O entendimento tem sido bastante exigido em provas de concurso público. No certame, visando ao provimento de cargos de Defensor Público do Estado de São Paulo, com provas realizadas em 2009, por exemplo, a Fundação Carlos Chagas considerou correta a seguinte assertiva: “Segundo entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal, a imunidade tributária recíproca se estende à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ECT, por se tratar de empresa pública prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado”.

Posteriormente, em sessão realizada no dia 6 de fevereiro de 2007, o STF entendeu que a imunidade tributária recíproca era também extensiva às sociedades de economia mista prestadoras de serviço público (STF, 2.ª T., AC 1.550-2/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06.02.2007, DJ 18.05.2007 p. 103).

O caso concreto referia-se à Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia – CAERD, uma sociedade de economia mista estadual. É interessante ressaltar que, no seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, relator do processo, afirmou que a decisão contra a qual foi ajuizada a cautelar “parece claramente afrontar jurisprudência desta Corte firmada no julgamento do RE 407.099-5/RS, 2.ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06.08.2004”. No entendimento do Ministro, seguido unanimemente pela 2.ª Turma do Tribunal, a decisão anteriormente comentada (relativa à ECT, empresa pública) seria um precedente a justificar a extensão da imunidade recíproca também para as sociedades de economia mista.

Em resumo, partindo dos mesmos pressupostos utilizados para a decisão que entendeu que as empresas públicas prestadoras de serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado estariam abrangidas pela imunidade tributária recíproca, o STF entendeu que também são destinatárias da proteção constitucional as sociedades de economia mista que atendam aos mesmos requisitos.

No julgamento relativo à CAERD (AC 1.550-2/RO), o Supremo não analisou se a necessária presença de particulares dentre os acionistas de uma sociedade de economia mista poderia prejudicar a configuração de imunidade. O problema reside no fato de que normalmente é a possibilidade de lucro que move um particular a adquirir ações de uma companhia, o que poderia levar à conclusão de inexistência da imunidade.

Tais questões foram finalmente apreciadas quando a Suprema Corte analisou o caso da Companhia Docas do Estado de São Paulo – CODESP (RE 253.472/SP). Em termos práticos, quanto à composição do capital social, o Tribunal levou em consideração a participação relativa do capital privado quando comparada com a participação do ente público detentor do controle acionário. Se a participação privada for considerada ínfima, a imunidade não restará prejudicada, o que se verificou no caso concreto da CODESP, em que a quase totalidade das ações (99,97%) pertencia à União. A Corte também entendeu não haver finalidade lucrativa na atuação da CODESP, uma vez que não há qualquer “indicação de que a atividade da pessoa jurídica satisfaça primordialmente interesse de acúmulo patrimonial público ou privado”.

Resumindo a tese esposada, o Supremo Tribunal Federal afirmou que, sem prejuízo da necessidade de cumprimento de outros requisitos constitucionais e legais, a aplicabilidade da imunidade deve observar os seguintes requisitos (denominados “estágios” pela Corte):

a) restringir-se à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado;

b) não beneficiar atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares;

c) não deve ter como efeito colateral a quebra dos princípios da livre concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita.

Foi também com base na imunidade recíproca que o Supremo Tribunal Federal proferiu algumas decisões cujo conhecimento é fundamental para a compreensão da matéria.

a) os valores investidos pelos entes federados, bem como a renda auferida estão imunes ao IOF e ao IR (STF, 2.ª T., AI AgR/RS 174.808, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 11.03.1996, DJ 21.06.1996 p. 22.298; STF, 1.ª T., RE 196.415/PR, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 21.05.1996, DJ 09.08.1996, p. 27.104);

b) bens que integram patrimônio de ente federado são imunes, mesmo que estejam ocupados pela empresa delegatária de serviços públicos (STF, 1.ª T., RE 253.394/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 26.11.2002, DJ 11.04.2003, p. 37);

c) a empresa privada que presta serviços de iluminação pública e é remunerada pelo Município não é beneficiada pela imunidade, visto que paga o ICMS à Fazenda Estadual e o inclui no preço do serviço disponibilizado ao usuário. Segundo o STF “a imunidade tributária, no entanto, pressupõe a instituição de imposto incidente sobre serviço, patrimônio ou renda do próprio Município” (STF 1.ª T., AC-MC 457/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26/10/2004, DJ 11.02.2005, p. 5);

d) A imunidade tributária recíproca diz respeito aos impostos, não alcançando as contribuições (STF, 1.ª T., RE-AgR 378.144/PR, Rel. Min. Eros Grau, j. 30.11.2004, DJ 22.04.2005 p. 14) nem as taxas (STF, 2.ª T., RE 364.202/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 05.10.2004, DJ 28.10.2004, p. 51).

e) O serviço notarial e de registro é uma atividade estatal delegada, mas, por ser exercido em caráter privado, não é imune à incidência do ISS (STF, Tribunal Pleno, ADI 3.089, Rel. Min. Carlos Britto, j. 13.02.2008, DJE 21.02.2008).

Conforme já destacado, a imunidade tributária recíproca não pode servir como mecanismo de concorrência desleal dos entes estatais com as pessoas jurídicas de direito privado.

Raciocinando assim, o legislador constituinte originário expressamente afirmou que a imunidade recíproca e sua extensão às autarquias e fundações públicas não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário (CF, art. 150, § 3.º).

A exploração direta de atividade econômica pelo Estado é excepcional, só sendo permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (CF, art. 173).

Nesses casos excepcionais, o normal é que o Estado explore a atividade econômica por intermédio de empresas públicas e sociedades de economia mista, ambas pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração indireta do Estado.

Como tais entidades não podem gozar de benefícios fiscais não extensivos às do setor privado (CF, art. 173, § 2.º), diminui-se o risco de concorrência desleal praticada pelo próprio Estado.

Não é tecnicamente razoável imaginar que o Estado possa explorar atividade econômica por intermédio de uma autarquia, cuja característica principal é o exercício de funções típicas de Estado num regime jurídico de direito público.

Também é despropositado pensar que a exploração venha ser feita por intermédio de uma fundação pública, pois sua área de atuação deve ser definida em lei complementar, sendo naturalmente vinculada à área social ou cultural, sempre sem finalidade lucrativa.

Mais absurdo ainda é pensar em órgãos da administração direta explorando atividade econômica.

Apesar de a utilização dos entes de direito público para exploração de atividade econômica não ser tecnicamente adequada, poderia ser sorrateiramente utilizada para que governantes mal-intencionados concorressem deslealmente com a iniciativa privada por meio de uma atípica utilização do aparelho estatal, tudo em acintosa afronta àquilo que o art. 150, § 3.º, da Magna Carta tenta evitar.

Assim, se, fugindo à boa técnica e ao bom senso, um ente político resolver explorar atividade econômica por meio de entidade imune, de nada adiantará a tentativa, pois a própria Constituição traz como consequência a inaplicabilidade da imunidade, de modo que o ente se sujeitará a todos os tributos a que estão submetidas as instituições da iniciativa privada.

Apesar da aparente clareza dos dispositivos constitucionais, em 2013 o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão cujo teor pode ser encarado como uma flexibilização do entendimento anteriormente explanado.

A questão objeto da nova discussão foi relativa às atividades exercidas pelos Correios, extrapolando o que pode ser enquadrado nos conceitos de “serviço postal e correio aéreo nacional”. Nesse contexto, podem ser citados a venda de títulos de capitalização, o recebimento de mensalidades de associações e sindicatos, de inscrições em vestibulares e concursos, dentre outras que, a rigor, sequer como serviços públicos podem ser enquadradas.

Quanto a esse aspecto, é relevante repisar que, mesmo no tocante aos entes integrantes da administração indireta expressamente imunizados pela Constituição Federal (autarquias e fundações públicas), a regra imunizante somente se aplica ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes (CF, art. 150, § 2.º). Não parece possível, nem mesmo com enorme esforço interpretativo, incluir os citados serviços como vinculados a qualquer das atividades essenciais dos Correios, nem como decorrentes de tais atividades. Ao que parece, constituem atividades plenamente enquadráveis dentre aquelas realizadas pelas instituições financeiras, estando sujeitas, portanto, ao regime de concorrência, o que, conforme já explanado, afastaria a aplicação da regra imunizante segundo a jurisprudência firmada pelo próprio STF.

O Tribunal, no entanto, sensibilizou-se com a apresentação de novos argumentos, cuja análise é feita abaixo.

1 – Mesmo no que concerne às atividades exercidas fora do âmbito do “serviço postal e correio aéreo nacional”, os Correios se sujeitam a um conjunto de restrições não aplicáveis à iniciativa privada, como a exigência de prévia licitação para celebração de contratos, a realização de concursos públicos para a contratação de pessoal e a submissão a controle pelo tribunal de contas.

2 – A principal clientela que busca nos Correios a prestação de serviços passíveis de enquadramento como financeiros é composta por pessoas sem acesso à moderna rede bancária brasileira. Foram citadas como exemplo as pequenas cidades localizadas em rincões afastados dos grandes centros e desprovidos de agências bancárias, onde não haveria de se falar em concorrência, mas em universalização dos citados serviços.

Nesse sentido, cabe transcrever a pedagógica intervenção feita pelo Ministro Ricardo Lewandowski durante o julgamento: “os Correios prestam serviços onde a iniciativa privada não presta ou não quer prestar ou entende que é deficitária. A iniciativa privada não vai para os mais longínquos rincões do País, para o interior da Amazônia, mas os Correios estão presentes lá, mesmo sofrendo prejuízo, estão prestando serviços”. Convém, registrar que, conforme também afirmado durante o julgamento, a EBCT é superavitária em apenas quatro unidades da Federação (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal), sendo deficitária em todas as demais.

3 – A prestação do serviço postal vem passando por um momento histórico de baixa, sendo paulatinamente esvaziada pela utilização de novas tecnologias, principalmente a internet, o que tem tornado obsoleta, por exemplo, a comunicação por carta e por telegrama. Sendo assim, a redação do dispositivo constitucional atribuindo à União Federal a competência para “manter o serviço postal e o correio aéreo nacional” (CF, art. 21, X) deve ser entendida como uma obrigação de manter tal serviço, mesmo que ele deixe de ser lucrativo.

O raciocínio leva em consideração que, quanto menos desenvolvida a localidade, mais ela depende dos serviços dos Correios e que a diminuição de sua qualidade ou sua interrupção prejudicaria as pessoas mais pobres e as residentes nos rincões mais afastados do País.

Por conseguinte, havendo imposição constitucional de manutenção do serviço, a própria viabilidade econômica da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos dependeria do que a doutrina denomina “subsídio cruzado”. Assim, o exercício das atividades lucrativas não compreendidas no conceito de “serviços postais e correio aéreo nacional” gera recursos que subsidiam a prestação destes serviços, de forma que a desoneração daquelas atividades como consequência da imunidade recíproca é fundamental para que se cumpra a determinação constitucional da manutenção dos citados serviços essenciais.

Em face dos três argumentos, por maioria mínima, o STF entendeu que todas as atividades realizadas pelos Correios estão protegidas pela imunidade recíproca. Pela importância do julgado, transcreve-se abaixo sua Ementa (RE 601.392/PR, j. 28.02.2013):

“Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. 3. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade. Precedentes. 4. Exercício simultâneo de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com a iniciativa privada. Irrelevância. Existência de peculiaridades no serviço postal. Incidência da imunidade prevista no art. 150, VI, ‘a’, da Constituição Federal. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido”.

A leitura apressada da Ementa pode levar a equívocos. É importante perceber que afirmativa que considera ser “irrelevante o exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com a iniciativa privada” deve ser interpretada como consequência da existência de “peculiaridades no serviço postal”, como consta expressamente da Ementa e foi explicado nos comentários anteriores. Apesar disso, é fundamental relembrar o costume que têm as bancas examinadoras, principalmente a ESAF, de considerar como verdades absolutas algumas frases constantes de julgados de STF e STJ, mesmo em questões que propõem o julgamento desses itens de maneira descontextualizada. Como lamentável exemplo, tem-se questão elaborada pela ESAF, no concurso para provimento de cargos de Procurador de Fazenda Nacional, com provas realizadas em 2012, cujo enunciado era o seguinte:

“Sobre o alcance da chamada imunidade constitucional recíproca, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é correto afirmar que:”

De acordo com o gabarito definitivo, foram consideradas igualmente incorretas, dentre outras, as seguintes afirmativas:

01. É relevante para definição da aplicabilidade da imunidade tributária recíproca a circunstância de a atividade desempenhada estar ou não sujeita a monopólio estatal.

02. Tal imunidade, em alguns casos, pode ter como efeito colateral relevante a relativização dos princípios da livre concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita.

Ora, fora do contexto e isoladamente considerada, a genérica afirmativa de que é irrelevante a atividade desempenhada estar sujeita ou não a monopólio estatal (extraída do fato de o item 01 ter sido considerado incorreto) poderia, em casos específicos, gerar relevantes riscos à concorrência (o que induziria o candidato a um equivocado entendimento pela correção da afirmativa 02). Tal conclusão é possível porque, se não há monopólio, pessoas não imunes poderiam querer legitimamente exercer a atividade e vir a sofrer concorrência desleal da entidade estatal imune.

Ocorre que o julgamento que serviu como base para se considerar incorreta a “afirmativa 01” foi referente a um caso em que a Petrobras invocava reconhecimento à imunidade e teve sua pretensão negada. A Petrobras argumentou deter o monopólio do exercício de certas atividades, mas o STF negou a pretensão afirmando que é irrelevante “a circunstância de a atividade desempenhada estar ou não sujeita a monopólio estatal” (RE 285.716-AgR). Atenção: o raciocínio não foi “Entidade X é imune independentemente de haver ou não monopólio”; mas sim “Entidade Y não é imune, sendo irrelevante o exercício de atividade em regime de monopólio”. São situações bem distintas, o que demonstra o quão temerária é a elaboração de questões com base em trechos descontextualizados de julgados.

Já a “afirmativa 02” foi retirada de Ementa do julgado já analisado neste tópico no qual se reconheceu a imunidade da Companhia das Docas do Estado de São Paulo (CODESP), não sem antes afirmar que “a desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita” e que isso não acontecia no caso da entidade em questão (RE 253.472/SP).

De qualquer forma, tendo em vista as características das bancas examinadoras, tem-se que nas provas de concursos público devem ser consideradas verdadeiras assertivas que afirmem de forma descontextualizada que, para o efeito de aplicação da imunidade recíproca, “é irrelevante o exercício de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com a iniciativa privada”.

Seguindo a esteira deste raciocínio, no concurso para provimento de cargos de Procurador da República, com provas realizadas em 2013, promovido pelo Ministério Público Federal, considerou-se correta a seguinte assertiva: “O exercício simultâneo de atividades em regime de exclusividade e em regime de concorrência com a iniciativa privada, a exemplo de atividade bancária conhecida como ‘banco postal’ e venda de títulos de capitalização, não se inserindo no conceito de serviço postal – é irrelevante para a incidência da imunidade tributária”.

Além dos condicionamentos já estudados e claramente flexibilizados pela jurisprudência, nos termos explicados acima, o final do mesmo § 3.º do art. 150 da CF/1988 estatui outra restrição que tem por objetivo impedir a utilização da imunidade recíproca como mero mecanismo de elisão fiscal.

A Constituição afirma que a regra imunizante não exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.

O compromisso irretratável de compra e venda é o contrato pelo qual o promitente vendedor obriga-se a vender ao promitente comprador determinado imóvel, pelo preço, condições e modo combinados, outorgando-lhe a escritura definitiva assim que ocorrer o adimplemento da obrigação.

O contrato é comumente celebrado entre construtoras (promitentes vendedoras) e particulares (promitentes compradores). Nessa situação, como há apenas um compromisso (mesmo que irretratável), o imóvel continua sendo propriedade da construtora, de modo que o IPTU contra ela é lançado. Normalmente, o promitente comprador paga o imposto por ter se comprometido a isso no contrato assinado, mas o sujeito passivo, repita-se, é a promitente vendedora.

Imagine-se, agora, que seja celebrado um compromisso irretratável de compra e venda em que aparecem como promitente vendedor um ente imune (o Estado do Ceará, por exemplo) e como promitente comprador um particular.

O Ceará é ente imune, e o imóvel lhe pertence até o total cumprimento do compromisso e registro da transferência no cartório. Por isso, se não fosse o dispositivo constitucional ora estudado, o promitente comprador estaria livre do pagamento de qualquer imposto sobre o imóvel.

Perceba-se que a restrição em questão impede que a celebração de tais compromissos entre particulares e entes imunes sirva, tão somente, como mecanismo para se fugir à tributação.

Na esteira deste entendimento, o STF, mesmo na vigência do ordenamento constitucional anterior, editou a Súmula 583, cujo teor é abaixo transcrito:

STF – Súmula 583 – “Promitente comprador de imóvel residencial transcrito em nome de autarquia é contribuinte do imposto predial territorial urbano”.

2.13.4.2 A imunidade tributária religiosa

O legislador constituinte originário vê, inserido no poder de tributar, o poder de subjugar. Por isso é que, da mesma forma que a imunidade recíproca protege a autonomia dos entes federados, a imunidade religiosa impede que o Estado se utilize do poder de tributar como meio de embaraçar o funcionamento das entidades religiosas.

Como a liberdade de culto é direito individual expressamente consagrado (art. 5.º, VI, da CF/1988), e a imunidade religiosa é uma das garantias que protege tal direito, ambos estão protegidos por cláusula pétrea.

Também aqui a imunidade é aplicável exclusivamente aos impostos, não sendo extensiva, por exemplo, às contribuições sindicais (RE 129.930).

É interessante perceber que o legislador constituinte originário, ao proibir os entes federados de instituir impostos sobre os templos de qualquer culto (CF, art. 150, VI, b), disse menos do que efetivamente queria dizer.

A afirmação baseia-se na distinção entre o templo (prédio fisicamente considerado) e a entidade religiosa, com todas as atividades que lhe são inerentes. Se a imunidade fosse tão somente do templo, estaria impedida apenas a cobrança dos impostos que incidissem sobre a propriedade do imóvel em que está instalado o templo (IPTU ou ITR). Entretanto, nada impediria a cobrança, por exemplo, do imposto de renda sobre as oferendas ou do imposto sobre serviços relativo à celebração de casamentos.

Vista a questão sob o prisma teleológico, há de se concordar que se o objetivo da imunidade era evitar a submissão da entidade religiosa ao Estado, a proteção teria que abranger todo o patrimônio, todas as rendas e todos os serviços destas entidades.

Aliás, se a regra imunizante for analisada em conjunto com o § 4.º do mesmo art. 150 da CF/1988, a conclusão há de ser a mesma, pois este dispositivo afirma que as imunidades expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

A citada alínea b não fala exatamente numa “entidade”, fala em “templos de qualquer culto”, o que demonstra que o legislador tinha por objetivo imunizar não apenas o templo, mas a própria entidade religiosa.

Neste ponto, o entendimento do STF é pacífico, conforme demonstra o seguinte excerto:

“Instituição religiosa. IPTU sobre imóveis de sua propriedade que se encontram alugados. A imunidade prevista no art. 150, VI, b, CF, deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços ‘relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas’. O § 4.º do dispositivo constitucional serve de vetor inter-pretativo das alíneas b e c do inciso VI do art. 150 da CF. Equiparação entre as hipóteses das alíneas referidas” (STF, Tribunal Pleno, RE 325.822/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 18.12.2002, DJ 14.05.2004, p. 33).

Do trecho transcrito também se pode extrair uma conclusão muito importante. O Supremo Tribunal Federal entende que se um imóvel que pertence a ente imune é alugado, não deixa de estar vinculado às finalidades essenciais do ente, não perdendo a imunidade.

Como se verá na análise da imunidade das entidades de assistência sem fins lucrativos, a Suprema Corte exige apenas que os rendimentos obtidos com o aluguel do imóvel revertam para as finalidades essenciais da instituição. Obedecida esta regra, tanto o imóvel permanece imune ao IPTU quanto os rendimentos advindos do aluguel são imunes ao IR.

O raciocínio é, portanto, idêntico para qualquer ente imune que esteja sujeito à necessidade de manutenção de patrimônio, renda e serviços vinculados a suas finalidades essenciais (só quem está livre da restrição são a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios).

Ressalte-se, porém, que é do ente imune, e não do fisco, o ônus da prova da relação existente entre o patrimônio, a renda e os serviços e as finalidades essenciais da entidade. Dessa forma, se a entidade não conseguir comprovar a vinculação, passa a se sujeitar à tributação como os demais contribuintes.

Em julgado mais recente, o STF, reiterando sua tendência de dar interpretação extensiva à regra ora estudada, decidiu que a imunidade dos templos de qualquer culto é aplicável aos cemitérios que funcionem como extensões de entidades religiosas, não tenham fins lucrativos e se dediquem exclusivamente à realização de serviços religiosos e funerários. Seguindo esta linha, o Tribunal afastou a pretensão do Município de Salvador de cobrar IPTU sobre a área em que funciona cemitério pertencente à Igreja Anglicana.

Registre-se que, nas razões constantes do voto condutor do julgamento, ficou expressamente asseverado que não se aplica a imunidade religiosa aos cemitérios instituídos por particulares com manifesta finalidade lucrativa. Nas palavras do Relator, “a pessoa jurídica, que também explora economicamente o terreno com a comercialização de jazigos, também demonstra capacidade contributiva e finalidade não religiosa e, por fim, a não tributação implica risco à livre concorrência, à livre iniciativa e à isonomia” (RE 578.562, Rel. Min. Eros Grau, 21.05.2008).

2.13.4.3 A imunidade tributária dos partidos políticos, sindicatos de trabalhadores e entidades educacionais e assistenciais sem fins lucrativos

A imunidade tributária conferida aos partidos políticos e às fundações por eles mantidas é corolário do Estado Democrático de Direito e assegura o pluralismo político, ao evitar que o Estado use do poder de tributar como pretexto para subjugar partidos políticos cujas concepções contrariem aquelas adotadas por quem esteja no exercício do poder.

Ao imunizar as entidades sindicais dos trabalhadores, o legislador constituinte quis proteger a liberdade de associação sindical estatuída no art. 8.º da Magna Carta. Perceba-se, contudo, que a proteção somente beneficia os sindicatos de trabalhadores, talvez por estes se encontrarem no lado normalmente mais fraco da relação trabalhista. Os sindicatos de empregadores (patronais) não são, portanto, beneficiários da regra imunizante.

As entidades educacionais e assistenciais sem fins lucrativos também estão protegidas, desde que atendam os requisitos estipulados em lei, conforme exigência expressa do final do art. 150, VI, c, da CF.

O fato de a norma constitucional depender de regulamentação legal não pode levar à conclusão de que o benefício previsto seja uma isenção e não uma imunidade. O que acontece neste caso é que a imunidade foi estipulada em norma constitucional de eficácia limitada, mas, editada a norma que a Constituição reclama, o não pagamento de impostos sobre patrimônio, renda e serviços decorrerá da eficácia que a lei regulamentadora conferiu à norma constitucional. Assim, é lícito afirmar que a regulamentação torna possível a aplicação da imunidade prevista.

Como a lei editada estará regulando uma limitação constitucional ao poder de tributar (imunidade), será necessariamente complementar, por conta da exigência constante do art. 146, II, da CF/1988.

Nessa linha o posicionamento do STF afirmando o seguinte (grifou-se):

“Conforme precedente no STF (RE 93.770, Muñoz, RTJ 102/304) e na linha da melhor doutrina, o que a Constituição remete à lei ordinária, no tocante à imunidade tributária considerada, é a fixação de normas sobre a constituição e o funcionamento da entidade educacional ou assistencial imune; não, o que diga respeito aos lindes da imunidade, que, quando susceptíveis de disciplina infraconstitucional, ficou reservado à lei complementar” (STF, Tribunal Pleno, ADI-MC 1.802/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 27.08.1998, DJ 13.02.2004, p. 10).

Não se trata de uma exceção à regra de que a lei complementar só é exigível quando a Constituição expressamente a requer. Na realidade, o que ocorre neste caso é que a lei complementar não foi expressamente exigida no dispositivo que pediu a regulamentação (art. 150, VI, c), mas o foi em outra parte do texto constitucional, qual seja o inciso II do art. 146 da Carta Maior.

Atualmente, quem faz o papel da lei complementar reguladora da imunidade é o art. 14 do Código Tributário Nacional. Nos precisos termos do dispositivo, são os seguintes os requisitos para que as entidades em questão gozem da imunidade:

a) não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título;

b) aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

c) manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

Se a entidade deixar de cumprir qualquer dos requisitos, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício, conforme prevê o § 1.º do mesmo art. 14 do CTN. No âmbito federal, o art. 32 da Lei 9.430/1996 estabelece os procedimentos de fiscalização a serem adotados para a suspensão de imunidade nos casos objeto de exame, sendo assegurado à entidade o direito à impugnação do ato declaratório de suspensão do benefício.

Não se deve confundir ausência de fim lucrativo com proibição de obtenção de superávit financeiro. Toda entidade que se pretenda viável e pense em crescimento deve se esforçar para que suas receitas superem suas despesas. O que não pode acontecer, sob pena de configuração de finalidade lucrativa, é a distribuição de excedentes entre os sócios, diretores, gerentes ou quaisquer outras pessoas.

Seguindo esta linha de raciocínio, inclusive com maior rigidez, a Lei Complementar 104/2001 alterou o primeiro requisito e, no ponto em que se proibia a distribuição de qualquer parcela do patrimônio ou das rendas, a título de lucro ou participação no resultado, passou-se a proibir que a mesma distribuição se fizesse a qualquer título.

O STF reconhece como protegidas pela imunidade as escolas de ensino profissionalizantes mantidas pelos serviços sociais autônomos, como são os casos do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI (RE 235.737).

A exemplo do que foi discutido quando da análise da imunidade religiosa (item 2.13.4.2), o Tribunal Constitucional tem sido bastante flexível quanto ao requisito de manutenção do patrimônio, renda e serviços das instituições imunes vinculados às suas finalidades essenciais.

Segundo a jurisprudência pacífica da Corte, o fato de a entidade utilizar seu patrimônio em atividade que gere renda e, a rigor, não se enquadrar nas suas finalidades essenciais, não afasta a imunidade, desde que os recursos obtidos sejam destinados a tais finalidades essenciais.

Assim, o reinvestimento dos recursos obtidos com a exploração patrimonial garante o vínculo que a Constituição exige entre o patrimônio e as finalidades da entidade.

Nessa situação estão, a título de exemplo, os rendimentos obtidos com o aluguel do imóvel ao particular (RE 390.451-AgR) e aqueles obtidos com a exploração do serviço de estacionamento (RE 144.900) em imóvel pertencente a ente imune. Nos dois casos, nem se pode cobrar imposto sobre a propriedade do imóvel (IPTU ou ITR), nem imposto sobre a renda gerada pela atividade desenvolvida.

No que concerne ao aluguel de imóvel integrante do patrimônio de entidade imune, o entendimento do STF foi cristalizado na Súmula 724, cujo teor é o seguinte:

STF – Súmula 724 – “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades”.

Mesmo quando as atividades desenvolvidas pela entidade imune se afastam ainda mais daquelas que, numa interpretação mais restrita, poderiam ser consideradas essenciais, o STF, sempre ressaltando o objetivo de preservar, estimular e proteger as entidades, entende presente a imunidade.

A título de exemplo, o Tribunal considerou que não era alheia à finalidade filantrópica de entidade de assistência social a utilização de imóvel como clube para fins de recreação e lazer dos funcionários da instituição. Afirmou-se expressamente “que o emprego do imóvel para tais propósitos não configura desvio de finalidade em relação aos objetivos da entidade filantrópica” (RE 236.174/SP, Rel. Min. Menezes Direito, 02.09.2008).

Também demonstrando uma tendência de interpretação extensiva do conceito de atividade essencial, o Tribunal entendeu aplicável a imunidade nos casos de manutenção por entidade beneficente de uma livraria em imóvel de sua propriedade (RE 345.830) e da venda realizada por serviço social autônomo (SESC) de ingressos de cinema ao público em geral (AI 155.822-AgR).

Os casos são interessantes porque tratam de situações em que a entidade imune desempenhou atividade que acaba por concorrer com pessoas jurídicas de direito privado sujeitas ao pagamento do imposto de renda e dos impostos sobre a propriedade.

Mas o caso mais marcante em que o STF deu prevalência ao instinto protetivo da imunidade sobre a igualdade de condições entre os concorrentes no mercado foi no julgamento do RE 186.175-Edv-ED. Na decisão, solucionando divergência entre a 1.ª e a 2.ª Turmas, a Corte Suprema entendeu que a venda de bens de entidade imune não se sujeita ao ICMS.

O ICMS é tributo indireto. Todo o seu ônus econômico-financeiro é transferido para o consumidor que, ao pagar o preço da mercadoria, paga também o valor do imposto que naquele preço se acha embutido.

Para alguns, como a entidade imune, ao vender a mercadoria, não sofre qualquer encargo direto no seu patrimônio, a venda não estaria abrangida pela imunidade. O STF, na contramão desse raciocínio, entendendo que a não aplicação da imunidade acabaria por onerar os preços praticados pelas entidades assistenciais, diminuindo-lhes a competitividade do mercado, reconheceu que as vendas estariam inseridas dentro do contexto da regra protetiva.

Aqui um importantíssimo alerta. Nos casos diametralmente opostos, em que o adquirente imune acaba por sofrer o encargo relativo ao tributo indireto, o STF não tem reconhecido como aplicável o benefício da imunidade. O Tribunal teve a oportunidade de analisar a matéria ao se debruçar sobre um caso em que o Serviço Social da Indústria – SESI invocou a imunidade tributária para se livrar do dever de pagar o ICMS relativo à aquisição de feijão vendido por contribuinte localizado no Estado de São Paulo. Como é consabido, se um comerciante vende determinada mercadoria, ocorre o fato gerador do ICMS, cujo sujeito passivo (contribuinte) é o alienante. No entanto, nos termos da legislação do Estado de São Paulo, cumpria ao adquirente (SESI), na condição de responsável tributário, fazer o recolhimento do imposto (a questão relativa à dicotomia contribuinte/responsável é devidamente aprofundada no item 5.7.2 desta obra). Ora, conforme visto, mesmo em se tratando de tributo indireto (como é o caso do ICMS), o STF reconhece a aplicação da imunidade em benefício do contribuinte de direito (comerciante) e não em favor do contribuinte de fato (adquirente, que sofre o encargo do tributo). No entanto, no caso ora analisado, o STF afirmou ser irrelevante investigar quem suportaria a carga tributária para estabelecer o alcance da imunidade, “na medida em que existiria um contribuinte de direito, que seria o produtor-vendedor, descabendo estender-lhe o benefício, se ele não gozar da imunidade” (STF, 2.ª Turma, RE 202.987/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 30.06.2009, DJe 25.09.2009, p. 1.021). Assim, foi mantida a obrigação do SESI de recolher, como responsável tributário, o ICMS cujo contribuinte era determinado comerciante. Perceba-se, por conseguinte, que o ente imune pode ser legalmente nomeado responsável pelo pagamento de tributo, existindo, inclusive, hipóteses em que, na prática, ele acabará sendo onerado por tal gravame.

Em suma, devem ser diferenciadas as seguintes situações:

a) Se o contribuinte de direito goza de imunidade pessoal, tem-se por aplicável o benefício constitucional mesmo nos casos em que o encargo econômico do tributo iria naturalmente recair sobre outra pessoa (contribuinte de fato). Ver STF, Tribunal Pleno, RE 186.175-Edv-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 23.08.2006, DJ 17.11.2006, p. 48.

b) Mesmo que o contribuinte de fato goze de imunidade pessoal, o benefício não será aplicável no que concerne às hipóteses em que o tributo tenha como contribuinte de direito uma pessoa não imune. Nestes casos, não há qualquer vedação a que o ente imune seja nomeado responsável pelo pagamento do tributo devido, podendo até mesmo vir a assumir o encargo econômico da exação. Ver STF, 2.ª Turma, RE 202.987/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 30.06.2009, DJe 25.09.2009, p. 1.021.

Uma outra controvérsia importante sobre a matéria refere-se ao enquadramento das entidades fechadas de previdência social privada dentro do conceito de entidade assistencial sem fins lucrativos, para fins de reconhecimento de imunidade tributária.

O primeiro aspecto a ser destacado é que os planos de previdência privada aberta – aqueles que qualquer pessoa pode contratar junto a uma instituição financeira – indiscutivelmente possuem finalidade lucrativa, não estando protegidos por imunidade.

A dúvida aparece no que concerne àquelas instituições costumeiramente denominadas de “fundos de pensão”. São instituições cujos beneficiários são parte de um grupo determinado de pessoas, normalmente os empregados de uma certa empresa ou de um conjunto de empresas.

O objetivo da instituição é complementar os proventos da aposentadoria que o regime geral de previdência social pagará aos beneficiários do sistema, quando inativados. Tais entidades fechadas de previdência privada não têm fins lucrativos e, em sua maioria, conseguem cumprir os requisitos estipulados no já mencionado art. 14 do Código Tributário Nacional.

Um aspecto, porém, deve ser levado em consideração. A Constituição Federal, ao traçar as diretrizes da seguridade social, afirma que esta compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (CF, art. 194).

Percebe-se claramente que previdência social e assistência social são, no entender do legislador constituinte, coisas distintas, cujo ponto de confluência é o fato de fazerem parte de um sistema maior, o de seguridade social.

Reforçando a existência de diferença conceitual, a Constituição Federal, mais à frente, estipula o caráter contributivo da previdência social (art. 201) e o caráter não contributivo da assistência social (art. 203). De maneira mais clara, só tem acesso aos benefícios da previdência social quem com ela contribui; já a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social.

Se o legislador vê como realidades distintas assistência e previdência, deve-se entender que há relevância no fato de o art. 150, VI, c, da Magna Carta ter imunizado expressamente as entidades de assistência social, sem fazer qualquer referência às entidades de previdência social ou ao termo mais genérico “seguridade social”.

Assim, seguindo à risca o dispositivo constitucional, o STF entende que a imunidade só abrange as entidades de assistência social, e não as previdenciárias.

Há de se ressaltar, entretanto, que a Corte Maior entende que nada impede que uma entidade cujo objetivo é assegurar aos filiados uma complementação dos benefícios pagos pela previdência oficial (INSS) seja considerada assistencial. Para chegar a tal conclusão, o Tribunal partiu da diferenciação essencial entre previdência e assistência social no tocante ao financiamento dos sistemas.

As entidades fechadas de previdência privada são mantidas com contribuições. Normalmente são vertidas ao sistema contribuições de dois grupos de pessoas:

a) o patrocinador, que é a entidade ou grupo de entidades cujos empregados podem se filiar ao sistema (como exemplo, o Banco do Brasil é o patrocinador da Previ, o “fundo de pensão” dos empregados do Banco);

b) os beneficiários do sistema (no exemplo citado, os empregados do Banco do Brasil).

Nesses casos, se percebe nitidamente o caráter contributivo e, portanto, previdenciário (não assistencial) do sistema. Não há que se falar em imunidade.

No entanto, existem alguns casos raros de entidades fechadas de previdência privada que constituem um verdadeiro presente do empregador (patrocinador) ao empregado (beneficiário), pois só aquele verte contribuições ao sistema. Como o filiado não precisa contribuir para receber os futuros benefícios, o Supremo Tribunal Federal considera que o caráter do sistema é assistencial e a entidade é imune.

Um raro exemplo dessa segunda situação é a COMSHELL – Sociedade de Previdência Privada, fundo de pensão dos empregados da Shell Brasil e da ICOLUB (fábrica de lubrificantes da empresa). A entidade foi considerada imune nos autos do RE 259.756, cuja Ementa ficou assim redigida:

“Imunidade – Entidade fechada de previdência privada. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reservas, o fato de mostrar-se onerosa a participação dos beneficiários do plano de previdência privada afasta a imunidade prevista na alínea c do inciso VI do art. 150 da CF. Incide o dispositivo constitucional, quando os beneficiários não contribuem e a mantenedora arca com todos os ônus. Consenso unânime do Plenário, sem o voto do ministro Nelson Jobim, sobre a impossibilidade, no caso, da incidência de impostos, ante a configuração da assistência social” (STF, Tribunal Pleno, RE 259.756/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 28.11.2001, DJ 29.08.2003, p. 21) (grifou-se).

O entendimento histórico do STF deu ensejo à edição da Sumula 730, cujo teor é abaixo transcrito:

STF – Súmula 730 – “A imunidade tributária conferida a instituições de assistência social sem fins lucrativos pelo art. 150, VI, c, da Constituição, somente alcança as entidades fechadas de previdência social privada se não houver contribuição dos beneficiários”.

Ressalte-se que a Constituição Federal, no seu art. 202, § 3.º, veda o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.

Assim, as entidades de previdência privada que tiverem como patrocinadores os entes políticos e suas entidades da administração indireta jamais serão beneficiadas pela imunidade tributária das entidades assistenciais, pois se o patrocinador estatal não pode contribuir com um montante maior que aquele a cargo do beneficiário, também não pode, por óbvio, contribuir sozinho.

A decisão foi, portanto, uma grande derrota impingida aos chamados “fundos de pensão das estatais”.

2.13.4.4 A imunidade tributária cultural

No seu art. 150, VI, d, a CF/1988 proíbe os entes federados de instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.

A imunidade visa a baratear o acesso à cultura e, por facilitar a livre manifestação do pensamento, a liberdade de atividade intelectual, artística, científica e da comunicação e o acesso à informação, todos direitos e garantias individuais constitucionalmente protegidos (CF, art. 5.º, IV, IX e XIV), configura, também, cláusula pétrea.

Das imunidades previstas no inciso VI do art. 150 da CF, esta é a única puramente objetiva, de forma a impedir tão somente a cobrança dos impostos incidentes diretamente sobre os livros, jornais, periódicos e sobre o papel destinado a sua impressão.

Assim, por exemplo, como o objeto livro é imune, não se cobra ICMS quando este sai do estabelecimento comercial, nem IPI quando sai da indústria, nem II quando é estrangeiro e ingressa no território nacional; entretanto, como o sujeito livraria não é imune, deve pagar IR pelos rendimentos que obtém com a venda dos livros, bem como o IPTU com relação ao imóvel de que é proprietária. Nessa linha, a jurisprudência pacífica do STF, conforme demonstra o excerto abaixo transcrito:

“IPMF. Empresa dedicada à edição, distribuição e comercialização de livros, jornais, revistas e periódicos. Imunidade que contempla, exclusivamente, veículos de comunicação e informação escrita, e o papel destinado a sua impressão, sendo, portanto, de natureza objetiva, razão pela qual não se estende às editoras, autores, empresas jornalísticas ou de publicidade — que permanecem sujeitas à tributação pelas receitas e pelos lucros auferidos. Consequentemente, não há falar em imunidade ao tributo sob enfoque, que incide sobre atos subjetivados (movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira)” (STF, 1.ª T., RE-ED 206.774/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 04.04.2000, DJ 09.06.2000, p. 30).

Ao se afirmar que o principal objetivo da imunidade em discussão é baratear o acesso à cultura, abre-se espaço para a discussão sobre a possibilidade de diferenciar os livros, jornais e periódicos quanto ao conteúdo, de forma a reconhecer a imunidade apenas às publicações cujas informações veiculadas possuíam relevante valor didático ou artístico.

A possibilidade não existe. Não é lícito ao intérprete restringir direitos ou garantias conferidas de forma irrestrita pelo legislador constituinte. Raciocinando assim, o STF afastou qualquer possibilidade de aferimento do valor cultural das publicações com o objetivo de conferir-lhes ou não imunidade, visto que esta é assegurada irrestritamente pela Constituição Federal. Nessa linha, o seguinte excerto (grifou-se):

“‘Álbum de figurinhas’. Admissibilidade. A imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação. O Constituinte, ao instituir esta benesse, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. Não cabe ao aplicador da norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil” (STF, 2.ª T., RE 221.239/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 25.05.2004, DJ 06.08.2004, p. 61).

Por configurarem, no entender do STF, um “veículo de transmissão de cultura simplificado”, as apostilas também estão protegidas pela imunidade (STF, 2.ª T., RE 183.403/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 07.11.2000, DJ 04.05.2001, p. 35).

Apesar de a qualidade cultural da publicação não ser relevante para o efeito do reconhecimento da imunidade, o Supremo Tribunal Federal entende que, por não poderem ser considerados como destinados à cultura e à educação, os encartes com exclusiva finalidade comercial, mesmo que inseridos dentro de jornais, não estão protegidos pela imunidade (STF, 1.ª T., RE 213.094/ES, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 22.06.1999, DJ 15.10.1999, p. 23). Ressalte-se, porém, que a presença de propaganda no corpo da própria publicação, sendo dela inseparável, não lhe retira a imunidade, pois ajuda a financiar a empresa jornalística, diminuindo o preço da publicação, o que, afinal, está em plena consonância com o objetivo da própria norma constitucional.

Seguindo a mesma ideia, o STF decidiu: “O fato de as edições das listas telefônicas veicularem anúncios e publicidade não afasta o benefício constitucional da imunidade. A inserção visa a permitir a divulgação das informações necessárias ao serviço público a custo zero para os assinantes, consubstanciando acessório que segue a sorte do principal” (STF, 2.ª T., RE 199.183/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 17.04.1998, DJ 12.06.1998, p. 67).

Para a produção de um livro, de um jornal ou um periódico podem ser necessários vários materiais, como tinta, cola, linha, papel. Destes insumos, o texto expresso do art. 150, VI, d, da CF/1988 somente protege o papel destinado à impressão das publicações.

O Supremo Tribunal Federal historicamente não tem dado uma interpretação elástica ao dispositivo, entendendo que somente se aplica ao papel e aos materiais com ele relacionados, como “papel fotográfico, inclusive para fotocomposição por laser, filmes fotográficos, sensibilizados, não impressionados, para imagens monocromáticas e papel para telefoto”, não se aplicando, por exemplo, à “tinta para jornal” (STF, 2.ª T., RE 273.308/SP, Rel. Min. Moreira Alves, j. 22.08.2000, DJ 15.09.2000, p. 132).

Na mesma linha, o Tribunal editou a Súmula 657 afirmando que “a imunidade prevista no art. 150, VI, d, da CF abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos”.

Por também se constituírem em material assimilável a papel, o STF considerou imunes os filmes destinados à produção de capas de livros, visto que o material “se integra no produto final – capas de livros sem capa dura” (STF, 2.ª T., RE 392.221/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 18.05.2004, DJ 11.06.2004, p. 16).

Faz-se necessário registrar, no entanto, que, em abril de 2011, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal numa apertada votação (3 × 2) entendeu que a imunidade cultural abrange peças sobressalentes para equipamentos de preparo e acabamento de chapas de impressão offset para jornais. No julgado, afirmou-se que “a imunidade tributária conferida a livros, jornais e periódicos abrange todo e qualquer insumo ou ferramenta indispensável à edição de veículos de comunicação”.

Tratar-se-ia de uma verdadeira quebra de paradigma, se não fosse a decisão de apenas uma Turma e proferida mediante um placar apertadíssimo. Não se pode – ao menos por enquanto – afirmar que houve uma evolução jurisprudencial do STF no sentido de conferir uma exegese ampliativa à imunidade cultural. Aos que se preparam para provas de concurso público, aconselha-se conhecer do precedente e dos seu óbvios fundamentos (facilitar a circulação de cultura desonerando as publicações), mas não tratá-lo como jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal. De qualquer forma, pela importância do julgado, transcreve-se a sua Ementa (RE 202.149/RS):

“Constituição Federal. Extraia-se da Constituição Federal, em interpretação teleológica e integrativa, a maior concretude possível. Imunidade – ‘livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão’ – artigo 150, inciso VI, alínea ‘d’, da Carta da República – inteligência. A imunidade tributária relativa a livros, jornais e periódicos é ampla, total, apanhando produto, maquinário e insumos. A referência, no preceito, a papel é exemplificativa e não exaustiva.”

Sempre foi bastante controversa a questão relativa à possibilidade de extensão da imunidade cultural aos livros, jornais e periódicos publicados em meio eletrônico (CD-ROM, por exemplo). A maioria da doutrina entende que publicações em meio eletrônico, por também difundirem cultura, estariam abrangidas pela imunidade. Esta corrente alega que a menção constitucional ao “papel destinado a sua impressão” não restringe o benefício apenas ao livro em papel, até porque a inexistência de menção expressa a outros meios de divulgação – principalmente eletrônicos – decorre do fato de que, à época da elaboração da Constituição Federal de 1988, esses meios não eram tão difundidos como atualmente.

Este último argumento, entretanto, tem sido afastado com base numa interpretação histórica da norma imunizante. Quando da elaboração da Constituição Federal de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte teve a oportunidade de apreciar projeto que estendia a imunidade a outros meios de difusão de cultura, e expressamente optou por rejeitar tal redação, o que demonstra não ter sido a falta de conhecimento, mas sim o desejo de imunizar apenas o meio papel, que resultou na redação final dada ao dispositivo constitucional em discussão.

No âmbito do STF, os posicionamentos não eram muito claros, mas pareciam apontar no sentido de tratar a divulgação eletrônica mais como software do que como livro.

Como exemplo, é possível citar interessante decisão monocrática, da lavra do Ministro Eros Grau, versando sobre caso em que determinado contribuinte paulistano ajuizou ação tentando ver reconhecida imunidade sobre livros eletrônicos, sem a cobrança quer do ICMS estadual, quer do ISS municipal. O Tribunal de Justiça de São Paulo deu razão ao contribuinte, afirmando que a publicação eletrônica estava protegida pela imunidade do art. 150, VI, d, da CF/1988.

Recorreram do acórdão do TJSP tanto o Município de São Paulo (que achava que deveria ser cobrado o ISS, pois o software seria serviço e não mercadoria) quanto o Estado de São Paulo (que achava que o livro eletrônico era mercadoria, não imune).

O Ministro Eros Grau, entendendo que a produção e comercialização em série do software acaba por caracterizá-lo como mercadoria, deu razão ao Estado de São Paulo, não reconhecendo, portanto, a imunidade.

Transcreve-se a decisão (grifou-se):

“Decisão: Interpuseram recursos extraordinários o Município de São Paulo e a Fazenda do Estado de São Paulo contra decisão do Tribunal a quo, que em sede de embargos infringentes entendeu ser o pleito contido na inicial procedente – declaração de inexistência de relação jurídica entre os recorrentes que os autorizem a exigir ICMS e/ou ISS sobre a veiculação de informações na forma de CD-ROM – modificando o entendimento adotado em segunda instância, para declarar que na hipótese não há de se falar em nenhum dos supracitados impostos, mas em produto favorecido pela imunidade tributária prevista no art. 150, inciso VI, letra d, da CB/1988. 2. Trata o recurso interposto pela Municipalidade de São Paulo de requerer seja afastada a imunidade concedida – porque específica para livros, periódicos, jornal ou de papel destinado a sua impressão – para fins de fazer incidir sobre o serviço o ISS, na forma do inciso III do art. 156 da CB/1988. 3. Requer, a Fazenda do Estado de São Paulo, por via extraordinária, com fundamento na alínea a do inciso III do art. 102 da CB/1988, seja assegurada a supremacia do art. 150, inciso VI, d, da CB/1988, para que a comercialização do produto CD-ROM seja onerada com o ICMS. 4. A respeito do tema, é de se verificar o julgamento do RE 176.626, do qual foi relator o Min. Sepúlveda Pertence, DJU 11.12.1998, ementado nos seguintes termos: ‘EMENTA: I. (...) II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador (software): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de ‘licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador’ matéria exclusiva da lide, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo – como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) – os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio. Ante o exposto, com fundamento no § 1.º do art. 21 do RISTF, nego provimento ao recurso extraordinário da Municipalidade de São Paulo e, com suporte no art. 557, § 1.º do Código de Processo Civil, dou provimento ao recurso da Fazenda do Estado de São Paulo” (STF, RE 285.870-6/SP, Rel. Min. Eros Grau, j. 03.12.2004, DJ 03.02.2005, p. 88).

Na segunda edição desta obra foi transcrito item constante da prova do concurso para provimento de cargos de Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás, realizado em 2007, em que o CESPE, seguindo entendimento contrário à tendência do STF analisada acima, acabou por considerar que a imunidade cultural abrangeria publicações em CD-ROM.

Contraditoriamente ao seu posicionamento anterior, o mesmo CESPE, no concurso para provimento de cargos de Procurador do Estado da Paraíba, realizado em 2008, considerou correta a seguinte assertiva: “A imunidade referente a impostos sobre livros, jornais e periódicos de papel não alcança publicações veiculadas em meios digitais, tais como DVD, CD e fitas de vídeo”.

A assertiva é por demais clara e parece bem mais condizente com a tendência demonstrada pelo STF, nos termos explanados anteriormente.

A partir do ano de 2009 surgiram decisões mais claras do Supremo Tribunal Federal expressamente afirmando que, como a mídia que dá suporte físico ao livro eletrônico (CD-ROM ou outra) não se confunde nem pode ser assimilada a papel, a imunidade não está configurada (RE 416.579/RJ).

O problema é que, nos dias atuais, o mundo passa por uma rápida disseminação dos livros em meio eletrônico (e-books), o que deve justificar uma evolução na jurisprudência da Suprema Corte, sob pena de frustrar o objetivo que presidiu a elaboração da regra imunizante ora estudada, qual seja, baratear a difusão da cultura e do pensamento. Ao que parece, o mais adequado seria entender que o livro, o jornal e o periódico são imunes, não importando a forma de apresentação. Se for adotada a forma tradicional em papel, este também será imune. Há de se separar o livro (informação) do seu suporte físico (papel, CD-ROM, e-reader etc.), de forma a imunizar todos os livros, mas apenas um suporte físico (papel). Nessa linha, a aquisição do leitor eletrônico (e-reader) não deve ser considerada imune, mas a aquisição do livro eletrônico, mediante download ou outra forma qualquer, deve ser considerada insuscetível de tributação.

Não obstante o posicionamento aqui esposado, repise-se que, em se tratando de provas de concurso público, o posicionamento a ser seguido atualmente é o de que a imunidade cultural não é aplicável às publicações em meios eletrônicos.

2.13.5 Imunidade tributária da música nacional

Introduzida pela Emenda Constitucional 75/2013 como decorrência da aprovação da denominada “PEC da Música”, a alínea “e” do art. 150, VI, da Carta Magna, proíbe a instituição de impostos sobre “fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser”.

Trata-se do que parcela da doutrina apressou-se em denominar “imunidade musical”, terminologia demasiadamente ampla, uma vez que, conforme demonstrado a seguir, a nova regra somente imuniza a música que possua alguns elementos de conexão nacional.

Na própria Exposição de Motivos da Proposta de Emenda à Constituição que resultou na EC 75 afirmou-se que a novidade atenuará sensivelmente a barreira econômica que pesa sobre o produto original, tornando-o mais acessível ao consumo, popularizando ainda mais seu acesso às classes menos privilegiadas do País. Assim, o objetivo expressamente declarado foi o combate à pirataria, o que torna bastante estranha a não extensão do benefício à música de autoria estrangeira interpretada por artista estrangeiro. Se a pirataria é algo indiscutivelmente nocivo – e não há dúvidas de que o é –, ela deveria ser combatida no Brasil igualmente, tanto nos casos em que atinge artistas e autores brasileiros, quanto naqueles em que atinge apenas os estrangeiros.

Ao que parece, quanto a este aspecto, foi mais feliz o legislador constituinte originário quando, ao imunizar livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão, o fez sem excluir as publicações estrangeiras, algo bem mais consentâneo com a ideia subjacente de propiciar a difusão da cultura e a manifestação do pensamento livres de encargos tributários.

Mesmo que se admita como legítimo o combate somente à pirataria que atinja as produções com algum elemento de conexão nacional, há o risco de a própria desoneração tributária acabar por facilitá-la. Esse efeito paradoxal poderá se verificar com a perda de parte do interesse dos órgãos de fiscalização na matéria, pois, se o produto original deixou de colaborar com os comemorados recordes de arrecadação, talvez o esforço fiscal seja canalizado para operações mais rentáveis em termos arrecadatórios. A isso se soma o fato de que a estimada redução de até 25% dos preços dos CDs, DVDs e Blu-rays, caso confirmada, ainda manterá bastante distante a diferença de preço entre o produto pirata e o original.

Paira também sobre a novidade a crítica relativa à existência de produtos de essencialidade bem mais acentuada que CDs, DVDs e Blu-rays, cuja necessidade de desoneração é bem mais premente, porém ainda não atendida pelo Poder Público, como é o caso dos medicamentos.

2.13.5.1 Detalhamento do objeto da imunidade

Para melhor compreensão da alínea “e” do inciso VI, do art. 150 da Constituição Federal, convém desmembrá-la em tópicos. Assim, é vedado aos entes federados instituir impostos sobre:

– Fonogramas e videofonogramas musicais;

O art. 5.º, IX, da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) conceitua fonograma como “toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual”. Assim, de maneira simplificada, pode-se considerar como “fonograma musical” o arquivo contendo música.

Apesar da inexistência de definição legal, podemos considerar como “videofonograma musical o arquivo contendo música e vídeo”.

Em ambos os casos, para a caracterização do arquivo como fonograma ou videofonograma musical, não se tem como relevante a sua apresentação em suporte material (CD, DVD, Blu-ray, cassete, vinil) ou sua disponibilidade e circulação mediante transferência eletrônica de dados, como os comercializados pela App Store, Google Play e assemelhados).

– Produzidos no Brasil;

A exigência de produção no Brasil é de caráter absoluto, não comportando, nos termos constitucionais, qualquer flexibilização ou alternativa, diferentemente do que ocorre quanto à composição ou interpretação, conforme será visto a seguir. Em termos menos congestionados, para gozar da imunidade, o fonograma ou videofonograma deve ser necessariamente produzido no Brasil, sem qualquer exceção.

– Contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros;

Esta exigência descaracteriza o caráter puramente objetivo que a imunidade poderia ter. É que, para imunizar determinadas coisas (fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil), exigiram-se certas características das pessoas a elas vinculadas (“nacionalidade brasileira” para o intérprete ou para o autor). Assim, por possuir requisitos objetivos e subjetivos, a imunidade pode ser classificada como mista.

Para cumprir a exigência ora estudada (requisito subjetivo), basta que o compositor ou o intérprete seja brasileiro. Dessa forma, se produzidos no Brasil, seriam protegidos pela imunidade hipotéticos fonogramas contendo: a) o intérprete brasileiro Roberto Carlos cantando “New York, New York” (composta pelos norte-americanos John Kander e Fred Ebb) e b) o irlandês Bono Vox cantando “Amor de Chocolate” (composta pelo brasileiro Naldo). Em qualquer das situações, o elemento de conexão nacional estará presente, garantindo a aplicação da regra imunizante.

– Bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham;

Essa importante regra destina-se a evitar que se instaure, a respeito da imunidade da música nacional, discussão semelhante àquela existente quanto à imunidade dos livros, jornais e periódicos (cultural). Lá o insumo “papel destinado à impressão” é imunizado em virtude de disposição expressa, mas as mídias em que são gravados em meio magnético ou óptico os livros eletrônicos têm sido indevidamente tratadas como insumos não imunizados, sendo grande a discussão sobre a imunidade do próprio livro gravado na mídia (ver tópico anterior).

No que concerne à imunidade da música nacional, a discussão não encontra eco, de forma que todos os suportes materiais (vinil, cassete, CD, DVD, Blu-ray) e arquivos digitais (vendidos por App Store, Google Play e similares) contendo fonogramas e videofonogramas imunes são também protegidos pela benesse constitucional.

– Salvo na replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser.

A ressalva final do dispositivo foi inserida na tentativa de arrefecer a insatisfação do Estado do Amazonas com o fato de que a imunidade aplicada nacionalmente retiraria a exclusividade do benefício existente na Zona Franca de Manaus. Realmente, as indústrias responsáveis pela replicação das mídias digitais somente mantêm suas sedes em Manaus, e não em locais mais próximos dos maiores centros consumidores, em virtude dos benefícios fiscais exclusivos da Zona Franca. A existência de beneficio de caráter nacional com extensão semelhante poderia, portanto, resultar em perda de postos de trabalho na Zona Franca.

Para minorar o problema, foi inserida no texto da nova alínea a ressalva ora estudada. Há de se registrar, contudo, que o Estado do Amazonas reclama que somente foi excluída da imunidade a replicação industrial, mas não a distribuição das mídias digitais, de forma que o Estado ainda corre sérios riscos de perda de postos de trabalho.

Perceba-se que a ressalva ora estudada não se aplica ao vinil, que não é mídia óptica, de forma que sua replicação industrial é abrangida pela imunidade. Sobre esse aspecto, relembramos que o Brasil sedia a única fábrica da América Latina que produz a mídia, a Polysom, em Belford Roxo/RJ.

2.13.5.2 Tributos abrangidos

Da mesma forma que comentado para as demais imunidades constantes do art. 150, VI, da Constituição Federal, deve-se atentar para o fato de que a imunidade musical somente se aplica a impostos, não impedindo a cobrança de contribuições como PIS, COFINS, CSLL etc. Além disso, por incidir sobre a renda dos agentes envolvidos com a produção, gravação, replicação, distribuição e venda dos fonogramas e videofonogramas, e não sobre estes arquivos, a incidência do Imposto de Renda não foi impedida pela nova regra.

De maneira semelhante, tendo em vista o entendimento do STF no sentido de que a imunidade cultural não impede a incidência do ISS sobre os serviços de composição gráfica voltada para a impressão de livros, jornais e periódicos (AgRg no AI 723.018), tem-se como bastante provável que a Corte entenda pela incidência do imposto sobre os serviços de contratação de estúdio, músico, mixagem, produção fonográfica e videofonográfica.

Por conseguinte, somente estão abrangidos pela imunidade os impostos que incidiriam diretamente sobre os fonogramas e videofonogramas se não fora o impeditivo constitucional. Nesta situação estão o IPI e o ICMS, que incidiriam na etapa de “prensagem” (salvo na replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser), e o ICMS, que incidiria sobre a distribuição e a venda, seja da mídia física, seja dos arquivos disponibilizados on-line. Na hipótese de exportação, também a incidência do imposto de exportação estará impedida.

2.13.6 Demais imunidades previstas na CF/1988

Além das imunidades estudadas nos itens anteriores, a Constituição Federal prevê outras, conforme apontado no quadro a seguir:

Fundamento constitucional

Objeto/Pessoa/Operação imunizados

Tributos cuja incidência é impedida

Art. 5.º, XXXIV

- Obtenção de certidões, exercício do direito de petição

Taxas em geral

Art. 5.º, LXXIII

- Ação popular, salvo comprovada má-fé

Custas judiciais (consideradas taxas pelo STF)

Art. 5.º, LXXVI

- Registro civil de nascimento e certidão de óbito, para os reconhecidamente pobres

Emolumentos (considerados taxas pelo STF)

Art. 5.º, LXXVII

- Habeas corpus, habeas data e, na forma da lei, atos necessários ao exercício da cidadania

Custas judiciais e emolumentos (considerados taxas pelo STF)

Art. 149, § 2.º, I

- Receitas decorrentes de exportação

Contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico

Art. 153, § 3.º, III

- Exportação de produtos industrializados

IPI

Art. 153, § 4.º, II

- Pequenas glebas rurais, definidas em lei, exploradas por proprietário que não possua outro imóvel

ITR

Art. 153, § 5.º c/c ADCT, art. 74, § 2.º

- Ouro definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial

Tributos em geral, salvo CPMF e IOF

Art. 155, § 2.º, X

- Exportações de mercadorias e serviços;

- Operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica;

- Prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita

ICMS

Art. 155, § 3.º

- Operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País

Impostos em geral, exceto II, IE e ICMS

Art. 156, § 2.º, I

- Transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital;

- Transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil

ITBI

Art. 184, § 5.º

- Operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária

Impostos em geral

Art. 195, II

- Rendimentos de aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social

Contribuição previdenciária

Art. 195, § 7.º

- Entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei

Contribuições para financiamento da seguridade social

Art. 226, § 1.º

- Celebração do casamento civil

Taxas em geral

Art. 85 do ADCT

- Contas-correntes de depósito especialmente abertas e exclusivamente utilizadas para operações de:

a) câmaras e prestadoras de serviços de compensação e de liquidação de que trata o parágrafo único do art. 2.º da Lei 10.214, de 27 de março de 2001;

b) companhias securitizadoras de que trata a Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997;

c) sociedades anônimas que tenham por objeto exclusivo a aquisição de créditos oriundos de operações praticadas no mercado financeiro;

- Contas-correntes de depósito, relativos a:

a) operações de compra e venda de ações, realizadas em recintos ou sistemas de negociação de bolsas de valores e no mercado de balcão organizado;

b) contratos referenciados em ações ou índices de ações, em suas diversas modalidades, negociados em bolsas de valores, de mercadorias e de futuros;

- Contas de investidores estrangeiros, relativos a entradas no País e a remessas para o exterior de recursos financeiros empregados, exclusivamente, em operações e contratos referidos nas letras “a” e “b” do item anterior.

CPMF