Água do monte o levou
Não foi água, não foi nada,
Foi cachaça que o matou!
Vem cá, Bitu!
Vem cá, Bitu!
Não vou lá,
Não vou lá,
Não vou lá,
Tenho medo de apanhá!
(Canção popular, cidade do Rio de Janeiro, início do século XIX, apud Los Rios Filho, O Rio de Janeiro Imperial).
Conta a tradição que Bitu foi um personagem famoso do Rio de Janeiro do início do século XIX.6 Tratava-se de um negro – se escravo, liberto ou livre, a memória popular não registrou. Morava no Morro do Castelo e vagava pelas ruas da cidade, sempre embriagado, trajando calção branco, capotão verde e chapéu de três bicos. Reza ainda a tradição que, em 1811, quando uma parte do Morro do Castelo desabou "em virtude de forte aguaceiro, um seu amigo foi arrastado pela enxurrada e morreu" (Los Rios Filho, 1946:54-55).7 A partir de então, a "gente do povo", ao ver Bitu, cantarolava os versos que servem de epígrafe a este capítulo.
Se houvesse meios de se voltar no tempo e passear pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro nos anos 30 do século XIX, provavelmente ao dobrar a primeira esquina depararíamos com algum dos famosos personagens descritos pelo Dr. José Francisco Xavier Sigaud (1835). Na Rua nova do Ouvidor "pasmaríamos", talvez, "à vista de um velho, alto, com o braço estendido fora da porta, na atitude de um mendigo, com a boca meia-aberta deixando escapar uma torrente de palavras sem nexo nem seguimento!" Em Mata-Porcos, durante o "período lunar", teríamos "ocasião de ver um infeliz a quem a razão abandona dois ou três dias em cada mês". Chamava-se João e era "um mestre d'escola apaixonado pelo estudo". Quando era tomado pelos "acessos" de loucura corria para a rua e, aos brados, ordenava "a um exército imaginário que devastasse o país". Nesse momento, os sinais da perturbação tornavam-se claramente perceptíveis em sua fisionomia, que assumia um aspecto "horrível e sinistro". Porém,
... à esta expressão sucede um sorriso estúpido, que parece pintar certa satisfação interna de sua alma. Um estado convulsivo da face e dos membros superiores, gritos agudos, assobios redobrados mudam de repente a cena. O infeliz corre pela rua, dando saltos desiguais, até que enfim cai, ou a caridade dos vizinhos o reconduz para casa. (Sigaud, 1835:7)
Prosseguindo as andanças pela cidade, poderia-se ainda encontrar a mulher que perseguia os regentes, os ministros e os juízes; o ex-secretário do governo de Buenos Aires ou o "capitão sueco, de barba longa meia branca e meia loira, de feições distintas, que coberto de farrapos circula pelas principais ruas desta cidade". É provável que topássemos a qualquer momento com o "melancólico religioso, enviado do apocalipse, que curva a cabeça e a ergue de espaço em espaço para o céu, em uma posição estática". Teríamos talvez a oportunidade de ouvir a descrição das "cenas cômicas do pobre Brigadeiro, cujos vestidos e a razão estavam tão maltratados pelo tempo" ou dos episódios "engraçados" que marcaram a existência do "músico, que com exótico vestuário percorria as ruas ... arrulando árias, e executando com trejeitos de braços partições d'orquestra". Cenas e episódios que permaneciam tão vivos na memória popular, em 1835, quanto a lembrança de "um desgraçado ator" sobre o qual existiam muitas histórias. Contava-se, por exemplo, que "depois de atravessar a cidade em uma sege, puxada a quatro, foi a São Cristóvão, e na volta se pôs a mergulhar no tanque do chafariz da Lagoa do Sentinela, nu, e com a roupa debaixo do braço". Ou que costumava desfilar pelas ruas "cortejando a todos os homens de casaca, fazendo parar o ministro de França para pedir-lhe que apresentasse seus cumprimentos a seu compadre Luiz Filippe e trincando ... uma bolacha envolvida em trinta e quatro capas de papel pardo" acabou por efetuar "um assalto em forma" na casa do referido ministro.
Presentes nas ruas movimentadas, nos arrabaldes, nos estabelecimentos públicos, nas igrejas, parece não haver dúvida de que os loucos faziam parte da paisagem urbana do Rio de Janeiro das primeiras décadas do sécu-lo XIX.8 Segundo Mello Moraes Filho, desde o princípio do século XIX, no Largo do Rócio (atual Praça Tiradentes), as "horas monótonas" eram amenizadas pelos "tipos de rua, que o habitavam ou freqüentavam, fazendo soar alegremente os guizos de suas vesânias, o porta-voz de sua loucura", entre os quais figurava, o "... incomparável Francisco Gomes de Freitas – vulgo Mal das Vinhas –, que, durante longos anos, fizera rir a este povo com as extravagâncias de suas invenções, com as incongruências de seu muito meditar" (Mello Moraes Filho, 1903:132 e 163, respectivamente).9 Comerciante sui generis, filósofo, sábio, filantropo, médico, filólogo, arquiteto, eletricista, "... sua poderosa celebração abrangia os mais dilatados domínios do saber humano...". Estabelecido no Largo do Rócio, entre a Travessa da Barreira e a Rua Espírito Santo, onde clandestinamente tinha o seu 'Bate-se na porta', passou posteriormente para a Rua da Carioca n° 118, ali residindo com sua irmã. Como será visto, seu perfil inventivo lembra muito o de F. – um dos personagens do segundo capítulo deste livro –, mas seu destino não seria o hospício. Em fins dos anos 60 ou início dos 70 daquele século.
... essa bondosa criatura partira do mundo, depois de haver sangrado os pés nos mais agudos espinhais da estrada.
Dormindo ao relento, sarapintado de zarcão como preventivo da febre amarela, lambuzado de azeite, porém incólume de apupadas, a Miséria o aconchegou ao seio, a Miséria, a irmã universal dos dissipados do bem e dos loucos. (Mello Moraes Filho,1903:194)
Bitu, Mal das Vinhas e os vários personagens descritos pelo Dr. Sigaud não pareciam temidos e, por mais estranhos e diferentes que fossem considerados seus hábitos, isso não impediu que, de alguma forma, tenham sido incorporados ao dia-a-dia da cidade. O ator, por exemplo, tinha o hábito de abordar as pessoas na rua conseguindo que algumas parassem para ouvi-lo e, às vezes, oferecer-lhe alguma coisa – como ocorreu com o ministro de França, que teria-lhe franqueado a dispensa, João, o mestre-escola, durante suas crises, muitas vezes contava com o auxílio dos vizinhos. Segundo o relato do médico, a presença da loucura nas ruas da cidade despertava o riso, a compaixão, as injúrias grosseiras e a troça, às vezes, cruel. Sentimentos mistos e contraditórios que, oscilando entre a aceitação e a rejeição, demonstram de qualquer forma a existência de um espaço de convívio entre o louco e o não-louco, no qual ambos sabiam perfeitamente como se defender um do outro. Nesse contexto, a loucura possuía uma 'visibilidade imediata', revelando-se aos olhos da população urbana por meio do vestuário exótico, de hábitos estranhos, de atitudes diferentes, de gestos e palavras 'incompreensíveis', de alterações na fisionomia ou, ainda, da "forma por excelência da loucura que era o delírio" (Cunha, 1986:78).
Mesmo aqueles personagens cujas histórias seriam registradas na memória popular por intermédio de versões envoltas em uma atmosfera de mistério e temor, não deixariam de ter acesso às ruas de um lugar na cidade. Durante os anos 30 do século XIX, o Largo do Paço (atual Praça XV), habitado pela "escravatura inválida", por velhos e por loucos, "assombrava de legendas extraordinárias..., de tradições misteriosas e apavorantes...".10 Por volta de meados daquele século, o local constituía, segundo Mello Moraes Filho, um "verdadeiro bazar humano", onde intercalavam-se "cenas impressionistas, de tipos de rua, comuns ou notáveis pela estranheza dos modos", expressa no "desordenado trajar", manifestando variadas "modalidades maníacas" (ibid., p.71). Aos olhos de um cronista de um outro tempo, Fernando Bastos Ribeiro, esse espaço da "mistura", ocupado por marinheiros, escravos de ganho, negras vendedoras de doces, vagabundos, mercadores brancos, capoeiras e mendigos era, antes de tudo, um "espaço do perigo". À noite, não era prudente andar pelas ruas porque eram elas mal iluminadas e na parte fronteira do paço refugiavam-se "escravos abandonados, leprosos, mendigos, desertores, meretrizes embriagadas e toda a lama social da cidade que ali marcava encontro" (Ribeiro, 1958:59). Refúgio de "delinqüentes e viciados" que para os psiquiatras de fins do século XIX seriam exemplos inequívocos da degeneração mental e, portanto, candidatos certos à reclusão nos estabelecimentos para alienados, o cotidiano do Largo do Paço era marcado pela presença de tipos famosos, como o Bem-te-vi, o Olho de Gato, o Juriti, o Filósofo do Cais, o Lagartixa, o Bota-Bicas.
Dentre estes havia uma mulher conhecida como Bárbara dos Prazeres ou Bárbara Onça, que ficou famosa "pela sua sordidez". Conta a lenda que além de adúltera e prostituta, Bárbara teria assassinado a própria irmã e um de seus amantes. Como castigo adquiriu varíola, mas escapou da morte, ficando, contudo, completamente deformada. Mesmo assim, após sair da Santa Casa, voltou a levar a "mesma vida de prostituição, bebedeiras e desordens" e, por isso, acabou adquirindo lepra: "Incharam-se-lhe as orelhas e os lábios grossos, corroídos e deformados pela doença, deixavam ver dentes pontiagudos e gengivas sangrentas que davam à fisionomia estranha ferocidade. Daí chamarem-na de Bárbara Onça" (Ribeiro, 1958:60).
Para curar-se, Bárbara procurou ajuda entre os ciganos, que lhe receitaram "uma alimentação estranha: lagartixas, rãs e serpentes". Não obtendo resultado, adotou outro meio de tratamento: "Da sua intimidade com ciganos e com negros feiticeiros adveio-lhe a convicção de que curaria sua lepra mediante uso do sangue de recém-nascidos" (Ribeiro, 1958:60). Acreditava-se que Bárbara pegava as crianças deixadas na roda dos expostos da Santa Casa, matava-as, deixando o sangue de suas vítimas escorrer sobre as "chagas purulentas" que cobriam seu corpo, crendo, dessa maneira, conseguir livrar-se da lepra: "Alimentada essa esperança, praticado mais esse crime, entre preces a estranhas divindades e grunhidos de satisfação, de lá saía Bárbara dos Prazeres, satisfeita, alucinada, delirante a prosseguir na sua vida de louca criminosa que marcou uma época" (Ribeiro, 1958:61).
Mesmo depois de inaugurado o primeiro hospício da cidade, em 1852, alguns desses personagens e muitos outros parecidos poderiam ser encontrados pelas ruas do Rio. Pelo menos é o que parecem indicar as histórias narradas por Mello Moraes Filho, sobre vários indivíduos que, figurando no "palácio aéreo dos tipos de rua", coloriam o cotidiano da cidade durante aquela época (Mello Moraes Filho, 1979).11 Exibindo características peculiares, tais personagens revelavam as múltiplas faces da loucura, ou da diferença que eram facilmente identificadas pelos demais habitantes da cidade. Em alguns, a identificação era realizada, sobretudo, por meio de suas características físicas. Em tal circunstância encontravam-se Picapau e Castro Urso, cujos traços físicos apresentavam-se como sinais reveladores de uma "razão rudimentária" – seja indicando um perfil de "idiota" no primeiro caso, seja assinalando a presença de "um espírito infantil", no segundo.
Abrigado por uma família que o estimava muito, Picapau residia numa "casa nobre da Rua de Matacavalos", ocupando-se de atividades – tais como entregar correspondência, documentos etc. – que o mantinham em constante trânsito pelas ruas da cidade, sempre vestido "com decência". Possuidor de um "enorme nariz, ridiculamente aquilino, cuja ponta ultrapassava o lábio inferior" – que lhe valeu o apelido pelo qual era conhecido –, caracterizava-se pela "fealdade do corpo". Qualidades físicas que, associadas ao "desenvolvimento retardatário do cérebro", o definiam para o cronista como um "monstrinho", um "produto teratológico" que "poderia figurar em um museu". Picapau nutria "amor sincero" por uma moça com quem pretendia se casar. Entretanto, aos olhos dos que o cercavam, seus sentimentos apareciam como simples "devaneio de idiota, uma preocupação imbecil", tornando-o objeto de zombarias e risos. "Na rua, o ligeiro Picapau era seguido pelos moleques e pelos meninos de escola, que davam-lhe trotes, que puxavam-lhe o paletó, que gritavam, acompanhando-o (...). E ele corria, saltava, voava...". Sua história teria, entretanto, um trágico desfecho: ao constatar que a moça por quem se apaixonara havia se casado com outro homem, acabou suicidando-se.
Presença constante não apenas nas ruas, mas nos teatros, restaurantes e cafés situados nas proximidades do Largo do Rócio e da Rua do Teatro, Castro Urso, contemporâneo do Grito de Sogra, do Vinte-Nove, do Tangerina, do Pai da Criança, do Caxeixa e do Barão de Caiapó, figurava entre os 'tipos' mais conhecidos na cidade. Vestido de grosso sobretudo com um lenço branco amarrado na gola, calça de canga e cartola branca, trazia sempre uma "argolinha na orelha" e um bengalão de canada-índia. Durante o dia vendia bilhetes de loteria e, a partir das seis horas da tarde, fazia ponto na porta dos teatros da cidade, onde vendia entradas para as peças em cartaz e acabava sempre assistindo-as em cadeira numerada. Os atores o escarneciam, os caixeiros e a molecada o perseguiam, porém as pilhérias quase sempre lhe rendiam não apenas a venda de seus bilhetes, mas também jantares e ceias no Mangini e em outros restaurantes localizados na vizinhança do Teatro São Pedro. Certas vezes, além de vaias, era vítima também de "uma ou outra encapelação", cujos vestígios apareciam na sua cartola amassada.
Entretanto, Castro Urso não se mantinha impassível, arremessando sobre os agressores o objeto que encontrasse mais próximo. Uma vez, após ter sido vaiado e encapelado por um capoeira, "Castro enfureceu-se; voltando-se para todos os lados em procura de algum objeto para agredi-lo e não encontrando, abaixou-se, tirou o sapatão, investiu, e desfechou-lhe tão forte pancada que o deitou por terra". Note-se que segundo a tradição popular, ele calçava quarenta e sete e meio. Além de possuir enormes pés, Castro Urso era corcunda e "zambro", mas a singularidade de sua figura devia-se, sobretudo, aos traços fisionômicos e ao formato da cabeça, minuciosamente descritos por Mello Moraes Filho. O enorme rosto "sem vida", não possuía "mobilidade" nem "expressão". O crânio era um "conjunto de linhas extravagantes e tortuosas" que "terminava numa espécie de pão-de-açúcar". Sinais que lhe conferiam um aspecto "bizarro" e "monstruoso", qualificando-o como um "enjeitado da plástica da natureza" que, ao lado do seu "apetite de abutre", serviam de ingredientes para as brincadeiras públicas de que era objeto. Sinais de uma diferença imediatamente visível aos olhos da população, cuja percepção dispensava a classificação rebuscada de Lombroso e as autópsias de Nina Rodrigues. Diferença diante da qual a reação popular manifestava-se por meio de zombarias e atazanações, porém, também por meio de sentimentos de estima e consideração.
Castro Urso terminaria seus dias exilado das ruas, não em um asilo para alienados, mas no "asilo resguardado da família", para onde refugiou-se após ter tirado a sorte num bilhete que havia encalhado em suas mãos. Desde então, deixou de freqüentar as ruas da cidade, tornando-se "mais sóbrio, grosseirão, intratável". Vítima da agressão de "um perverso", morreu "quase completamente esquecido por este povo, a quem fizera rir durante tanto tempo", em 21 de setembro de 1889, aos 60 anos de idade. Segundo a versão da história narrada por Mello Moraes Filho, o isolamento de Castro Urso, em vez de benefícios, traria conseqüências funestas, tornando-o "triste" e "intratável" – e sendo mesmo talvez responsável pela sua morte.12 Não parece, contudo, que o povo a quem fizera rir durante tanto tempo o esquecera, visto que entre as máscaras mais freqüentes nas cenas do carnaval carioca figurava justamente a de Castro Urso (Pederneiras, 1924:12).
O saber popular notabilizou esses dois personagens por meio de apelidos que remetiam às semelhanças físicas com o pica-pau e o urso. A diferença tornava-se, portanto, essencialmente perceptível por meio dos traços físicos que, associados à 'animalidade', assinalavam a ausência da razão, reforçando a concepção popular, segundo a qual o louco – "idiota" ou "furioso" – era "o indivíduo incapaz do menor raciocínio".13 No que se refere ao primeiro aspecto, o saber popular aproximava-se do saber alienista à medida que este enfatizava como um dos aspectos característicos da "idiotia" a visibilidade imediata, expressa no grande "número de estigmas somáticos" e nas "deformidades" do tipo físico (Rocha, 1904:43). Entretanto, na utilização indistintadas expressões "idiota", "imbecil", "espírito infantil", colocando-se possivelmente mais próximo das visões populares, Mello Moraes Filho distanciava-se das concepções que, desde Esquirol, nas divisões e subdivisões das várias espécies de loucura, procuravam marcar a diferença entre o "idiota propriamente dito" – caracterizado por um grau absoluto de "obliteração intelectual" – e o "imbecil" – "suscetível de algum fundo de educação" (Peixoto, 1837).
Entre os 'tipos' de rua que se tornaram conhecidos por seus atributos físicos havia o Capitão Nabuco. Calmo, sem fama de agressor ou "provocador de lutas e desordens", ganhou popularidade nos cafés e nas ruas da cidade não por revelar sinais de vesânia, mas por ser possuidor de uma força descomunal que exibia "nas praças públicas, segundo o seu capricho ou a oportunidade do momento". Avesso à disciplina e à obediência e levado por "suas fantasias loucas", atirou-se aos "desregramentos" e aos "excessos báquicos", transformando-se, segundo Mello Moraes Filho, em um "delinqüente". Características que, aliadas às exibições públicas de sua força, poderiam ser consideradas numa avaliação médica como motivos suficientes para convertê-lo em um dos pensionistas de primeira classe do Hospício de Pedro II – já que, filho de um desembargador, pertencia a uma "família ilustre". Entretanto, o Capitão Nabuco morreria em 1863 (ou 1864) sem ter gozado dessa hospitalidade. Admirado e respeitado por todos, seus feitos se mantiveram na memória popular mesmo muito depois de sua morte.
Outro sinal que denunciava aos olhos da população urbana sintomas de vesânia era a forma peculiar por meio da qual alguns desses personagens se vestiam. A Forte-Lida apresenta-se como um dos exemplos mais expressivos nesse sentido. Até pelo menos o início dos anos 70 do século XIX 14 ela era uma presença marcante nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, onde desfilava suas roupas coloridas, empunhando uma vara de marmelo e, às vezes, trazendo sua escrava amarrada pelo pescoço. Uma pensão deixada pelo marido – que todos os meses, religiosamente, ia receber no Tesouro – e a propriedade de uma escrava asseguravam-lhe meios de sobrevivência suficientes para que ela não dependesse da caridade pública, podendo, inclusive, manter uma residência fixa em Matacavalos. Segundo Mello Moraes Filho, "o seu trajar, ainda mais que a sua fisionomia, revelava um estado mental em desordem, ou antes a perda absoluta da razão". Usava saia de cores vivas, camisa de rendas e, sobre um dos ombros, à moda das negras baianas, um xale encarnado, "do qual lhe proveio o segundo apelido de Manta de Fogo".
Tal apelido sublinhava o modo de trajar como o principal critério adotado na identificação popular da diferença que caracterizava essa personagem do cenário urbano, cujas exibições públicas eram anunciadas por "assobios", "apupadas" e "provocações" dos moleques, meninos e "bandos de ociosos" que se interpunham no seu caminho e atiravam-lhe pedras. Insultos enfrentados pela Forte-Lida não apenas esbravejando, passando descomposturas e fustigando seus agressores com uma inseparável vara de marmelo, mas também queixando-se "aos pedestres, aos inspetores de quarteirão e até aos ministros de Estado". Gesto que, independentemente do efeito que pudesse provocar, por si mesmo parece indicar que, na prática, o direito às ruas era de alguma forma assegurado aos loucos, apesar dos insistentes clamores dos médicos afirmando a necessidade de interná-los no hospício. As reclamações dirigidas aos ministros, bem como o hábito de percorrer os cartórios da cidade em virtude de uma demanda na qual se achava envolvida, poderiam ser indícios de que a Forte-Lida e a mulher que perseguia os regentes, ministros e juizes, referida por Sigaud em 1835, fossem a mesma pessoa.
Vivendo de esmolas, Claudino, ou Padre Quelé,15 passava os dias andando apressadamente pelas ruas da cidade, esbarrando nos transeuntes, dizendo "rápido e baixinho: – 'Camaradinha, me dá um vintenzinho?'". Possuía um círculo estável de amizades, tocando violão e cantando lundus em casas conhecidas. Entretanto, sua fama foi adquirida sobretudo porque, embora não tivesse passado da "prima tonsura", Claudino usava "batina, sapato de fivela e meia preta, barrete fechado na mão e capa magna traçada, objetos esses que filava de Monsenhor Narciso". Em razão de um defeito na fala, durante as missas na Igreja do Carmo não conseguia pronunciar kyrieeleison, respondendo apenas 'quelé'. Desse modo, a visibilidade de sua loucura aliava o modo como se trajava ao defeito físico que o impedia de pronunciar corretamente determinadas palavras, ambos os aspectos expressos claramente no apelido que o consagrou como personagem popular.
Perseguido pelos moleques e "vadios" que formavam "um estado-maior saltitante, atroador e festivo", o Padre Quelé "descompunha, soltava palavradas". Acabou sendo proibido de usar batina, por ordem do delegado de polícia, Dr. Cunha. A partir de então passou a trajar "casaca, calça curta e muitíssimo larga, conservando unicamente sapatos baixos, meia de seda, coroa aberta e o maço de jornais" que costumava levar sempre consigo. O novo vestuário, conferindo-lhe um ar extravagante, mantinha a marca da visibilidade da sua diferença. As vaias e as pedradas continuavam a acompanhá-lo pelas ruas da cidade. Além de "tatibitati", Claudino era corcunda, "cambaio", "erótico às ocultas", tinha "hábitos excêntricos", "costumes bizarros" e "religiosidades exageradas" e "gostava de falar mal da vida alheia", revelando-se "hipócrita" e "avarento". Atributos que indicavam, aos olhos do memorialista, o "enfraquecimento progressivo das faculdades cerebrais", qualificando-o indistintamente como "idiota" e "imbecil".
A observação alienista seria, certamente, mais rigorosa tanto no que se refere à elaboração de um diagnóstico mais específico, quanto no que diz respeito à prescrição de um tratamento mais severo. Nesse sentido, Padre Quelé seria possivelmente enquadrado na categoria dos "fracos de espírito" ou "débeis" que, segundo a classificação de Valentin Magnan, diferenciavam-se dos "idiotas" e dos "imbecis" por serem capazes de "adquirir idéias normalmente", embora a "capacidade de abstração" se mantivesse ausente ou se apresentasse de forma "rudimentar". De acordo com o Dr. Franco da Rocha, nesse "tipo de degeneração" os estados afetivos eram dominados pela "vaidade", pelo "egoísmo", pelos "instintos e desejos da esfera inferior do desenvolvimento intelectual", pela "intriga baixa", pelo "mexerico", pela "calúnia" e pela "cobiça". Assim, nessa "espécie de degenerados", "as perversões de sentimentos são numerosas e ...temíveis porque, trazendo uma bagagem intelectual bem superior à do imbecil, as combinações para a expansão destes sentimentos são vastas..." (Rocha, 1904:46-47). Periculosidade que facilmente tornar-se-ia o preâmbulo para a internação num asilo para alienados. Mas o Padre Quelé morreria em 1876 sem jamais ter conhecido as instalações do Hospício de Pedro II, a despeito da amizade que o unia a "um distinto médico residente no Largo do Rócio".
Antônio Francisco de Paula, o Bolenga, também revelava um desejo obsessivo de ordenar-se padre. Desfilando pelas ruas da cidade "trajado de preto, por baixo do colete e da sobrecasaca ensebada assentava o cabeção de padre, a volta guarnecida de uma renda muito estreita e suja". Nasceu em Itaboraí e chegou a freqüentar o Seminário de São José, mas não conseguiu concluir os estudos. Acabou tornando-se sacristão da capela imperial, porém, a "mania de ordenar-se" persistiu até que ele passou a acreditar que era de fato padre, alimentando a pretensão de ser nomeado bispo e transformando-se em objeto de inúmeras brincadeiras: enviavam-lhe mitras usadas, decretos da nomeação tão desejada, ofícios relativos ao cargo que iria exercer, cartas de parabéns etc. Uma dessas brincadeiras fez com que acreditasse que receberia do Tesouro uma ajuda de custo para a viagem, por ter sido nomeado bispo do Maranhão. A demora no recebimento do dinheiro levou-o a reclamar a diversas instâncias dos poderes público e eclesiástico, chegando até mesmo ao Imperador que, sabendo da sua "maluquice" e conhecendo-o da capela, "tratava-o com favor e bondade".
Apesar de alvo de gracejos e pilhérias, o Bolenga andava tranqüilamente pela cidade não apenas "incólume das pedradas dos moleques e das surriadas dos vadios", mas também a salvo da reclusão no hospício até 1879, quando faleceu aos 74 anos. Como observaram Hermeto Lima e Barreto Filho, as brincadeiras populares e o apelido pelo qual ficou conhecido acabaram por lhe conferir a própria identidade: "Ao contrário dos tipos populares que se irritam quando chamados por uma alcunha, Antônio Francisco fazia questão de que o conhecessem por Bolenga, tanto que, quando obrigado a assinar o nome, fazia empenho de acrescentar a alcunha, que realmente era o que mais o identificava" (Lima & Barreto Filho, s.d.:104).
Havia alguns personagens cujas marcas características da loucura apareciam não somente em seus trajes, mas em suas palavras e gestos ou atitudes e hábitos, entremeados por sinais evidentes de delírio. Entre estes destacava-se o Maia da Praia Grande. Conhecido por todos, figurava cotidianamente no "cenário popular das ruas", apregoando bilhetes de loteria. Vestido apenas com calças curtas e largas, cobria metade do tronco com um cobertor vermelho, uma colcha e um lençol, usando na cabeça uma carapuça, um barrete ou um urinol branco. Às vezes calçava chinelas que colocava na cabeça para se proteger da chuva. Morava em um velho camarote de navio, colocado sobre quatro rodas, o que lhe permitia deslocar sua residência do "Largo do Capim para o Campo Sujo e do Campo Sujo para o Largo do Capim, segundo lhe dava na veneta ou estava de maré". As autoridades públicas acabaram retirando-lhe a casa improvisada e o Maia passou a dormir debaixo das pontes, nas calçadas das ruas e no adro da Igreja de São João, até que conseguiu instalar-se em um quartinho à Rua do Imperador, nas proximidades da praia.
Sua vesânia tornava-se visível aos olhos da população não só na peculiaridade dos hábitos de se vestir e de morar, mas nos gestos "bizarros" – por meio dos quais parecia "parafusar o espaço" – e nos "estranhos" diálogos e monólogos que proferia para si mesmo. Contudo, o Maia revelava alguns momentos de lucidez em que, de acordo com as pessoas que o conheceram, "cintilavam fosforescências inteligentes". E mesmo nas ocasiões em que parecia tomado pelo delírio, não deixava de manifestar certa perspicácia colorida por um tom malicioso, expressa, por exemplo, numa das histórias que contavam a seu respeito, segundo a qual sempre que se deparava com um burro de carroça, aproximava-se com um punhado de capim e dizia: " – Bom dia, Sr. burro, olhe, se não fosse você, eu e os outros pobres como eu é que puxaríamos carroça; por isso, Sr. burro, lhe somos muito agradecidos, lhe devemos muitos favores. Coma, coma este capinzinho, que você bem o merece". Como quase todos os demais 'tipos' de rua, o Maia era perseguido pelos moleques e pelos caixeiros, que o importunavam com pedradas e assobios:
– O Maia!... Fora o Maia!... Fora o maluco!...
E ele imperturbável ou irritado, adiantava-se, murmurando, falando, esbravejando,e depois mercava:
– Brancas e branquinhas, mulatas e mulatinhas, crioulas e crioulinhas! – Compre,compre, compre! – Branco! branco como as estrelas!....
E assim, despertando o riso e a simpatia das pessoas, fazia com que elas parassem de o molestar e acabassem comprando seus bilhetes, demonstrando ser plenamente capaz de assegurar não apenas os meios da sua sobrevivência, mas de se defender com eficácia contra as agressões da população.
Tendo, como Bárbara Onça e tantos outros, o Arco do Teles como abrigo e refúgio, João Adalberto Matias (ou Barão de Schindler) era outro personagem cuja loucura possuía um perfil próximo à do Maia. Contava-se que era filho único do Barão Anselmo Schindler, e lutara ao lado das tropas de Napoleão Bonaparte. Ferido na batalha de Leipzig, conheceu a Condessa Ermelinda, por quem se apaixonou perdidamente. Mas Ermelinda, apesar de corresponder ao amor de Adalberto, acabou se casando com um príncipe russo a quem havia sido destinada pelo pai. A decepção teria sido tão grande que Adalberto acabaria se tornando louco, sendo internado em um hospício, "onde foi curado pelo Dr. Schwarzer". Após muitas peregrinações veio para o Brasil como soldado, em 1824, com os primeiros mercenários alemães contratados para lutar na Campanha da Cisplatina.
Atormentado pelas lembranças da desilusão amorosa, abandonou sua tropa no Rio Grande do Sul para viver junto dos indígenas da região. Mas aí também não encontraria a paz que desejava, passando a viver nas matas até chegar a uma fazenda de café em São Paulo, cujo dono, alemão, referiu-se à existência de duas cartas endereçadas a Adalberto na administração dos portos no Rio de Janeiro. A primeira era de Ermelinda informando-o que havia ficado viúva e que desejava casar-se com ele. A outra era de um amigo comunicando-lhe que Ermelinda havia morrido deixando-lhe toda a sua fortuna. O choque provocou novo ataque de loucura: "Às primeiras horas da manhã do dia seguinte, embarcadiços encontraram no interior do depósito um homem caído, que delirava, falando em língua estrangeira" (Ribeiro, 1958:49). Após passar alguns dias no Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Adalberto retomou seus hábitos de "verdadeiro andarilho". Vagava dia e noite pelo Largo do Paço, pedindo esmolas em certas casas, e segundo a tradição popular, só aceitando dinheiro de cobre, que trocava por bilhetes do Tesouro:
E ia e vinha aquela figura fantasmática, com a mão livre sempre ao bolso, e de calça sempre arregaçada, parafusando uma idéia inoportuna, somando uma quantia sem soma, sorrindo abstrato para uma visão querida de além-túmulo, até que um assobio, um projétil arremessado por algum moleque o fazia parar e voltar-se, irritar-se e seguir.16
Os sinais de sua loucura eram facilmente perceptíveis por meio das roupas que usava – calça e casaca verdes, que pareciam os restos do seu uniforme de soldado, um "disforme bonetão de couro", substituído mais tarde por outro de veludo, e os pés descalços – e também dos "diálogos esquisitos" que costumeiramente mantinha "com os moleques, quitandeiras, guardas municipais e garotos", registrados por ele próprio, quando sob a influência do crescente da lua, "se desconcertava" e "escrevia os acontecimentos de sua vida". Entre os quais, além dos diálogos referidos, destacavam-se também as "notas cômicas que teve com um homeopata, que o queria curar pelo magnetismo" (Mello Moraes Filho, 1979:274). É provável que toda essa eloqüência característica do personagem – marcada talvez por rasgos delirantes – fosse responsável pelos apelidos de Filósofo do Cais ou Filósofo do Largo do Paço, por meio dos quais se tornou conhecido. Adalberto morreu em 1855 na Santa Casa da Misericórdia, "acometido de uma febre perniciosa", com certas passagens pela casa de correção para onde era remetido pela polícia "sem razão de ser". A fama dessa figura singular e sedutora parece ter sido efetivamente grande, uma vez que além de ter sua história publicada num livro – impresso em Porto Alegre, segundo nos informa Mello Moraes Filho –, transformou-se, ao lado de outra celebridade das ruas da cidade do Rio de Janeiro, em personagem de uma farsa representada no Teatro de São Pedro, intitulada O Filósofo do Cais e o Praia Grande.
Os dois personagens, aliás, foram contemporâneos e possuíam características bem próximas; freqüentando os mesmos lugares da cidade, viviam ambos de esmolas e da caridade das quitandeiras. Em meados do século XIX, o Praia Grande, contando aproximadamente 45 anos, vestindo sobrecasaca abotoada, uma velha cartola e uma gravata justa ao pescoço, era presença certa no Largo do Paço, vagando pelo cais e "volteando o mercado e as quitandas das pretas". À noite dormia no adro do Carmo ou debaixo do Arco do Teles. Diante das "habituais provocâncias" da população e dos moleques, Praia Grande mantinha-se calmo, já que sua vesânia, segundo Mello Moraes Filho, não se caracterizava por "manifestações ativas e violentas", exceto em "certas fases da lua", quando se tornava agressivo. Outra semelhança, portanto, com o Filósofo: as variações lunares explicitavam certos traços da loucura, tornando-a mais visível. Como no outro personagem, a percepção das diferenças que marcavam a personalidade do Praia Grande também se vinculava ao seu vestuário e a seus delírios, expressos por intermédio de palavras e gestos.
Outra mulher que compunha a vasta galeria dos 'tipos' de rua descritos por Mello Moraes Filho era conhecida como Maria Doida. Dizia-se que ela havia "perdido a razão" por lhe terem roubado o dinheiro deixado pelo marido. Ao contrário da Forte-Lida, não possuía pouso certo, "comendo, bebendo e dormindo onde a levava o acaso", mas contando sempre com o acolhimento de certas famílias conhecidas. Trajava-se de modo bastante peculiar, vestindo "três ou quatro saias, duas camisas e igual número de meias" e levava sempre consigo uma "trouxinha com as demais roupas de uso", denunciando, assim, sua condição de "andarilha e vesânica". Contudo, a marca mais visível de sua "alienação" estava estampada nas palavras "desarrazoadas", nos "repentes chistosos" e nas "frases equívocas que lhe brotavam de improviso". Celebrizada por suas pilhérias picantes, Maria Doida era vista com certa reserva pelas senhoras mais pudicas, tornando-se alvo das brincadeiras da meninada e do divertimento das moças, o que não impedia que fosse "estimada, acatada e zelada" por todos. Parecia mesmo ter certo prestígio, intercedendo em favor das mulheres e das meninas escravas quando estas eram castigadas em sua presença.
Segundo a tradição popular, o Brigadeiro Montenegro, originário de Moçambique, teria ficado mentalmente perturbado após sofrer uma repreensão em ordem-do-dia, vindo para o Brasil a fim de se casar com "moça rica e bonita", tornando-se, desse modo, conhecido como Não Há de Casar. Por volta de 1880, desfilava pelas ruas do Rio com seu uniforme militar, cortejando as raparigas bonitas e faceiras que encontrava às janelas das casas. Não Há de Casar era um dos alvos prediletos dos moleques que o atropelavam, assobiando e gritando. Diante das perseguições dos caixeiros da Rua do Rosário, "enfurecia-se, desembainhava a espada, ia sobre eles, distribuindo pranchadas a torto e a direito". Agressividade controlada por meio de medida policial que o proibiu de andar armado, prescindindo-se, dessa forma, da intervenção médica que certamente recomendaria a sua internação no hospício como única alternativa para preservar a segurança pública.
Policarpo e seu amigo Paiva proporcionavam diariamente às pessoas que residiam ou passavam pelas proximidades do Passeio Público um verdadeiro espetáculo musical. Policarpo era músico da capela imperial e não apresentava qualquer sintoma de perturbação mental até que começou a manifestar certas mudanças nos modos, nos gestos e no semblante, sem assumir, contudo, alguns dos comportamentos tradicionalmente associados à vesânia: "não implicava com os vizinhos, não provocava os transeuntes, não descompunha ninguém". Ao entardecer, contudo, operava-se uma radical transformação no seu modo de vestir: "tomava um largo paletó de padrão escocês, enfiava a cabeça em uma carapuça de baeta vermelha". Assim trajado, manifestando ar exótico, pegava a rabeca e saía pelas ruas da cidade.
Policarpo dirigia-se ao Passeio Público, onde, acompanhado pelo violão do amigo Paiva, dava início à "amoladora serenata" que durava até à meia-noite. Percorrendo o mesmo trajeto – da porta do Passeio Público ao chafariz das Marrecas e daí de volta ao ponto de partida –, os dois músicos executavam "apenas duas peças..., aborrecidas e desconchavadas". Embora essas exibições públicas representassem um verdadeiro "suplício" para os moradores da vizinhança, o Policarpo e o Paiva não eram alvo das agressões populares. Segundo Hermeto Lima e Barreto Filho, os dois músicos atormentaram os moradores da Rua das Marrecas durante muito tempo, "até que um dia a Polícia resolveu acabar com aquelas 'serenatas'". Para esses cronistas, nunca se soube ao certo se por acaso se tratava de "dois malucos ou de dois trocistas, que queriam 'amolar' alguém da vizinhança..." (Lima & Barreto Filho, s.d.:108). Mas, para Mello Moraes Filho, Policarpo era um bom exemplo da pouca importância dada "aos alienados, no tempo em que ele viveu livremente com sua enfermidade", perturbando o sossego público. Trata-se, aqui, de uma das raras manifestações do autor em favor da internação no hospício.
Possuindo o dom da eloqüência, Miguel, ou o Príncipe Natureza, celebrizou-se como um grande conferencista, cujas apresentações nos teatros da cidade eram bastante concorridas. Foi escravo dos frades de São Bento e depois de liberto passou a trabalhar como servente em uma das repartições da marinha, onde conquistou a simpatia dos oficiais presenteando suas esposas com "espanadores de lindíssimas penas" que ele mesmo fabricava. Discorria sobre qualquer assunto, "perdendo-se numa declamação apaixonada quando tratava da maçonaria e dos portugueses, dos quais constituiu-se inimigo intransigente e irreconciliável". Em suas exibições públicas era apresentado, com toda pompa, como "Sua Alteza o príncipe africano D. Miguer Manoer Pereira da Natureza, Sová, Gorá, Vangue, do conselho de Sua Majestade Fidelíssima, súdito do Sr. D. Pedro II do Brasir, condecorado pelo Sr. D. Miguer I de Portugar, grão-cruz dos príncipes de Marta do tempo de Afonso Henriques". Nessas ocasiões, ostentando uma elegância cômica, trajava-se com colete aberto, luvas brancas de algodão, "destoando das botinas largas..., em luta sem trégua com a bainha das calças", trazendo como adorno duas cruzes de prata. Estreou em 1878 ou 1879 no Teatro Recreio, realizando uma "conferência extraordinária", na qual, além de sensível, engraçado e genial, revelou-se, apesar da sua realeza, um árduo defensor das idéias "democráticas", fazendo sucesso absoluto no teatro lotado, cuja renda foi convertida em benefício da Sociedade Abolicionista.
Cândido da Fonseca Galvão era outro personagem que também, tomado pelos sonhos da realeza, percorria as ruas da cidade do Rio de Janeiro como se estas fossem os "vastos salões de seus palácios" ou "prolongamentos pitorescos dos seus estados". Engajado numa "companhia de zuavos baianos", lutou na Guerra do Paraguai, na qual, distinguindo-se por seus feitos, recebeu "as honras de alferes do exército". Terminada a guerra, veio para o Rio de Janeiro, onde passou a entregar-se aos excessos alcoólicos.
Segundo Mello Moraes Filho, por esse e por outros motivos acabaria completamente tomado pela "megalomania", tornando-se uma figura muito popular na cidade. Acreditando-se filho de reis, apresentava-se como o Príncipe Obá II da África,17 "tendo por vassalos os negros Minas e as quitandeiras do Largo da Sé". Os traços mais visíveis e característicos de sua "vesânia dinástica" revelavam-se por meio dos trajes que usava e dos "meneios que lhe eram privativos". Nos dias comuns passeava pela cidade envergando um "comprido croisé preto, calça da mesma cor, imensamente larga e afunilada para asbotinas", cartola e "completando-lhe a toilette um pincenez de vidros escuros, luvas de algodão brancas, guarda-chuva debaixo do braço e bengala".
Diante das vaias dos moleques, dos caixeiros e dos "vadios", mantinha-se impassível no seu porte principesco. Mas, além das vaias, recebia também "o tributo de seus súditos do Largo da Sé, que tomavam-lhe a bênção" e "se ajoelhavam em sua passagem". Reverências que, segundo o memorialista, eram devidas ao "documento de sucessão a um dos tronos africanos" exibido pelo "príncipe herdeiro". O prestígio desfrutado por esse personagem conferiu-lhe não apenas vários espaços nos jornais diários – que publicavam "proclamações e manifestos (com retrato)" –, mas também a livre entrada no paço, ordenada pelo próprio Imperador. Segundo Hermeto Lima e Barreto Filho, o Príncipe Obá era muito querido pelo povo da cidade que, mesmo sem entendê-los, apreciava bastante os artigos sobre política, fatos históricos e acontecimentos do dia, que ele escrevia para os jornais. A popularidade do Príncipe Obá pode ser constatada pelo fato de ser sua máscara tão freqüente nos carnavais cariocas de fins do século XIX quanto a do Castro Urso (Pederneiras, 1924:12). Nos dias de grande gala, Obá não deixava de comparecer ao paço imperial para saudar sua majestade:
Em uma dessas vezes beijou a mão ao imperador e à imperatriz, e ao Conde d'Eu 'fez um adeusinho', como se com ele tivesse grande intimidade. O conde, longe de se aborrecer, sorriu. Nos dias de suas aperturas financeiras, o Príncipe Obá ia esperar o imperador à quinta da Boa Vista e fazia-lhe a mesura de costume. D. Pedro, com aquela bondade que todos lhe conheciam, sabia o que aquilo queria dizer e ordenava ao mordomo [que] desse uns cobres ao alferes Galvão. (Lima & Barreto Filho, s.d.:150)
Todos os sábados, Obá comparecia às audiências de D. Pedro II. De acordo com Mello Moraes Filho, por ocasião das recepções solenes, certas vezes, aparecia em uma das sacadas acenando para a multidão espremida no Largo, donde "ouviam-se murmúrios pilhéricos, vozes no ar: Olha o Obá, olha o príncipe Obá!". Segundo Raul Pompéia, numa dessas ocasiões, durante a comemoração do aniversário de D. Pedro II, em 2 de dezembro de 1888, "o Príncipe Obá foi preso por arrebicar indevidamente de cintos e penas demasiado africanos a sua farda de alferes..." (Pompéia, 1982:118). Um ano depois, como de costume, o Príncipe Obá foi ao paço cumprimentar o imperador pelo seu aniversário e "encontrando as portas fechadas, ou sendo despedido, enfureceu-se e prorrompeu em 'vivas' e disparates" (Mello Moraes Filho, 1979:311-312). O governo republicano retirou-lhe as honras de alferes e ele morreu poucos meses depois, em 8 de julho de 1890, após ter sofrido outro desgosto: foi deportado do Rio por um chefe político.
Existiam também alguns personagens, cuja singularidade não se encontrava estampada em suas vestes. Os sinais de suas diferenças expressavam-se tão-somente nas palavras, gestos, atitudes, hábitos ou, mesmo, nas atividades que exerciam. Era o caso do ferreiro português, conhecido como Miguelista. Morava na Rua Larga de São Joaquim e quando bebia demasiadamente ia para o quintal, completamente nu, gritando: "– Vizinhas! Estou na área!...". Por isso tornou-se "um dos tipos prediletos da canzoada, que jamais o deixava seguir em paz seu caminho". Era perseguido pelos moleques que o agrediam com pedradas, contra as quais se defendia gritando palavrões e "atirando-lhes às pernas um grande cacete de castão de ferro", do qual nunca se separava. Decididamente não havia chegado ainda a época em que, com base na avaliação médica de que o alcoolismo era ao mesmo tempo causa e efeito da doença mental, os bêbados da cidade eram despejados pela polícia no hospício, a ponto de se tornarem tão numerosos que alguns psiquiatras começariam a reivindicar, como será visto, a criação de estabelecimentos especialmente destinados a seu tratamento.
Chico Cambraia possuía alguns traços em comum com o Miguelista, sendo provável que seu apelido tenha-se originado do hábito de embebedar-se.18 Pertencendo à confraria dos Irmãos das Almas, saía às ruas com sua opa, uma bacia de prata e uma vara também de prata, "com a imagem de São Miguel e Almas (sic)" – traje e objetos que usados ordinariamente pelos membros das confrarias e irmandades, não lhe conferiam aspecto particular –, pedindo esmolas. Em dias especiais – finados ou quando havia enforcado, por exemplo – fazia ponto na porta das principais igrejas e percorria as casas onde tinha clientela certa e selecionada. Morava em uma casa na Rua do Hospício com a mulher e os filhos, onde em certas ocasiões recebia seus colegas de ofício que vinham conversar, ouvi-lo tocar violão e cantar modinhas e lundus. Tornou-se famoso, distinguindo-se dos demais companheiros por meio de um singular costume. Contava-se que chegando em casa com o produto de suas peregrinações,
... o impagável tipo acendia a vela de carnaúba..., fechava as janelas da sala, colocava sobre o aparador o dinheiro das Almas, e começava, jogando o pacau:
– Ora, vamos lá; é de maninha-maninha o nosso jogo... Tomem lá duas cartas, senhoras Almas, e eu fico com as que me couberem por sorte.
Desse modo, ganhando quase todas as partidas, ficava com a maior parte das esmolas arrecadadas e no ajuste de contas com o tesoureiro da confraria justificava os parcos proventos destinados às almas, afirmando que o negócio ia mal, pois os tempos estavam "bicudos".
Uma versão bastante próxima da história de Chico Cambraia foi publicada em 1887 no Brasil Ilustrado, em artigo sobre os pedintes para as almas, que, como outros tipos que integravam a paisagem urbana, iam "desaparecendo, levados pela onda de civilização...". O artigo refere-se, ainda, a um outro pedinte famoso que
... dera-se tanto ao vício da embriaguez que lhe tiraram a vara e a opa, pelo que ficou sem meios de vida. Vagava pelas ruas ... até que à tarde já muito bêbado, encaminhava-se para a rua da Alfândega canto da do Regente, e colocando-se em frente a uma imagem que aí havia em um oratório de pedra ... entabulava uma conversação com a santa, falando em nome dela com a voz muito esganiçada. (Brasil Ilustrado,1887:16)
A encenação atraía um público considerável que, no final, "gratificava generosamente" o ator improvisado, "chovendo-lhe no chapéu os vinténs com que na venda da própria casa do oratório acabava ele de emborrachar-se" (Brasil Ilustrado, 1887:16).
Ao contrário dos dotes musicais de Policarpo, as habilidades imitativas de um outro personagem não o caracterizavam como "um trânsfuga dos hospícios de alienados", segundo faz questão de frisar Mello Moraes Filho. Tratava-se de Emiliano, filho da escrava Rosa, "inteligente", "fiel" e "bem vestido" – usava calça e jaqueta de brim e chapéu de pêlo de lebre –, tornou-se célebre nas ruas da cidade por saber imitar com perfeição o som das locomotivas, o que lhe valeu o apelido de Estrada de Ferro e o convite para participar da peça teatral Viagem à Roda do Mundo. Provavelmente, na opinião dos alienistas – oposta à emitida pelo cronista –, as "prendas" que excluíam esse personagem das "raias comuns" fossem consideradas um bom motivo para trancafiá-lo no hospício. Mello Moraes Filho não se refere aos rumos tomados por Emiliano depois de ter conquistado a liberdade em 1887. De qualquer forma, é certo que durante muitos anos o Estrada de Ferro manteve o hábito de passear pela cidade, "na plataforma ou nos estribos dos 'cara-duras'..., produzindo o curioso efeito das locomotivas em trânsito".
Barreto Bastos, português, corretor da praça do Rio de Janeiro, também andava sempre "bem vestido", com chapéu de pêlo de lebre, paletó preto de alpaca, calça e colete de brim branco. Revelando "fisionomia serena e modos tranqüilos", era "inofensivo", manifestando apenas dois sinais de vesânia. O primeiro, a mania de apresentar-se todas as manhãs na Rua Direita, onde tirava o relógio e o acertava pelo indicador do observatório do Castelo. O segundo, a "idéia fixa" de se tornar poeta. Efetivamente acabaria conquistando a fama com a publicação de suas "poesias políticas" nas colunas do jornal de Rafael J. da Costa, que eram "deveras apreciadas pelos assinantes e o povo". Entretanto, segundo Hermeto Lima e Barreto Filho, Barreto Bastos teria se tornado famoso e popular porque suas poesias eram um "amontoado de asneiras". Depois de conseguir publicar algumas, era só o poeta "sair à rua, e a caixeirada da rua Direita não mais o deixava em paz".
Durante os anos 40 do século XIX, Tomaz Cachaço era muito conhecido na região da Prainha, Rua de São Pedro e Rua da Saúde, onde aparecia sempre com uma palmatória no bolso, revelando a atividade com a qual ganhava a vida e que o tornou um 'tipo' característico e famoso na cidade até sua morte, em 1852. Ensinava "doutrina cristã aos negros novos" no mercado do Valongo e nas casas particulares onde havia escravos, "recebendo mil ou dois mil réis mensais pelas lições de reza". O modo pelo qual desempenhava suas funções, inspirando verdadeiro terror aos seus discípulos, transformou-o em objeto de divertimento para os caixeiros e os senhores que assistiam habitualmente às lições, durante as quais, às vezes, apareciam possíveis sinais de delírio, expressos, na afirmação de que se não fosse a sorte adversa, ele "teria sido ministro do Sr. D. Pedro II!...".
Entre as figuras descritas por Mello Moraes Filho havia uma cuja fama ultrapassava os limites da corte, chegando a várias localidades da Província do Rio de Janeiro. Tratava-se do Dr. Pomada, que se considerava médico, ou melhor, como ele próprio afirmava, "científico" e "estudioso das patologias", sem nunca ter cursado uma Faculdade de Medicina. Foi, de fato, prático de farmácia e depois enfermeiro do Hospital da Misericórdia, lugar em que, convivendo com "médicos ilustres" – entre os quais o Dr. Manuel Feliciano –, passou a ver-se como um de seus discípulos. Assim, instalou-se no interior da província – provavelmente em Maricá –, onde passou a exercer "a medicina e a cirurgia, levando a todos os lares a fama de seus 'curativos'", dedicando-se também a "pequenas indústrias", tais como o fabrico de pomadas e lingüiças. Da prática dessas atividades nasceu o apelido pelo qual se tornou conhecido. Levado pela crença nas suas habilidades de cirurgião, decidiu submeter sua mulher, grávida de sete meses – que, de fato, se achava adoentada – a uma cirurgia fatal para ela e para a criança. Embora negando a autoria do crime e afirmando sempre que fazia suas curas exclusivamente "por meio de ervas e rezas", foi julgado culpado e condenado a cumprir pena na penitenciária de Niterói.Preparando remédios, benzendo quebrantos, curando espinhela caída, bucho virado, sol na cabeça e outras moléstias, o Dr. Pomada revelava-se um "tipo tradicional de curandeiro da roça". Aliando os atributos de louco e de curandeiro, ambos perpassados por um colorido místico, era ao mesmo tempo respeitado, admirado e temido, o que fica evidenciado pela atitude da população em procurá-lo para conseguir o alívio de seus males, na reação dos internos da penitenciária, que o reverenciavam "como entidade sobrenatural", e nas histórias narradas pelos habitantes do lugar onde o crime fora cometido, segundo as quais o Dr. Pomada havia enterrado os cadáveres ao pé de uma mangueira e aproveitado as carnes para fazer lingüiças. É provável que a história do Dr. Pomada tenha despertado grande interesse entre os alienistas que a acompanharam, pois além de revelar sintomas inequívocos de alienação mental, ele era curandeiro – ou "charlatão", como eram conhecidos aqueles que ousavam exercer prática concorrente à que deveria ser monopolizada por médicos formados nas Faculdades. Contudo, numa época em que os psiquiatras ensaiavam os primeiros passos no sentido de reivindicar para si a responsabilidade sobre aqueles que antes de serem julgados e condenados como criminosos deveriam ser diagnosticados e tratados como doentes mentais, o Dr. Pomada teria como destino a penitenciária e não o hospício.19
Reais ou lendárias, as histórias desses personagens intrigantes foram registradas pela memória popular através de várias versões que, apesar de recolhidas e recontadas por cronistas e memorialistas, são capazes de fornecer certas pistas acerca das múltiplas concepções da loucura produzidas, difundidas e vivenciadas para além dos limites do saber e do fazer acadêmicos e científicos. Em quase todos os protagonistas dessas histórias os sinais da vesânia se encontravam associados, de uma forma ou de outra, à perda ou à perturbação da razão, expressos, por exemplo, nas palavras "sem nexo, nem seguimento" ou "desarrazoadas", nos gestos que pareciam "parafusar o espaço", nas posturas produzidas pelos "sonhos de grandeza", marcadas pelo delírio – ainda que, em alguns casos, como por exemplo, no Maia, no Miguelista, no Chico Cambraia, no Policarpo, as manifestações do delírio se alternassem com momentos mais ou menos longos de lucidez. Outros aspectos que conferiam a qualificação de loucos à maioria desses indivíduos seriam, por exemplo, as palavras ou gestos obscenos – presentes na nudez pública do ator e do Miguelista, nas tiradas indiscretas da Maria Doida ou nas práticas onanistas do Padre Quelé – e a própria mobilidade que assinalava a presença de quase todos nos espaços da cidade – particularmente notável na inquietação do Filósofo do Cais, que vagava dia e noite pelo Largo do Paço, na agitação do Maia sempre deslocando sua residência móvel ou no caráter andarilho da Maria Doida.
A referência a elementos determinantes ou agravantes das "perturbações mentais" em vários personagens descritos seria outro vestígio importante no desvendamento de alguns dos significados da loucura, correntes na cidade do Rio de Janeiro do século XIX. Dessa forma, teríamos os traços congênitos da constituição cerebral, afetando a inteligência ou o espírito – nos casos do Picapau, do Castro Urso e do Padre Quelé –; os amores excessivos ou contrariados – nos casos do Filósofo do Cais e do Picapau –; o abuso do álcool – nos casos do Miguelista, do Príncipe Obá e, provavelmente, do Chico Cambraia –; os desejos obsessivos revelados por Quelé e Bolenga – que queriam ser padres –, por Barreto Bastos – que aspirava ser poeta – e pelo Dr. Pomada – que desejava ser médico –; a perda do sustento – caso da Maria Doida – ou o efeito de um constrangimento público – caso do Não Há de Casar –; os excessos intelectuais ou, ainda, os efeitos das fases lunares – caso de João, do Filósofo do Cais e do Praia Grande. Todas essas idéias revelam um traço em comum bastante significativo, expressando crenças e valores difundidos nos meios intelectuais e acadêmicos, mas que eram também do domínio do saber popular. Detenhamo-nos na associação entre loucura e variações lunares que se apresenta como um aspecto particularmente ilustrativo dessa circularidade cultural. 20
A associação entre a loucura e as conjunções lunares é bastante antiga. Na documentação inquisitorial de fins do século XVI, produzida na visitação que o Tribunal de Lisboa enviou à Bahia e a Pernambuco, entre 1591 e 1595, existem pelo menos dois exemplos que revelam a utilização da palavra "lunático" para designar os "enfermos da cabeça" pelo senso comum na sociedade colonial. Trata-se do processo de André Sodré, escrivão, acusado de blasfêmia e sodomia, denunciado por Antônio Guedes a 22 de agosto de 1591 na Bahia, e do processo de André de Freitas Lessa, sapateiro, acusado de sodomia, denunciado por João Batista em 27 de maio de 1594 e preso por Francisco de Gouveia, meirinho do Santo Ofício em 4 de junho de 1595 em Pernambuco.21 No primeiro caso, o visitador obteve informações de que André Sodré,
... é enfermo da cabeça, lunático que nas conjunções das luas desatina e por ... ser conjunção de lua nova o mandou trazer do cárcere a esta mesa e nela falando com ela o Réu não respondia a propósito e falava despropósitos pelo que entendendo o Sr. Visitador que isto procedia como de enfermidade de aluado se não mandou escrever aqui nada desta sessão e também o alcaide do cárcere disse nesta mesa que os presos que estão no mesmo tronco com o réu diziam estar ele aluado a falar desatinos... 22
O próprio André em sua confissão reproduziria as mesmas idéias, afirmando, por exemplo, que "sarou da enfermidade do miolo de que é muito maltratado pelos tempos das luas". A qualificação dos "enfermos da cabeça" – como "lunáticos" ou "aluados" – era compartilhada pelos eclesiásticos membros da mesa das visitações, pelos outros presos, pelas testemunhas e pelo próprio acusado, o que demonstra que tal concepção encontrava-se difundida entre os mais distintos saberes produzidos e/ou difundidos na sociedade da época. A disseminação dessa concepção pelo senso comum pode ser ilustrada também através do caso de André de Freitas Lessa, que, tentando escapar da condenação, afirmaria numa das sessões da mesa que
... foi já muito enfermo do miolo que pelas luas endoidecia e fazia desatinos fora de seu juízo... algumas luas lhe fazem mal e nalgumas conjunções de lua nova se sente perturbado e alienado do juízo e que uma ou duas vezes das que tem confessado que pecou o nefando estava ele Réu assim alienado do juízo com acidente da lua... 23
Observe-se, ainda, que em ambos os casos a loucura é identificada pelas diferentes instâncias de saber, sobretudo como uma manifestação de ausência absoluta da razão diretamente associada ao delírio, revelando-se, assim, claramente visível.
Ao relacionarem as manifestações da loucura ao período lunar, em alguns dos personagens descritos, os narradores das histórias aqui contadas estariam, portanto, incorporando uma das verdades possíveis sobre a loucura que se encontrava profundamente enraizada na memória do senso comum. A associação entre loucura e lua seria expressa também num dos delírios de Rubião, famoso personagem machadiano, protagonista do romance Quincas Borba:
Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas coisas suntuosas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem, Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dançou, jantou, – e assim outras ações narradas em correspondências de jornais, que ele lera e lhe ficaram de memória. (...) Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!. (Machado de Assis, 1982b:149)24
Ainda em 1926, os deputados integrantes da comissão de saúde pública da Câmara defendiam a reforma da assistência aos psicopatas proposta por Afrânio Peixoto, argumentando tratar-se de uma medida indispensável para "melhorar as condições nosocomiais dos lunáticos". As origens do emprego da palavra lunático para designar os indivíduos alienados são explicadas pelo psiquiatra Plínio Olinto – chefe do serviço de profilaxia das doenças mentais e nervosas da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, em seu relatório de 1921:
Desde a mais remota antigüidade os primeiros higienistas notaram as influências atmosféricas sobre os surtos das doenças, bem como sobre os estados de bom e de mau humor individual e coletivo, não somente do indivíduo são como do alienado, cujas alterações deram tanto na vista do observador que foram eles denominados lunáticos. Porém a influência da lua nas suas diferentes fases nada mais é do que o resultado de um ritmo que coincide com o ritmo das psicoses. (Moreira, 1922:116)
Nos dias de hoje, pelo menos no âmbito do senso comum, a palavra lunático continua sendo usada para designar aqueles que perderam a razão. Trata-se, portanto, de uma forma de se conceber a loucura que, situada nas zonas imprecisas das fronteiras entre os mais variados saberes, deve ser compreendida na interseção entre os diferentes padrões culturais produzidos e disseminados na sociedade.
Outra associação profundamente significativa é a que relaciona loucura à agressividade. Contudo, é preciso notar que, segundo Sigaud, os loucos eram vistos, aos olhos leigos, como "entes inóxios" e nas versões descritas pelos memorialistas, a sua agressividade manifestava-se, sobretudo, como resposta às provocações da população diante das quais reagiam utilizando, como armas, palavras e gestos obscenos, descomposturas, varas, pedaços de ferro – e até mesmo uma espada, como no caso do Não Há de Casar. Dessa forma, os acessos de fúria, marca registrada da loucura para o senso comum, caracterizaram a existência de quase todos os loucos que circulavam livremente pelas ruas da cidade durante o século XIX (Cunha, 1986:78).25 Mas, apesar das perseguições, das vaias, dos risos, das chacotas e das agressões físicas, tais personagens eram também objeto de compaixão, simpatia e consideração; alguns, como a Maria Doida, o Príncipe Obá, o Príncipe Natureza, o Castro Urso, entre outros, chegaram mesmo a ser profundamente estimados, respeitados e até admirados.
Muitos deles recebiam esmolas, alimento e até mesmo um teto para se abrigarem nas casas das famílias vizinhas e amigas. Outros sobreviviam da venda de bilhetes de loteria, cujo sucesso dependia, em boa medida, da simpatia que conseguissem conquistar dos transeuntes, como no caso do Maia. Divertindo a população urbana, exibindo publicamente seus talentos, transformados em personagens – e até em atores – de peças teatrais ou em caricaturas famosas que ilustravam os periódicos da época, os loucos desfrutavam de popularidade e estavam efetivamente incorporados ao dia-a-dia da cidade. Rejeitados e aceitos pelas outras pessoas, reagiam às agressões que sofriam e, de uma forma ou de outra, acabavam conseguindo assegurar para si um espaço na cidade. Nesse contexto, a loucura revelava-se como um "espetáculo de risadas e graçolas" que "tinha às vezes seu lado trágico" (Sigaud, 1835:7). Espetáculo cujo significado talvez se aproximasse muito da liberdade na qual a loucura "aparecia à luz do dia durante a Renascença", "presente em toda a parte e misturada a todas as experiências com suas imagens ou seus perigos" (Foucault, 1972:148).
No romance Quincas Borba, de Machado de Assis, Rubião desfila o "espetáculo de seu delírio" pelas ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro.
Despertando a curiosidade, o riso, a indiferença, a aflição ou a tristeza, o personagem não escapa da tradicional surriada dos moleques e "vadios": "O gira! O gira!". Mas Rubião "não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria..." (Machado de Assis, 1982b:181). A exibição de sua loucura parece provocar um hiato no tempo cotidiano da vida, o mesmo efeito mágico do desfile de uma banda de músicos, cantado em versos por Chico Buarque de Holanda:
Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavam das janelas, muitas suspendiam por instantes os seus pensamentos tristes ou enfastiados, as preocupações do dia, os tédios, os ressentimentos, este uma dúvida, outro uma doença, desprezos de amor, vilanias de amigo. Cada miséria esquecia-se, o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimento durava um relâmpago. Passado o enfermo, a realidade empolgava-os outra vez, as ruas eram ruas, porque os paços suntuosos iam com Rubião. E mais de um tinha pena do pobre diabo; comparando as duas fortunas, mais de um agradecia ao céu a parte que lhe coube – amarga, mas consciente. Preferiam o seu casebre real ao alcáçar fantasmagórico. (Machado de Assis, 1982b:182)
Até pelo menos o último quartel do século XIX a loucura na cidade do Rio de Janeiro era um espetáculo tragicômico, espetáculo cujos papéis representados eram capazes de distinguir a loucura da razão sem excluir a possibilidade da convivência. Diferenciados por meio de suas falas, de seus gestos, de suas posturas, de suas aparências, os personagens aqui descritos eram, ao mesmo tempo, discriminados e tolerados, ridicularizados, agredidos, mas igualmente protegidos e aceitos, objetos, às vezes, de temor, mas não necessariamente, como ressaltou Maria Clementina P. Cunha, de inquietação (Cunha, 1990:13-14).
Afinal, qual seria o perfil social de tais personagens? Observando os retratos de alguns deles, reproduzidos por Mello Moraes Filho, constata-se que os trajes usados indicavam variações quanto às suas origens sociais. Com exceção de Barreto Bastos (corretor da praça do Rio de Janeiro) e do Capitão Nabuco (filho de um desembargador), que possuíam condição social mais elevada, a maioria deles pertencia ao universo da pobreza ou da miséria urbanas, tendo ou não vínculos familiares ou afetivos mais ou menos sólidos. Alguns deles exerciam atividades que lhes asseguravam condição econômica mais estável. Nesta situação estariam, por exemplo, o Bolenga (sacristão), o Príncipe Natureza (servente de uma das repartições da Marinha), o Príncipe Obá (alferes do exército), o João (mestre de escola), o Policarpo (músico da capela imperial) e seu amigo Paiva (empregado dos Correios), o Miguelista (ferreiro), o Dr. Pomada (enfermeiro da Santa Casa e, depois, curandeiro) e o Tomaz Cachaço, que, ensinando doutrina cristã aos escravos novos, conseguia ganhar até mil ou dois mil réis mensais. Outros, como por exemplo a Maria Doida e o Picapau, viviam sob a proteção de pessoas dotadas de recursos.
Havia também os que, apesar de desempenharem atividades cujos ganhos eram incertos, desfrutavam de uma situação econômica relativamente estável. Era o caso do Chico Cambraia, que pertencia à confraria dos Irmãos das Almas, do Padre Quelé, que vivia de esmolas, e do Castro Urso, que vendia bilhetes de loteria e entradas para o teatro. Apenas alguns apresentavam perfil mais miserável, geralmente associado à ausência de laços familiares ou afetivos. Entre estes estariam incluídos o velho da Rua nova d'Ouvidor – que, segundo Sigaud, parecia um mendigo –, o Maia da Praia Grande, que vendia bilhetes de loteria, e a maioria daqueles que viviam de esmolas – como o Ator, o Capitão Sueco, o Praia Grande e o Filósofo do Cais.
Pobres ou miseráveis, tendo ou não relações familiares ou afetivas, maltrapilhos ou bem-vestidos, o fato de esses personagens circularem livremente pelas ruas da cidade significava que os loucos conseguiam manter certo saber e certo poder sobre si mesmos e sobre a sua loucura. Responsáveis pela própria sobrevivência – e, muitas vezes, garantindo a subsistência de suas famílias –, ainda que para isso alguns deles tivessem que apelar, por meio das próprias palavras e/ou ações, para a caridade pública, revelavam-se também plenamente capazes de se proteger contra as freqüentes agressões que sofriam. Não se trata de assumir aqui uma perspectiva marcada por aquilo que Castel (1978:202) chamou de "mito ecológico da loucura", concebendo as atitudes não-medicalizadas diante da loucura como as melhores ou as mais verdadeiras. Trata-se apenas de sublinhar a existência histórica de diversas possibilidades de se conceber a loucura e de se lidar com ela, distintas daquelas que caracterizariam sua transformação em doença mental, submetida ao controle do alienista. Possibilidades que, aliás, não seriam varridas completamente do cenário da cidade, apesar das vitórias profundamente significativas que, como se verá posteriormente, seriam conquistadas pelos psiquiatras a partir do último quartel do século XIX, com o fim da escravidão e com o advento do regime republicano.
Na alvorada do novo século, o XX, para desespero daqueles que desejavam fervorosamente transformar a cidade do Rio em um verdadeiro cartão-postal, tipos populares como o "Seixas, com a cara do Deodoro, sempre descalço, em mangas de camisa...; o Capitão Marmelada, o Mamãe, abobalhado, imundo, com um charuto enorme e sem lume, ao canto da boca, o Tamandaré, e o famoso Inteligente, sempre integralmente bêbado..." (Costa, 1957:87), persistiam de algum modo integrados à paisagem urbana. Dois deles, o Vinte-Nove e o Pai da Criança, contemporâneos do Castro Urso, resistindo incólumes às investidas higienizadoras das primeiras administrações republicanas, continuavam a afrontar, com seus gestos irreverentes, suas palavras impertinentes e seus trajes peculiares, a elegância afrancesada e "civilizada" da Rua do Ouvidor.
Vinte-Nove, que, como o Príncipe Obá, havia conquistado com "brilho e honra" várias medalhas na Guerra do Paraguai, distinguia-se por reagir aos constantes apupos e chufas da molecada, com palavrões e gestos estabanados:
Tem a face congesta, o olho feroz, o cabelo em desordem. Sente-se a boca do homem que vai rebentar em calão.
As senhoras, que conhecem, por tradição, a boca imunda do homem, debandam todas. (Costa, 1957:88)
As "reações desenfreadas" do personagem custavam-lhe, geralmente, várias semanas "passadas a pão e água nos xadrezes das delegacias distritais", transformando-o em alvo predileto das "farpas agudas das gazetas". Vale notar, entretanto, que Luis Edmundo não se refere a qualquer experiência de internação no Hospício Nacional. Segundo João do Rio, o Pai da Criança, a quem teria conhecido pessoalmente, era um "ser repugnante" que "...nascera como uma depravação da Rua do Ouvidor. (...) Só fui descobrir a sua celebridade quando o vi em plena Ouvidor, cheio de fitas, vaiado, cuspindo insolências, inconcebível de descaro e de náusea" (João do Rio, 1987:14).26
Branquinho era outro personagem que, pela mesma época, estava completamente incorporado ao cenário da Rua do Ouvidor:
... era um tiparrão colossal, cara raspada e uma sobrecasaca avoenga. Não era mau rapaz. Tinha apenas um defeito: não trabalhava. Mesmo não tinha tempo. A quebradeira não lhe dava tempo de procurar emprego. Passava o dia na Rua do Ouvidor e vizinhanças, cavando o jantar e o almoço e quando conseguia é que se lembrava de empregar-se. Era tarde, era de noite. De noite não se cava emprego.27
Se o Vinte-Nove, o Pai da Criança e o Branquinho eram o riso da Rua do Ouvidor, a Perereca, que, nesta rua, não passaria de uma "preta velha", era "o regalo, o delírio, a extravagância" da Rua Frei Caneca: "Os malandrins corriam-lhe ao encalço atirando-lhe pedras, os negociantes chegavam às portas, todas as janelas iluminavam-se de gargalhadas" (João do Rio, 1987:14).
"Vadios" ou "vagabundos", vivendo de expedientes e de atividades que, para os padrões das classes dominantes, inseriam-se no universo do não-trabalho, nas fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, muitos desses personagens alternavam dias de liberdade com os de reclusão nas delegacias, na Casa de Detenção e, cada vez mais freqüentemente, no Hospício Nacional, nas Colônias de Alienados e, a partir de 1921, no Manicômio Judiciário. Quando diagnosticados somente como alcoólatras, suas passagens pelas instituições destinadas a alienados, embora numerosas e recorrentes, eram efêmeras. Não que fossem considerados pelos psiquiatras como "entes inóxios", mas, como se verá mais adiante, apenas porque o problema de superlotação desses estabelecimentos tornava-se cada vez mais grave. Se a recusa ao trabalho considerado produtivo e/ou o recurso à bebida eram vistos como sintomas de outros tipos de doenças mentais – epilepsia, debilidade mental, psicose maníaco depressiva etc. –, a estadia era, certamente, mais longa e, por vezes, definitiva.
Vaguear pelas ruas tornava-se, cada vez mais, um sinal que evidenciava e legitimava a internação no hospício. Em abril de 1916, os jornais cariocas noticiavam o encaminhamento para o HNA de uma mulher que fora encontrada pelo delegado do 23° distrito, Dr. Abelardo Luz, vagando noite e dia pelas ruas de Madureira.28 Tratava-se de Thereza Fragoa, que após perder toda a sua fortuna, o marido e a única filha, teria se transformado numa "infeliz louca". Morando em "um casebre... alimenta-se de ervas. Até alta madrugada se ouvem gritos, verdadeiros uivos, desferidos pela demente que, na sua inconsciência de louca, vive a chamar sua filha" (A Noite, 03/04/ 1916). Dessa maneira, a reclusão de Thereza no hospício seria mencionada como prova dos "magníficos resultados" obtidos por meio da última "canoa lançada" pelo Dr. Abelardo Luz sobre a zona de D. Clara.
O espetáculo do delírio continuava a despertar e a prender a atenção dos transeuntes, mas o destino de seus protagonistas passava a ser, cada vez mais seguramente, o hospício. Em janeiro de 1918, um homem
Ia e vinha... pela rua Treze de Maio. Sua fisionomia, ora triste, ora risonha, chamava a atenção. Olhavam-no os transeuntes, tomados logo de uma dúvida que significava não saberem se estavam diante de um espirituoso ou de um maluco.
O homem, João Pedro Ramos, fazia caretas, pulava como um cabrito, gritava, gesticulando, e tantas gatimonhas fez que agora ninguém mais duvida ser ele um tipo completo e acabado de doido. (A Noite, 07/01/1918)
Do 20° distrito, João foi levado para a Polícia Central, "que o fez remover para o hospício". Quatro meses depois, um outro homem colocava a Avenida Rio Branco em polvorosa, proferindo "cousas desconexas", de braços para o ar, nas imediações do bar Americano: "O povo aglomerou-se logo em volta do pobre homem. Em seguida chegou a polícia e o desconhecido, que seria forçosamente um louco, foi enviado à Polícia Central" (A Noite, 29/05/1918). Tratava-se do Comandante João Prates, que há tempos, quando era comandante do "Saturno" do Lloyd Brasileiro foi "acometido de um acesso de loucura". Pouco tempo após ser encaminhado à Polícia Central, João Prates foi entregue à sua família para ser internado em uma casa de saúde.
Os defensores da modernização da cidade, de acordo com padrões de disciplina e moralidade burgueses, dos quais os psiquiatras seriam aliados entusiastas e preciosos, conquistam outras vitórias importantes, conseguindo alterar o perfil e o significado de alguns espaços-chave localizados nas áreas centrais do Rio de Janeiro. O Arco do Teles, que, durante o século XIX, havia-se transformado numa "espécie de Pátio dos Milagres, ... palco de cenas vergonhosas, pouso de desacreditados tipos de rua como o Filósofo do Cais, a Bárbara Onça, e outros", seria um dos alvos privilegiados da ação demolidora dos propugnadores da "civilização" e do "progresso":
Em começos do corrente século, em ação conjunta, a Polícia e a Prefeitura promoveram o saneamento moral e material do Arco do Teles e desde então, removida das proximidades a Praça do Mercado, modificados os costumes, ele ficou sendo simples passagem para trânsito comercial. (Coaracy, 1965: 42)
Destrói-se, assim, a memória dos personagens que deram vida e construíram um significado para esse canto da cidade. O lugar, as pessoas que ele abrigou e até mesmo aquelas que sob sua inspiração contaram e recontaram casos e lendas, perdem paulatinamente a sua história.
No começo do século XX muitos dos personagens cuja trajetória de vida desenrolava-se vacilante nas fronteiras entre a loucura, a embriaguez, a mendicância e a vadiagem conseguiriam preservar, apesar de tudo, as vivências e convivências proporcionadas pela liberdade das ruas. Outros, reclusos no hospício, definitiva ou temporariamente, não deixariam de sonhar com a rua da liberdade:
A rua chega a preocupar os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros andam doidos por se ver cá fora, encontrei planos de ruas ideais, cantores de rua, e um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema que começava assim:
'A rua...
Cumprida, cumprida, atua...
Olé! complicada, complicada, alua
A rua
Nua! ' (João do Rio, 1987:17)