INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA
Sumário: 4.1 Noções gerais de interpretação – 4.2 Critérios de interpretação: 4.2.1 Interpretação quanto à fonte; 4.2.2 Interpretação quanto aos efeitos ou resultados – 4.3 Interpretação da legislação tributária no Código Tributário Nacional: 4.3.1 A interpretação necessariamente literal de determinados institutos; 4.3.2 A interpretação benigna em matéria de infrações; 4.3.3 Princípios de Direito Privado e princípios de Direito Público – 4.4 O princípio do pecunia non olet – 4.5 Integração da legislação tributária: 4.5.1 Discricionariedade interpretativa e limitações ao uso das técnicas de integração.
Interpretação é a parte da ciência jurídica que estuda os métodos e processos lógicos que visam a definir o conteúdo e o alcance das normas jurídicas. A hermenêutica jurídica estuda a teoria científica da interpretação.
Toda norma precisa de interpretação, por mais claro que seja o seu texto, não sendo correto o entendimento constante no antigo brocardo in claris cessat interpretatio (as normas claras não precisam ser interpretadas).
O perigo de afirmar que as normas consideradas claras não necessitam de interpretação é a possibilidade de o intérprete, na análise superficial de um texto, entender certas normas apenas no sentido imediato de seus dizeres, sem analisar o contexto em que se encontra o texto, suas conexões históricas, suas finalidades, entre outros aspectos relevantes.
Assim, usando um exemplo citado pelo Professor Luís Roberto Barroso, uma placa em que esteja escrito “Proibida a entrada usando sungas, maiôs, biquínis e similares”, parece conter uma regra clara, cuja interpretação é óbvia. Todavia, o sentido da norma varia de acordo com o contexto. Se a placa for afixada na porta de um restaurante próximo ao mar, a regra extraída do texto é: “Para entrar aqui, vista-se”. Já se a mesma placa for afixada numa árvore na entrada de uma praia de nudismo, a norma extraída do texto é: “Para entrar aqui, dispa-se”.
Assim, não se pode confundir o texto com a norma que se extrai do texto. O texto, claro ou ambíguo, deve ser sempre interpretado para que dele se extraia o seu exato conteúdo (a norma).
Relembre-se uma outra situação, já analisada nesta obra. No Capítulo 3, item 3.1.2, discutiu-se a correta interpretação do parágrafo único do art. 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), cuja redação é a seguinte:
“Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.
Parágrafo único. É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos”.
A norma do parágrafo único parece bastante clara: se o ente federado não cria um imposto cuja competência lhe foi atribuída, nenhum outro ente poderá lhe fazer transferências voluntárias.
Entretanto, a interpretação teleológica do dispositivo aponta para outra conclusão, a de que é requisito essencial da responsabilidade fiscal a instituição, a previsão e a efetiva arrecadação de todos os tributos economicamente viáveis da competência constitucional de cada ente político.
Afora as diferenças específicas previstas no CTN, não existe uma disciplina diferenciada de “hermenêutica jurídico-tributária”, de forma que o estudo da interpretação da legislação tributária deve partir de alguns conceitos básicos da ciência da interpretação jurídica válidos para todos os ramos do direito.
Buscando extrair o preciso conteúdo e alcance da norma, a doutrina propõe diversos critérios (métodos, elementos, técnicas) interpretativos que observam a norma sobre diferentes prismas não hierarquizados.
Assim, fala-se em interpretação literal (gramatical), sistemática, teleológica e histórica.
A interpretação literal ou gramatical leva em conta exclusivamente o rigoroso significado léxico das palavras constantes do texto legal, sem considerar qualquer outro valor. Conforme será visto adiante, o CTN exige que as normas que versem sobre determinados conteúdos sejam interpretadas literalmente.
A interpretação sistemática analisa a norma como parte de um sistema na qual está inserida, buscando a harmonia e unicidade que devem caracterizar o ordenamento jurídico, afastando antinomias (contradições). Deixa-se de olhar exclusivamente para o texto do dispositivo interpretado e se passa a analisá-lo em conjunto com todos os demais dispositivos da mesma norma e com todas as demais normas correlatas que integram o ordenamento jurídico, respeitando-se a hierarquia.
A interpretação teleológica busca conhecer o sentido da norma através do entendimento da finalidade de sua inserção no ordenamento jurídico. A norma vem ao mundo com determinado intento, determinado propósito. O intérprete deve possuir em mente os objetivos que presidiram a elaboração da norma, para atribuir-lhe o sentido que mais se coadune com tais desígnios, de forma a concretizar, no mundo dos fatos, a vontade abstrata da norma.
A interpretação histórica leva em consideração as circunstâncias políticas, sociais, econômicas e culturais presentes no momento da edição da norma. Confere-se importância ímpar à análise das exposições de motivos do projeto de lei, das discussões do parlamento e da sociedade, da evolução histórica do instituto disciplinado na norma. Assim se chega ao que o legislador pretendia dizer ao redigir o texto objeto de interpretação.
Os critérios acima estudados não são hierarquizados, de forma que nenhum se sobrepõe aos demais. Não são excludentes, pois se complementam ao permitir a análise da norma sob diversos prismas (significado léxico, harmonia com o sistema, finalidades e contexto histórico) para que se chegue ao conteúdo e alcance precisos, consentâneos com o direito.
Quanto à fonte da qual emana, a interpretação pode ser autêntica, doutrinária, judicial ou administrativa.
A interpretação é autêntica quando é realizada pela mesma autoridade responsável pela elaboração da lei interpretada.
Às vezes a interpretação é realizada no texto da mesma lei interpretada. É o caso dos dispositivos que trazem regras como “para os efeitos do art. 3.º desta lei, considera-se...”, e segue-se uma interpretação legal de um instituto citado no dispositivo referido.
Em outras oportunidades, edita-se uma “Lei 02” com o objetivo de interpretar disposições de uma “Lei 01”, anteriormente editada. É nesse caso que se fala em retroatividade da lei expressamente interpretativa, conforme estudado no capítulo anterior.
A interpretação é doutrinária quando é fruto do trabalho dos estudiosos do direito (doutrinadores) na análise das normas produzidas pelas autoridades competentes. Apesar de não ser uma interpretação de observância obrigatória, possui grande importância, pois serve como base para as demais fontes interpretativas, sendo comum que o legislador, o juiz e as autoridades administrativas fundamentem suas conclusões no posicionamento da doutrina especializada.
A interpretação é judicial quando emanada dos órgãos do Poder Judiciário (juízes e tribunais) ao analisarem os processos que lhes são submetidos. Quando as decisões se reiteram no mesmo sentido, diz-se que se formou jurisprudência. Assim, falar em jurisprudência é mais que falar em interpretação judicial. A decisão de um juiz é fruto de uma interpretação judicial. Para se falar em jurisprudência é necessário um conjunto de decisões de órgãos judiciais diversos – ou de estatura constitucional elevada – no mesmo sentido.
A interpretação é administrativa quando realizada pela administração pública no exercício de seu mister de concretizar no mundo as disposições abstratas da lei. A administração interpreta a lei por intermédio de atos gerais e abstratos ou por meio de atos individuais e concretos.
A título de exemplo, quando o Secretário-Geral da Receita Federal do Brasil edita uma instrução normativa interpretando determinada lei tributária, o ato é geral (destinado a todos que se ponham ao alcance da lei) e abstrato (versa sobre hipóteses, não sobre casos concretos). Já quando um Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil elabora um auto de infração, também interpreta administrativamente a lei; entretanto, o ato decorrente é individual (destina-se exclusivamente ao contribuinte autuado) e concreto (refere-se a fatos concretamente verificados no mundo e não a meras hipóteses).
A lei, como obra do homem, não é uma obra perfeita.
Além dessa afirmativa incontestável, há de se recordar que o parlamento não é composto necessariamente de técnicos, e tampouco de juristas. Nele estão presentes, ao menos na teoria, representantes do povo, com suas diversas formações acadêmicas, ou até mesmo ausência delas.
Entre as diversas imperfeições percebidas no produto dos trabalhos legislativos, estão os casos em que as técnicas interpretativas estudadas apontam que o texto legal escrito diz mais do que deveria, mais do que o próprio legislador intentava dizer. O problema oposto também é possível, ocorrendo quando o texto diz menos do que deveria ter dito, menos do que o legislador almejava dizer.
Nesses casos, é necessário que o intérprete faça uma verdadeira retificação (ampliação ou redução) de alcance. Nesse contexto, a interpretação, quanto aos efeitos (ou resultados), pode ser classificada como declaratória, extensiva ou restritiva.
A interpretação declaratória opera-se quando o intérprete, utilizando dos critérios estudados, conclui que há coincidência entre o que o legislador quis dizer e o que efetivamente ficou disposto no texto legal, não havendo necessidade de se fazer qualquer correção interpretativa (ampliação ou restrição) do alcance normativo.
A interpretação é extensiva quando o intérprete percebe que no texto escrito o legislador disse menos do que pretendia, deixando de abranger casos que deveriam estar sob regulação, sendo necessário ampliar o conteúdo aparente da norma, de forma a atribuir-lhe o alcance que o legislador originariamente lhe quis conferir.
A título de exemplo, o legislador constituinte originário proibiu, no art. 150, IV, da CF/1988, a utilização de tributo com efeito de confisco. Entendendo que o objetivo do legislador era evitar que o Estado, no contexto da tributação, estipulasse quaisquer exações não razoáveis, o STF interpretou extensivamente a regra, aplicando-a, também, às multas tributárias (ADI 551).
A interpretação é restritiva quando o intérprete percebe que no texto escrito o legislador disse mais do que pretendia, abrangendo casos que não deveriam estar sobre sua regulação, sendo necessário se restringir o conteúdo aparente da norma, de forma a atribuir-lhe o alcance que o legislador originariamente lhe quis conferir.
Como exemplo, tem-se a regra estatuída pelo art. 195, § 6.º, da CF, segundo o qual o princípio da noventena deve ser observado em qualquer caso de instituição ou modificação de contribuição para financiamento da seguridade social. Pela literalidade do texto, qualquer modificação estaria sujeita à noventena. Entretanto, percebendo que o intuito do legislador constituinte foi proteger o contribuinte contra mudanças que agravassem a carga tributária a que estava sujeito, o STF restringiu o alcance da norma para os casos de instituição e de majoração das citadas contribuições (ADI 1.135-9/DF).
O Código Tributário Nacional possui poucas regras específicas sobre interpretação da legislação tributária. O motivo, conforme já ressaltado, é que as regras estudadas pela hermenêutica jurídica valem para todo o direito, que, nunca é demais ressaltar, é uno, sendo a separação em ramos apenas uma conveniência didática para facilitar-lhe o estudo.
Vale dizer, o CTN só trata de situações específicas, por vezes impondo critérios ou métodos a serem aplicados de forma vinculada para a análise de determinados institutos específicos da disciplina tributária.
É princípio de hermenêutica que as exceções devem ser interpretadas estritamente, sem a possibilidade de utilização de restrições e, principalmente, de ampliações ou analogias.
O motivo é por demais óbvio. Se forem permitidas interpretações extensivas e utilização de analogias para a pesquisa do alcance das exceções, estas tenderão a suplantar a regra, o que seria uma subversão da ordem.
De uma maneira mais clara, se uma regra possui três exceções e o intérprete, por meio de analogias e extensões, abarca como exceções mais três, cinco, dez casos, a tendência é que a exceção passe a ser regra; e a regra, exceção.
Na esteira deste raciocínio, o CTN submeteu determinados institutos tributários a uma interpretação necessariamente literal. Todos se referem a situações que configuram exceções a importantes regras tributárias.
A terminologia adotada pelo Código não é das melhores, pois, ao afirmar que a interpretação de certas normas deveria ser feita literalmente, o legislador não quis afirmar ser impossível a utilização dos critérios teleológico, histórico e sistemático.
Como exemplo do afirmado, lembre-se que toda norma jurídica infraconstitucional está sujeita à aferição de sua compatibilidade com a Constituição Federal. Quando se faz controle de constitucionalidade, deixa-se de olhar para a norma como um ente isolado no mundo e passa-se a encará-la como integrante de um sistema em que absolutamente todas as normas têm que ser compatíveis com a Constituição, sob pena de invalidade.
Percebe-se, pelo exemplo citado, que toda norma deve ser interpretada também de maneira sistêmica, mesmo aquelas que o CTN afirma deverem ser interpretadas literalmente.
Na realidade, conforme explicado, o CTN quer que certas normas sejam interpretadas estritamente, sem a possibilidade de ampliações. Nesse contexto, o Código afirma, em seu art. 111, que se interpreta literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
a) suspensão ou exclusão do crédito tributário;
b) outorga de isenção;
c) dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
Os casos se referem a situações de exceção, pois a regra é que, se ocorreu o fato gerador, o crédito tributário deve ser constituído e o tributo exigido do sujeito passivo; se ocorreu infração, a penalidade deverá ser aplicada ao contribuinte.
Nos casos de suspensão da exigibilidade (art. 151 do CTN), temporariamente o tributo deixará de ser exigido. Nos casos de exclusão do crédito tributário, ou o tributo não será exigido (isenção), ou a punição não será aplicada (anistia). São exceções à regra e que devem ser interpretadas, no dizer do Código, literalmente.
A rigor, os casos de outorga de isenção configuram hipótese de exclusão do crédito tributário, sendo sua menção no inciso II apenas uma redundância.
A última hipótese versa sobre a dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias. Como se estudará em momento oportuno, tais obrigações são aquelas que não possuem conteúdo pecuniário, como, por exemplo, escriturar livros fiscais ou entregar declarações tributárias.
Ora, se a regra é escriturar livros fiscais e uma lei, por exemplo, dispensa os optantes do SIMPLES-Nacional de fazê-lo, tal exceção deve ser interpretada “literalmente”, de forma que os não optantes, mesmo que estejam na mesma situação econômico-financeira e exerçam exatamente a mesma atividade do optante, têm que proceder à devida escrituração.
Não obstante o entendimento aqui exposto, o Superior Tribunal de Justiça possui precedente afirmando a possibilidade de interpretação extensiva das hipóteses que o CTN submete à necessária interpretação literal. O caso mais relevante se verificou quando o Tribunal, analisando a lista de doenças cujos portadores têm seus proventos isentos do imposto de renda (art. 6.º, XIV, da Lei 7.713/1988), entendeu ser possível interpretar que a cegueira compreendia tanto a bilateral quanto a monocular.
Não obstante, o próprio STJ exclui a possibilidade de interpretação analógica de tais dispositivos, de forma a entender que não é viável o enquadramento da surdez na regra isentiva (REsp 1.013.060-RJ). Ora, conforme afirmado pela Corte, “a cegueira é moléstia prevista na norma, mas a surdez, não”. Fica fácil perceber que, no primeiro julgado, a Corte não ampliou o âmbito de aplicação do dispositivo além dos limites estritamente legais, apenas deu ao vocábulo cegueira um dos seus possíveis alcances literais; afinal, a lei não se refere à “cegueira bilateral”, mas simplesmente à “cegueira”.
O que aqui se aponta como proibido é a tentativa de incluir no dispositivo qualquer déficit visual que não pudesse se enquadrar em algum dos significados literais da palavra “cegueira”. Em suma, é plenamente compatível com o CTN interpretar de maneira ampla, mas dentro dos significados literalmente possíveis, os dispositivos de lei que tratem dos institutos enumerados no multicitado art. 111.
Nessa linha, pareceu andar bem a ESAF, na prova do concurso para provimento de cargos de Fiscal de Rendas do Município do Rio de Janeiro, com provas realizadas em 2010, ao considerar errado item em que se afirmava que, do disposto no art. 111, I a III, do Código Tributário Nacional, “resulta não somente uma proibição à analogia, como também uma impossibilidade de interpretação mais ampla”.
De qualquer forma, como o STJ expressamente já se referiu à possibilidade de interpretação extensiva dos dispositivos de lei que, segundo o CTN, deveriam ser interpretados literalmente (enquadrando na hipótese a analisada decisão acerca do vocábulo “cegueira”), aconselha-se aos que se preparam para provas de concurso público conhecer tal precedente.
Aqui, mais uma vez, o direito tributário penal (aquele que se refere à definição de infrações administrativo-tributárias e suas respectivas punições na esfera administrativa) sofre influência direta do direito penal. Trata-se do princípio segundo o qual, na dúvida, deve-se adotar a interpretação mais favorável à pessoa acusada do cometimento de uma infração (in dubio pro reo).
O primeiro aspecto importante a destacar é o âmbito de aplicação do princípio. A interpretação benigna aplica-se exclusivamente à lei que define infrações ou comina penalidades.
Em se tratando de lei que discipline o próprio tributo, definindo, por exemplo, o fato gerador, a alíquota, a base de cálculo ou o contribuinte, não há que se falar em interpretação mais favorável.
Se houver dúvida sobre em que posição deve ser enquadrada determinada mercadoria na tabela da Nomenclatura Comum do Mercosul – NCM, não se pode decidir pela posição que traga menor incidência tributária do II e do IPI tão somente por ser a interpretação mais benéfica.
A dúvida deve ser sanada utilizando-se dos diversos critérios interpretativos já estudados e a solução pode ser pela alíquota maior ou pela menor ou por qualquer outra intermediária.
Repise-se: não existe qualquer concepção interpretativa apriorística para se resolverem as dúvidas em direito tributário. Não são aplicáveis os brocardos “na dúvida favorecer o fisco” ou “na dúvida favorecer o contribuinte”. O certo é: “na dúvida, dirima-se a dúvida”.
Todavia, em matéria de infrações, existe a concepção apriorística ora estudada: “na dúvida, interprete-se em favor do acusado”.
Por oportuno, transcreve-se o dispositivo do CTN que contém a regra:
“Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação”.
O segundo ponto relevante é que, mesmo em se tratando de direito tributário penal, a interpretação benéfica só é aplicável em caso de dúvida. São vários os precedentes do STJ no sentido de que, “não havendo divergência acerca da interpretação da lei tributária, o art. 112 do CTN não pode ser aplicado” (STJ, 2.ª T., REsp 9.571/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 18.10.1995, DJ 20.11.1995; STJ, 1.ª T., REsp 41.928/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 24.08.1994, DJ 26.09.1994, p. 25.609; STJ, 2.ª T., REsp 178.427/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, j. 01.09.1998, DJ 07.12.1998, p. 76).
Um exemplo, definido na jurisprudência, ajuda a aclarar a afirmativa. O art. 23, parágrafo único, III, do Decreto-lei 7.661/1945 (antiga lei de falências), afirmava que não poderiam ser reclamadas na falência as penas pecuniárias por infração das leis penais e administrativas. Vários contribuintes em concordata (hoje substituída pela recuperação judicial) quiseram se livrar das multas tributárias com base no dispositivo.
Primeiro propuseram uma interpretação extensiva do dispositivo, afirmando que o legislador não queria beneficiar somente as empresas em processo de falência, mas também as concordatárias.
Com as discussões criadas, e vendo o insucesso da alegação, as concordatárias passaram a alegar que haveria dúvida no dispositivo e que, portanto, deveria ser aplicado o art. 112 do CTN, interpretando-se a então lei de falências da maneira mais favorável ao acusado.
A Primeira Seção do STJ, em 24.08.2000, no julgamento, por maioria, proferido no EREsp 111.926, firmou o entendimento de que o dispositivo legal citado não poderia, numa interpretação extensiva, ser aplicado à concordata. Asseverou-se, na ocasião, que, na concordata, a supressão da multa moratória beneficia apenas o concordatário, que já não honrara seus compromissos, enquanto na falência, a multa, se imposta, afetaria os próprios credores, quebrando o princípio de que a pena não pode passar do infrator.
Não havia, portanto, dúvida na interpretação da norma, não sendo o caso de utilização do art. 112 do CTN.
O direito tributário é ramo de direito público, estando sujeito, por conseguinte, aos princípios basilares que informam o regime jurídico publicista, quais sejam a supremacia do interesse público sobre o interesse privado e a indisponibilidade do interesse público.
O direito privado fundamenta-se em princípios diametralmente opostos, pois, nas relações entre particulares, presume-se que as partes buscam interesses privados, sendo tratadas de maneira igual pela lei (não se fala em supremacia dos interesses de nenhuma das partes). Os interesses privados são, em regra, disponíveis, sendo a indisponibilidade exceção.
Percebe-se que, apesar da unidade do direito, o privatista raciocina de maneira diferente do publicista, pois os princípios norteadores dos respectivos ramos são manifestamente opostos.
Até aí nenhuma novidade, nenhum problema. As complicações poderiam surgir nos diversos momentos em que as normas constitucionais se utilizam de conceitos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias.
Como exemplo, pode-se citar a norma constitucional que atribui competência para que os Municípios instituam o ITBI, assim redigida:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(...)
II – transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição”.
Trata-se indiscutivelmente de uma norma constitucional-tributária que define e limita a competência tributária municipal. Entretanto, a norma é redigida, do início ao fim, fazendo uso de institutos típicos de direito privado.
É o direito privado que estuda a propriedade e os seus meios de transferência, define o que é ato oneroso, o que são direitos reais, o que são bens imóveis por natureza ou por acessão física, enumera e regula os direitos reais sobre imóveis, os direitos de garantia, os casos de cessão de direito, enfim, todos os institutos citados no dispositivo transcrito são objeto de estudo do direito privado (direito civil).
Poderia o intérprete mais apressado ter dúvida sob qual enfoque o dispositivo deveria ser interpretado: sob a ótica do direito público ou sob a do direito privado.
Conforme afirma o art. 109 do CTN, os princípios gerais de direito privado devem ser utilizados para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
Em outras palavras, se o intérprete quer entender o significado de propriedade para interpretar a regra que atribui ao Município a competência para instituir o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (CF, art. 156, I), deve procurar os compêndios de direito civil.
Porém, não lhe será útil vasculhar os princípios gerais adotados pela doutrina civilista para perquirir os efeitos tributários da propriedade, pois tal atividade é levada a cabo sob outra ótica, a dos princípios de direito tributário.
As restrições não se aplicam tão somente à utilização dos princípios de direito privado para o estudo da matéria tributária, pois o direito tributário também não pode tudo nesta seara.
Quando o legislador constituinte adota determinado instituto de direito privado na regra que atribui ou limita competência tributária, imagina tal instituto conforme conhecido e definido pelos privatistas.
Admitir que o legislador tributário altere um conceito de direito privado do qual o legislador constituinte fez uso na definição ou limitação de competência tributária seria legitimar a mudança da Constituição por norma infraconstitucional.
É bem fácil entender a afirmação feita acima quando se relembra serem diferentes os conceitos de texto e de norma. O texto é composto pelos signos colocados sobre o papel. A norma é a regra de conduta extraída da leitura do texto, mediante a utilização das técnicas interpretativas.
Relembre-se o exemplo citado no início deste Capítulo. Dependendo do contexto, de um mesmo texto (“Proibida a entrada usando sungas, maiôs, biquínis e similares”) poderiam ser extraídas normas de sentidos absolutamente opostos. Assim, do texto, na entrada de um restaurante, extraía-se a norma “Vista-se”; na entrada de uma praia de nudismo, extraía-se a norma “Dispa-se”.
A norma constitucional nada mais é que o conteúdo extraído do texto constitucional, mediante a utilização das técnicas interpretativas.
Assim, se o legislador tributário edita norma em que se afirma que “para efeitos de cobrança do IPTU considera-se propriedade ...” e continua a sentença dando uma definição de propriedade diferente da lição comezinha de direito civil, não estará simplesmente mudando um conceito, estará agredindo a Constituição Federal.
Caso se admita como possível a situação aqui exemplificada, toda a Constituição Federal poderia ser alterada sem a necessidade do procedimento mais rigoroso que a define como rígida e, em situações específicas, até mesmo sem respeito às cláusulas pétreas.
Seguindo a esteira deste entendimento, o Código Tributário Nacional, no seu art. 110, afirma que lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
A rigor, a definição e limitação das competências tributárias é matéria disciplinada exclusivamente na Constituição Federal, não podendo haver inovação de conteúdo nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios, nem nas Constituições Estaduais. Em provas de concurso público, todavia, deve ser tida por correta a literalidade da lei. Assim, não se pode alterar, na legislação tributária, conceito expressa ou implicitamente utilizado nas leis máximas dos entes políticos menores ou na Constituição Federal.
A interpretação a contrario sensu é também importante, de forma que os conceitos de direito privado que não tenham sido utilizados pelas citadas leis máximas podem ser alterados pelo legislador infraconstitucional, não havendo que se falar em inconstitucionalidade neste caso. Como será visto adiante, o CTN efetivamente disciplina de maneira diferenciada diversos institutos de direito privado não utilizados na Constituição, como se pode perceber nas regras sobre transação e compensação, entre outras.
Uma controvérsia recentemente solucionada pelo Supremo Tribunal Federal exemplifica o que foi acima exposto.
A Constituição Federal previa no texto originário do art. 195, I, entre outras, uma contribuição social sobre o faturamento.
A palavra “faturamento” sempre foi entendida como referente às receitas decorrentes da venda de mercadorias e, por extensão, da prestação de serviços (operações sujeitas à fatura). Em suma, só é possível enquadrar dentro do conceito de faturamento a receita operacional, assim entendida aquela que a empresa obtém por meio de atos de compra e venda, seja de mercadorias, seja de serviços.
Não é possível, sem agredir o mínimo semântico da palavra faturamento, fazê-la compreender, por exemplo, as receitas financeiras, como os juros.
Na contramão deste raciocínio, foi editada a Lei 9.718/1998, que ampliou a base de cálculo da COFINS e do PIS, cujo art. 3.º, § 1.º, assim definia faturamento:
“Art. 3.º O faturamento a que se refere o artigo anterior compreende a receita bruta da pessoa jurídica.
§ 1.º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas”.
O Supremo Tribunal Federal falhou por tardar, mas, sete anos após a edição da Lei 9.718/1998, concluindo o julgamento de uma série de recursos extraordinários, proferiu decisão histórica, assim anunciada no Informativo 408 da Corte (transcreve-se trecho):
“O Tribunal, por unanimidade, conheceu dos recursos e, por maioria, deu-lhes provimento para declarar a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 3.º da Lei 9.718/1998. Entendeu-se que esse dispositivo, ao ampliar o conceito de receita bruta para toda e qualquer receita, violou a noção de faturamento pressuposta no art. 195, I, b, da CF, na sua redação original, que equivaleria ao de receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza, conforme reiterada jurisprudência do STF” (STF, 1.ª T., RE-ED 410.691/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.05.2006, DJ 23.06.2006, p. 52).
No entanto, desde o advento da Emenda Constitucional 20/1998, a Constituição prevê a possibilidade de criação de contribuição sobre a receita ou o faturamento (art. 195, I, “b”), de forma a tornar possível a incidência sobre a totalidade das receitas, como desejado pelo governo federal. Não obstante, a edição de uma Emenda à Constituição não tem o chamado “efeito Lázaro”, ressuscitando os mortos ou constitucionalizando o que “era inconstitucional”. Lei inconstitucional é lei natimorta, não sendo possível aplicar a teoria da recepção para receber o que não era constitucional no seu nascedouro. Foi exatamente por isso que, no excerto acima transcrito, a Suprema Corte afirmou que o citado dispositivo da Lei 9.718/1998 “violou a noção de faturamento pressuposta no art. 195, I, b, da CF, na sua redação original”.
Em respeito à decisão do STF, em 2011 o § 1.º do art. 3.º da Lei 9.718/1998 (acima transcrito) foi revogado. Já em 2013, a MP 627/2013 deu ao art. 3.º da mesma Lei (também acima transcrito) a seguinte redação: “O faturamento a que se refere o art. 2.º compreende a receita bruta de que trata o art. 12 do Decreto-Lei n.º 1.598, de 26 de dezembro de 1977”.
Para o perfeito entendimento da sistemática hoje vigente, registramos que o conceito de faturamento ao qual o novo dispositivo remete afirma que “a receita bruta das vendas e serviços compreende o produto da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços prestados” (art. 12 do Decreto-Lei 1.598/1977).
Conforme já estudado no Capítulo 1, item 1.3.3, para o direito tributário não existe relevância se a situação que teve como consequência a ocorrência do fato gerador configure ilícito, mesmo que criminal.
Naquele ponto do curso, utilizou-se como exemplo a tributação dos rendimentos oriundos de atividades ilícitas, como o tráfico de entorpecentes ou a corrupção. Nesses casos, apesar de o fato que deu origem aos rendimentos ser criminoso (“não cheirar bem”), a renda dele decorrente é sujeita ao imposto de renda (dinheiro não cheira).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Código Tributário Nacional prevê que a definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se a validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como a natureza de seu objeto ou efeitos ou dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos (CTN, art. 118).
Assim, por exemplo, os requisitos para que se considere válido um negócio jurídico sob a ótica do direito civil (agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei – CC, art. 104) são irrelevantes para se interpretar a definição legal de fato gerador.
Por isso, o próprio Código Tributário Nacional prevê, em seu art. 126, que a capacidade tributária passiva independe da capacidade civil das pessoas naturais. Percebe-se que, nos termos do Código Civil, não havendo capacidade civil, o negócio jurídico celebrado é inválido. Para o direito tributário, contudo, a falta de capacidade civil é irrelevante, pois se ocorrer no mundo dos fatos a situação definida em lei como necessária e suficiente para o nascimento da obrigação tributária (fato gerador), o tributo será cobrado.
Como visto, interpretar é perquirir o conteúdo e o alcance de determinada norma jurídica.
Entretanto, como o legislador não é Deus, a lei, sua obra, não consegue prever soluções normativas para todos os fatos que possam vir a acontecer no mundo. Surge então o problema das lacunas, situações não disciplinadas por lei, mas que precisam de uma solução a ser dada pelo direito.
Os estudiosos da ciência da interpretação discutem se efetivamente existem lacunas no ordenamento jurídico. A maioria conclui pela plenitude de tal sistema, pois mesmo quando a lei se apresenta lacunosa há a previsão, no próprio ordenamento, de como colmatar a lacuna.
A conclusão majoritária é que, vendo as normas de maneira estática, lacunas serão percebidas, mas, em sua dinâmica, as regras de integração da legislação irão garantir a plenitude do direito.
Assim, em homenagem ao princípio da plenitude do direito, o juiz está proibido de deixar de decidir os litígios que lhe são submetidos alegando que não existe lei disciplinando a matéria (proibição do non liquet), pois, nesses casos, o próprio direito lhe diz qual a providência a ser adotada.
Há de se ressaltar, porém, que não se pode confundir lacuna com os casos em que o legislador quis que determinado texto normativo abrangesse só determinadas situações e não outras. Nesses casos, o silêncio da norma deve ser interpretado como uma manifestação no sentido de que ela não deve ser aplicada a outros casos que não os previstos expressamente, pois, nas palavras do Ministro Moreira Alves, “só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloquente’ (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia” (excerto do voto proferido no julgamento, pela 1.ª Turma do STF, do RE 130.552, Rel. Min. Moreira Alves, j. 04.06.1991, DJ 28.06.1991, p. 8.907).
A regra geral básica para a solução do problema das lacunas no direito brasileiro está prevista no art. 4.º da LINDB, assim redigido:
“Art. 4.º Quando a lei for omissa o juiz decidirá o caso de acordo com: a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito”.
Seguindo o mesmo caminho, porém com uma redação mais precisa, o art. 126 do Código de Processo Civil afirma:
“Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito”.
Tratando-se de matéria tributária, contudo, a solução do problema das lacunas toma por base a regra específica – portanto prevalente – constante do art. 108 do CTN, abaixo transcrito:
“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I – a analogia;
II – os princípios gerais de direito tributário;
III – os princípios gerais de direito público;
IV – a equidade.
§ 1.º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.
§ 2.º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido”.
O dispositivo é direcionado tanto para a autoridade fiscal quanto para a autoridade judiciária que se depare com uma situação cuja solução normativa não esteja prevista expressamente.
É apresentada uma sequência taxativa e hierarquizada de técnicas aptas a solucionar o problema da omissão na legislação tributária. Em primeiro lugar, tenta-se preencher a lacuna por intermédio da analogia, só se utilizando os princípios gerais de direito tributário na hipótese de não se encontrar uma solução viável por intermédio daquela técnica, e assim por diante.
A primeira técnica da integração prevista foi a analogia.
A analogia consiste na aplicação de uma norma jurídica existente a um caso não previsto, mas essencialmente semelhante ao previsto. Em outras palavras, a regra existente não abrange explicitamente o caso concreto a ser resolvido, mas como este se assemelha com o previsto abstratamente pode desfrutar da mesma solução normativa prevista para aquele outro.
A analogia não deve ser confundida com a interpretação extensiva. Nesta, como visto no item 4.2.2, o intérprete percebe que o legislador, ao redigir o texto, disse menos do que intentava, de forma a ser necessária uma ampliação do conteúdo aparente da norma, abarcando situações aparentemente não previstas. Na analogia, a situação a ser resolvida está indiscutivelmente fora do alcance da norma, pois o legislador não pensava em tratar de tal situação ao escrever o texto, mas, em virtude de a situação imprevista se assemelhar à expressamente prevista, acaba por compartilhar com esta a mesma solução.
O fundamento da utilização da analogia é o princípio da isonomia, pois aos casos semelhantes devem-se aplicar soluções análogas. Imagine-se que, se para a situação “A” o legislador previu a solução “X”, e para a situação “B”, análoga à situação “A”, não previu qualquer solução, a solução “X” pode ser aplicada também à situação “B”, pois, provavelmente, assim faria o próprio legislador, caso fosse instado a resolver o problema.
Os professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, em seu Manual de direito tributário, propõem o seguinte exemplo:
“A legislação do IR prevê que, quando a autoridade fiscal verifica inconsistências na declaração de renda, pode notificar o sujeito passivo para prestar esclarecimentos na repartição, fixando-lhe um prazo de 20 dias para comparecimento. A legislação do ITR também prevê a possibilidade de notificar o sujeito passivo para prestar esclarecimentos relativos à declaração do ITR, mas não estabelece prazo nenhum. Nessa situação, a autoridade administrativa, ao intimar determinado sujeito passivo para prestar esclarecimentos relativos à declaração do ITR, pode fixar-lhe prazo de 20 dias para comparecimento à repartição, utilizando-se, por analogia, a legislação do IR”.
Não preenchida a lacuna por meio da analogia, deve a autoridade responsável pela aplicação da legislação tributária buscar a solução nos princípios gerais de direito tributário.
Tais princípios são aqueles específicos desse ramo de direito, como o da anterioridade, noventena, isonomia, capacidade contributiva, não confisco, liberdade de tráfego, entre outros.
Superada a possibilidade de solução da lacuna normativa pelas suas primeiras técnicas interpretativas, a autoridade deverá partir para a utilização dos princípios gerais de direito público.
Perquire-se uma solução do problema por meio das diretrizes básicas válidas para os diversos ramos do direito público (administrativo, constitucional, processual, penal). São princípios que, por vezes, têm sua importância ampliada em alguns desses ramos, mas que, dada a unicidade do direito, podem ser úteis na solução de uma lacuna normativa em quaisquer deles.
Como exemplos, podem ser citados os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado, da indisponibilidade do interesse público, da segurança jurídica, da ampla defesa, do contraditório, da unidade da jurisdição, da liberdade de exercício de trabalho, ofício ou profissão, entre outros.
Se nenhuma das três técnicas apresentadas resolver o problema, a autoridade responsável pela aplicação da legislação tributária se utilizará da equidade, procurando dar a solução mais justa para o caso concreto que lhe é apresentado.
Trata-se de uma humanização do direito positivo, que traz para a autoridade responsável um amplo grau de discricionariedade para preencher a lacuna, adequando o ordenamento jurídico – normalmente composto de normas gerais e abstratas – às especificidades de um caso concreto.
Pela análise realizada, percebe-se que a ordem estabelecida pelo CTN visa a solucionar o problema da lacuna normativa em direito tributário, sem completo abandono da rigidez que caracteriza o princípio da legalidade neste ramo da ciência jurídica.
Assim, estabeleceu-se uma rigorosa sequência hierarquizada de técnicas a ser seguida pelo intérprete, sem qualquer margem de discricionariedade que lhe permitisse valorizar mais ou valorizar menos determinada técnica ou aplicá-las conjuntamente.
O critério usado pelo legislador para consignar uma sequência de preferência entre as técnicas integrativas foi o de conferir à autoridade responsável o mínimo grau de discricionariedade possível, ampliando-o passo a passo, na medida do necessário.
Perceba-se que a discricionariedade existe na manipulação de cada técnica, jamais na escolha entre as técnicas, procedimento absolutamente vinculado.
Nesta linha, percebe-se que a analogia confere à autoridade competente para a aplicação da legislação tributária um certo grau de discricionariedade, pois há margem interpretativa na análise de semelhança entre as situações normatizadas pelo legislador e aquelas carentes de disciplinamento normativo expresso.
Entretanto, não se obtendo a solução do problema por meio da analogia, parte-se para algo que permite uma maior margem interpretativa, os princípios de direito, mas desde já restringindo a busca a princípios específicos do ramo tributário da ciência jurídica.
No passo subsequente, novamente a discricionariedade da autoridade é aumentada, uma vez que o campo de investigação dos princípios não mais se restringe a ramo jurídico específico (tributário), mas a um conjunto de ramos do direito (público).
Não resolvido o problema, o legislador tributário passa para a derradeira técnica, a que mais confere liberdade à autoridade responsável, determinando-lhe praticamente que crie a solução que lhe pareça mais justa (equidade).
Em nenhum caso se abandona por completo a legalidade, tão rígida em matéria tributária, pois, em primeiro lugar, o próprio Código proíbe que da utilização da analogia decorra a cobrança de tributo não previsto em lei (CTN, art. 108, § 1.º). Assim, por mais que uma manifestação de riqueza sem previsão de tributação se assemelhe a uma outra tributada, o tributo não pode ser cobrado.
A título de exemplo, quando um navio pesqueiro sai das águas territoriais brasileiras e captura pescados em alto-mar, ingressando novamente em território nacional (território aduaneiro), ocorre algo muito semelhante (análogo) à entrada da mercadoria estrangeira em território nacional, fato gerador do imposto de importação. Entretanto, como a mercadoria não é estrangeira, a norma não incide, e o tributo não é cobrado.
Caso a cobrança fosse realizada, haveria agressão indireta ao princípio da legalidade (CF, art. 150, I) e direta à regra restritiva ora comentada (CTN, art. 108, § 1.º).
Em segundo lugar, é também o princípio da legalidade que fundamenta a restrição contida no § 2.º do art. 108 do CTN, o qual impede que do emprego da equidade resulte a dispensa de tributo devido.
Assim, se a lei prevê a incidência tributária sobre determinado fato, não pode a autoridade fiscal, diante de considerações sobre o que seria justo no caso concreto, deixar de cobrá-lo.
Aliás, a equidade, como os demais métodos integrativos ora estudados, serve para solucionar o problema da inexistência de disposição normativa expressa, não podendo se converter num mecanismo que afaste a incidência de norma existente. Assim, se a lei que instituiu o tributo incidiu, não se pode dispensar o pagamento devido com base em equidade.
Provavelmente, o legislador positivou a regra com o objetivo de impedir manobras interpretativas conducentes a exonerações tributárias não previstas.
A título de exemplo, suponha-se que determinada incidência tributária pareça injusta no caso concreto e que o legislador não tenha criado qualquer norma isentiva para a situação. Sem a regra, o intérprete poderia pretender invocar a existência de lacuna na legislação, visando a solucioná-la por meio do manejo da equidade.
O raciocínio destoa do ordenamento tributário brasileiro por vários motivos. Em primeiro lugar, agride o princípio da legalidade (CF, art. 150, I). Em segundo, contrapõe-se à definição de tributo, que impõe a plena vinculação de sua atividade de cobrança (CTN, art. 3.º). Em terceiro, encontra impedimento na regra que submete as isenções à interpretação literal (CTN, art. 111, II). Em quarto – e não menos importante – agride a proibição ora analisada (CTN, art. 108, § 2.º).
Por fim, apesar de as restrições constantes nos parágrafos do art. 108 do CTN se aplicarem expressamente ao emprego da equidade e da analogia (raciocínio que deve ser seguido em provas objetivas de concursos públicos), o princípio da legalidade impõe que sejam observadas em qualquer caso de integração da legislação tributária.
Vale dizer, jamais se pode, com base em quaisquer das quatro técnicas integrativas da legislação tributária, previstas no art. 108 do CTN, exigir tributo não previsto em lei ou dispensar tributo legalmente previsto.