.
Augusto Comte, um dos mais influentes filósofos franceses da primeira metade do século XIX, escreveu muito sobre a natureza do conhecimento, o que ele significa e como podemos obtê-lo. Aliás, Comte escolheu um exemplo infeliz para ilustrar sua filosofia, baseado no que considerava um fato científico infalível: “Sobre o tema das estrelas, … não seremos capazes de determinar sua composição química ou mesmo sua densidade. … Julgo que nos será negada para sempre qualquer noção a respeito da verdadeira temperatura das várias estrelas.” Apenas quatorze anos depois, Gustav Kirchhoff e Robert Bunsen descobriram que era possível determinar as propriedades das estrelas analisando a luz que emitem, e hoje usamos esse método, a espectroscopia, para medir substâncias químicas, temperatura, densidade e muitas outras propriedades de planetas, estrelas e galáxias distantes. Alguns objetos astronômicos que estudamos dessa maneira estão a mais de 10 bilhões de anos-luz de distância.
Segundo o dicionário, a diferença entre fé e conhecimento é que a primeira implica confiança, enquanto o segundo envolve certeza. Embora haja questões de coerência (e os filósofos podem debater esse tema), é possível chegar a um tipo de certeza pela matemática – aplicando as regras e derivando as consequências, num exercício de pura lógica. Mas, na nossa vida cotidiana, e mesmo na ciência, é difícil, talvez até impossível, estabelecer a diferença entre o que “sabemos” e aquilo em que meramente “acreditamos”. Talvez achemos que é possível estabelecer a diferença entre acreditar que não vamos adoecer por causa do peixe cru do nosso sushi-bar local e saber que amanhã o Sol vai nascer a leste. Será verdade? Em parte, nós baseamos o que achamos que sabemos – as convicções de que temos certeza, ou ao menos as que não questionamos – nas evidências empíricas.
Já vimos e ouvimos falar que o Sol nasce todos os dias de nossas vidas, e mesmo antes de termos nascido. Por isso, “sabemos” que ele vai nascer amanhã outra vez. Em 1812, o astrônomo e matemático Pierre-Simon Laplace utilizou a teoria das probabilidades para avaliar o grau de certeza que justificava essa previsão baseado apenas no fato de o Sol ter nascido nos últimos 5 mil anos (a idade aproximada da Terra, segundo os relatos bíblicos). Ele chegou à probabilidade de 1.826.214:1 a favor. Mas nós não usamos somente evidências empíricas para construir nossas convicções. Assim, Laplace concluiu que talvez as pessoas confiassem muito mais no fato de que o Sol iria nascer do que a proporção indicada em seus cálculos: elas sabiam que as leis da natureza – tecnicamente, a gravidade e a mecânica celestial – fazem isso acontecer. Ironicamente, as teorias atuais da física nos dizem que é provável que o Sol não vá nascer para sempre, nem existir para sempre. Como eu já disse, em mais ou menos 7 bilhões de anos o Sol estará 250 vezes maior (e 2.700 vezes mais luminoso) que hoje, inchando até ocupar todo o céu, e provavelmente vai engolir a Terra. Bilhões de anos depois, irá incinerar e encolher, para se transformar numa espécie de cadáver estelar chamado anã branca. Em certo sentido, tudo o que dizemos que “sabemos” – com exceção talvez das verdades matemáticas – é apenas uma questão de fé, e por isso o futuro das crenças teológicas está ligado a como e por que acreditamos nas coisas da vida comum, até na ciência.
Bertrand Russell escreveu que “acreditar parece a coisa mais mental que fazemos”. É também uma das mais complexas e variadas. Não são só a observação e a compreensão teórica que interagem, mas nossos desejos, necessidades, preconceitos, emoções, estado de espírito e nosso arcabouço de convicções interatuam de modo complexo para afetar a maneira como formamos nossas crenças.
Por exemplo, consideremos um experimento relativo ao que os psicólogos chamam de ilusão de controle: a convicção inconsciente de que somos senhores de nosso destino, mesmo quando temos consciência de que isso não acontece. No estudo, funcionários de uma agência de seguros e de uma fábrica de Long Island participaram com US$ 1,00 para comprar um bilhete de loteria no escritório, e podiam optar entre escolher o número ou receber qualquer bilhete oferecido pelo vendedor, aleatoriamente. Na manhã do sorteio, os vendedores abordaram individualmente os compradores dizendo: “Alguém quer participar da loteria, mas, como eu não tenho mais bilhetes para vender, ele me pediu para descobrir por quanto você venderia o seu. Para mim, não faz diferença, mas o que devo dizer a ele?” Não há dúvida de que muitos dos participantes conscientemente não se consideravam capazes de escolher o bilhete vencedor numa oferta aleatória; porém, de alguma forma, eles acreditavam nisso: os que receberam os bilhetes sem escolher o número concordaram em vendê-los por um preço médio de US$ 1,96, enquanto os que tinha escolhido os bilhetes pediram uma média de US$ 8,67. Nossa avaliação interna das evidências não segue um cuidadoso cálculo matemático resultante de uma estimativa probabilística da verdade. Está mais para um remoinho, misturando o objetivo e o pessoal. O resultado é uma série de convicções – conscientes e inconscientes – que nos orientam na interpretação de todos os eventos da nossa vida.
O pedido dos pais para um adolescente vestir um casaco antes de sair no frio, por exemplo, pode ser visto como tentativa de exercer controle, como atitude protetora originada de um medo exagerado de doenças, ou como uma expressão de amor e preocupação. Um computador que analisasse somente as palavras dos pais poderia não fazer nenhuma inferência, ou talvez pedisse mais dados. Mas o adolescente no lado receptor vai tirar algumas conclusões baseado em suas convicções prévias a respeito dos pais, sem pensar muito nas possíveis interpretações alternativas. Assim como Comte, nós achamos que sabemos.
Nosso cérebro, por boas razões, tende a tirar conclusões baseadas em experiências passadas, regras básicas e no arcabouço de convicções vigente. Nós não chegaríamos muito longe na vida se, antes de parar para assistir à beleza do nascer do sol, ficássemos discutindo sobre a probabilidade de aquilo acontecer. De fato, a evolução favoreceu os que deixaram que suas escolhas fossem guiadas por reações viscerais. Quando a terra começa a tremer e você está no alto de um penhasco, é melhor correr primeiro, e só depois se envolver na formulação de teorias sobre o que está acontecendo. Se os instintos não tivessem feito uma conexão entre causa e efeito, e catalisado um plano de ação imediato como resposta, nossos ancestrais teriam sido devorados enquanto ponderavam sobre aqueles misteriosos movimentos dos arbustos. Como observou William James: “O intelecto é formado por interesses práticos.”
Seja qual for o futuro das crenças teológicas, as pessoas sempre vão adotar sistemas que gratifiquem suas necessidades emocionais. Nenhum de nós consegue funcionar sem ter fé, de um modo ou de outro. Empresários começam negócios com fé; imigrantes sem nenhuma perspectiva concreta mudam-se para outro país baseados na fé; escritores labutam horas a fio tendo fé de que as pessoas irão ler sua obra. Há ateus com fé em números da sorte, assim como advogados racionais que comem atum, cheeseburger ou salada solar maia nos dias de julgamento porque acreditam que esses pratos lhes trarão sorte. “Sem dúvida você não gostaria de saber que seu cirurgião cardíaco ou o piloto do 747 usa sempre a mesma cueca na hora de fazer uma operação ou de pilotar”, disse um advogado crítico dessas práticas. Mas sem dúvida há cirurgiões e pilotos que fazem exatamente isso. Um político de Israel era famoso por usar sempre sua cueca da sorte nos dias de eleição. O físico George Gamow contou uma história envolvendo Niels Bohr, que teria uma ferradura pregada na porta de seu chalé no campo. Quando lhe indagaram como um famoso cientista podia ter fé num amuleto, Bohr respondeu que não acreditava naquilo, mas declarou: “Dizem que traz boa sorte mesmo para os que não acreditam.”
Chamamos isso de superstição, mas é o reflexo de uma profunda necessidade emocional de justificar a crença de que vamos nos sair bem ao assumir um grande desafio. William James escreveu sobre a possibilidade de estar preso nos Alpes numa posição de que só poderia escapar com um incrível salto.
Sem ter passado por experiência semelhante, não possuo provas da minha capacidade de obter bom êxito, mas a esperança e o crédito em mim mesmo garantem-me que não vou errar o alvo, e vou estimular meus pés para executar algo que, sem essas emoções subjetivas, talvez fosse impossível. Mas vamos supor o contrário: … eu sentir que seria pecaminoso atuar a partir de uma suposição não verificada por experiência prévia; ora, nesse caso, vou hesitar por tanto tempo que, afinal, exausto e trêmulo, ao me lançar num momento de desespero, vou falhar e rolar abismo abaixo.
James escreveu: “Todos os filósofos, ou também os homens de ciência, cujas iniciativas têm algum valor na evolução do pensamento apoiaram-se numa espécie de convicção burra de que a verdade deve estar numa direção, e não na outra … e produziram os mais belos frutos ao tentar fazer isso funcionar.”
Se não tivessem fé, muitos físicos teóricos que enfrentaram anos de trabalho em cálculos complexos, confinados em úmidos gabinetes e sem promessa de sucesso, talvez não sentissem coragem para saltar sobre esses abismos. Por exemplo, hoje, uma das pesquisas essenciais na física fundamental é a busca de uma teoria definitiva e elegante que unifique as quatro forças observadas na natureza. Uma dessas forças, a gravidade, segue a seguinte equação simples, formulada por Einstein:
Claro que a equação de Einstein não é tão simples quanto parece – é preciso estudar muito para conseguir aplicá-la e entender o que significa, sendo uma das equações mais difíceis de resolver em toda a física. Mas ela apresenta uma interpretação física simples, e é uma maneira muito econômica de expressar matematicamente um pensamento complexo, com o lado esquerdo da equação representando a estrutura do espaço-tempo, enquanto o direito representa seu conteúdo de matéria-energia. Para um físico, trata-se de uma equação elegante. Agora dê uma olhada na teoria atual das outras três forças, chamada “modelo-padrão”. Não importa o verdadeiro significado dos símbolos, pois mesmo o leitor desinformado será capaz de perceber que essa sequência de símbolos é bem mais confusa e deselegante que a anterior:
Tanto para o especialista quanto para o leigo, o modelo-padrão é feio – parece mais o diagrama do circuito de um dispositivo de alta tecnologia que a expressão de princípios físicos simples. Mas funciona muito bem. Ainda haverá uma teoria mais elegante para essas forças? Richard Feynman responde:
As pessoas me perguntam: “Você está procurando as leis definitivas da física?” Não, não estou. Apenas tento saber mais sobre o mundo. Se por acaso houver uma lei simples e definitiva que explique tudo, OK, seria muito bom descobrir isso. Se, por acaso, ela for como uma cebola, com milhões de camadas, e acabarmos cansados de olhar para elas, então o jeito é esse.
Contudo, apesar do ceticismo de Feynman, se você perguntar para quem trabalha na área, não vai ser fácil encontrar alguém que não tenha fé na existência de uma teoria mais atraente. Os físicos se alimentam da fé de que, no fundo, a natureza é simples e elegante. Para eles, assim como para todos, a fé baseada em sentimento, desejo, necessidade ou intuição é um aspecto essencial da mente humana.
Sempre que enfrentamos dificuldades, desafios ou incertezas, esses fatores podem ajudar a manter crenças que vão além do que consideramos uma verdade inquestionável. A fé, como define James, pode ser uma grande “hipótese de trabalho”. Isso vale para os cientistas e para qualquer pessoa. Aliás, é importante para os cientistas formular essas hipóteses de trabalho (e depois saber descartá-las, se não derem certo), pois, se não fizéssemos isso, jamais avançaríamos no nosso conhecimento do Universo. Mas hipóteses de trabalho como a de Deepak, que insistem na primazia de um mundo imaterial, em crenças que negam a evolução ou afirmam os milagres sobrenaturais, não combinam com nosso conhecimento do mundo e costumam estar em conflito direto com as leis da física que o regem. Por isso estão erradas.
Concordo com Deepak: seria bom que, com o passar do tempo, a abordagem teológica deixasse de ver Deus como uma força externa que criou as regras do Universo, para considerá-lo uma experiência interior. Porém, o Deus regulador tem uma longa história. O forte desejo humano de entender o Universo e de atribuir causas a eventos que acontecem no nosso mundo deu lugar a mitos e crenças elaborados de forma sintética para explicar situações que as pessoas não entendem desde períodos ancestrais. A atração desses mitos não foi tanto pelas verdades objetivas que codificavam, mas por sua capacidade de oferecer respostas animadoras à pergunta “Como chegamos aqui e por quê?” Antes do advento da ciência, o Deus regulador era a resposta. Ele atendia a outras ansiedades humanas também – como satisfazer à nossa necessidade de acreditar que as coisas acontecem com um propósito, que o mundo é justo e que a morte não é o fim, mas um começo.
Muitos preveem a morte desse Deus familiar e pessoal, à medida que a ciência triunfa cada vez mais. Porém, a ciência já mostrou seu poder no mundo físico – desde demonstrar que a Terra é redonda até provar que o espaço é curvo. Já vimos a evolução ser estudada até o nível molecular, o Universo ser explorado até o início, no big bang, a vida bacteriana sintetizada, ovelhas clonadas, cirurgias feitas com laser, pessoas indo à Lua, robôs enviados a Marte, imagens tridimensionais do nosso cérebro, teletransporte quântico… No entanto, mesmo assim, o entusiasmo pelas explicações religiosas do mundo físico continua forte.
A ciência do futuro pode chegar a produzir um laser capaz de teletransportar uma ovelha sintética para Marte, a fim de abastecer robôs astronautas, mas não há razão para pensar que este ou qualquer outro feito espetacular aumentem o prestígio da ciência em detrimento das crenças religiosas. Há um tema em que podemos concordar com Mahmoud Ahmadinejad, o presidente do Irã; só precisamos ler uma carta que ele escreveu a George W. Bush, em 2006, dizendo que, “gostemos ou não, o mundo gravita em torno da fé no Todo-Poderoso”.
Para comprovar isso, uma pesquisa do Instituto Gallup, realizada pouco antes de Ahmadinejad escrever essa carta, revelou que 94% dos norte-americanos acreditam em Deus, 82% dizem que a religião tem um papel razoavelmente importante para eles, e 76% afirmam que a Bíblia é uma obra de Deus ou inspirada em Deus. Mesmo que esses números tenham diminuído, com certeza não caíram muito. Acreditar é humano, e acreditar no Deus tradicional parece uma tendência viva que continua muito bem, com a perspectiva de um futuro longo e estável.