... com o correr dos anos tem crescido a necessidade de dar-lhe [ao Hospício de Pedro II] maior capacidade, e de fundar-se outros em partes diversas do Império para assim oferecer abrigo a esses infelizes, que entregues a sua razão pervertida, e abandonados pelos seus, divagam desnorteados pelo nosso imenso território, servindo de ludíbrio à população.
A progressão numérica dos alienados está na razão direta da propagação dos asilos; isto é, pela propagação dos asilos, se torna conhecido o número dos alienados existentes em um país. A proporção que forem edificados novos Hospícios, a sociedade não conservará em seu seio indivíduos perigosos, fora do meio em que devem existir, pela natureza de sua enfermidade, e pelos cuidados de que carecem.
(Dr. José Joaquim Ludovino da Silva. Relatório apresentado ao Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, de julho de 1866 a junho de 1867).
O asilo sonhado
Apesar da significativa presença dos loucos nas ruas da cidade do Rio durante as primeiras décadas do século XIX, as práticas de exclusão também eram relativamente freqüentes mesmo antes do aparecimento do primeiro hospício da cidade, em 1852. Os loucos que pertenciam às "famílias abastadas" geralmente viviam da forma mais discreta possível, "isolados em quartos fechados, vigiados, alimentados e tratados" (Sigaud, 1835:6). Nesses casos, a família detinha a responsabilidade pela sobrevivência, pelo tratamento e pelo controle do seu louco, embora nos períodos de crise mais violentas pudessem transferir essa responsabilidade, internando-o na Santa Casa de Misericórdia. No entanto, a liberdade desfrutada por aqueles que perambulavam pelas ruas estava assegurada enquanto não assumissem comportamentos considerados perigosos, pois nesse caso poderiam ser presos, recolhidos à Santa Casa ou, ainda, restituídos às suas famílias.
Veja-se, pois, como os aparatos legais então existentes definiam a "periculosidade" do louco, obrigando o seu seqüestro. De acordo com o Código Criminal de 1830, não seriam julgados criminosos – portanto, não poderiam ser punidos – "os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e nele cometerem o crime" (Arts. 10 e 11). O Art. 12 do mesmo código estabelecia que: "Os loucos que tiverem cometido crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou entregues às suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente". O primeiro aspecto a ser ressaltado é o reconhecimento jurídico-legal da autoridade da família, preservada mesmo nos casos em que o louco houvesse assumido atitudes que ameaçassem sua própria segurança ou a de outras pessoas. No entanto, não se previa explicitamente o envio de loucos para a prisão, a não ser nos casos em que no momento do crime a razão e a consciência tivessem sido recuperadas. Critério bastante difícil de ser avaliado mesmo depois da difusão das discussões acerca dos intervalos lúcidos na loucura que mobilizariam psiquiatras, juristas e legistas em fins do século XIX. A adoção desse critério na definição do louco criminoso deixava, portanto, uma grande brecha para que muitos fossem efetivamente enviados para as prisões. Além disso, como inexistiam espaços especialmente destinados "aos loucos que tivessem cometido crimes" na cidade do Rio de Janeiro até o início da década de 20 do século XX,151 é possível supor que a possibilidade de enviá-los às "casas para eles destinadas" referia-se, de fato, à sua reclusão na Santa Casa da Misericórdia ou nas cadeias e casas de correção.
É muito provável também que as condutas assumidas por muitos loucos que circulavam pela cidade os levassem a ser enquadrados nos crimes públicos, particulares e policiais, arrolados nas extensas listas que compõem as Partes II, III e IV do Código Criminal de 1830. Particularmente, os crimes relativos às ofensas da moral e dos bons costumes (Art. 280), bem como à vadiagem e à mendicância (Arts. 295 e 296) podem tê-los conduzido, eventualmente, à prisão.152 Note-se, contudo, que, como visto no primeiro capítulo, a despeito de exibirem publicamente sua nudez, nem o Ator nem o Miguelista parecem ter sido enquadrados no artigo 280 do referido Código. Entretanto, alguns personagens que viviam nas ruas do Rio durante o século XIX, como o Filósofo do Cais, eram por vezes recolhidos à casa de correção ou às prisões – onde permaneciam por um período efêmero – ou sofriam outros tipos de sanção por parte das autoridades públicas – como a experimentada pelo Maia, desapropriado de sua residência móvel por ordem dos poderes locais.
Quanto aos conflitos gerados em torno da agressividade relacionada à loucura, as autoridades policiais tendiam a resolvê-los por intermédio de medidas que definiam o louco não apenas como sujeito, mas também como objeto das hostilidades e que não implicavam necessariamente reclusão. Assim, o Não Há de Casar seria proibido de andar com sua espada e o Padre Quelé seria impedido de usar vestes eclesiásticas. A possibilidade de que as autoridades públicas atuassem como mediadoras nos conflitos entre loucos e não-loucos, ao que tudo indica bastante freqüentes nas ruas da cidade do Rio durante o século XIX, é reforçada pela atitude da Forte-Lida, a qual, como se viu, reclamava contra as provocações e perseguições que sofria aos inspetores de quarteirão. As transgressões referentes aos dois últimos artigos citados poderia, ainda, determinar a exclusão dos infratores, considerados loucos. É o que acontece, por exemplo, com Domitildes de Trindade, presa no juizado do Braz (cidade de São Paulo), em 15 de setembro de 1834. Segundo informações colhidas por Maria Odila da Silva Dias na devassa policial, tratava-se de uma "... mulher parda que vagava pelas ruas sem passaporte, sem licença para esmolar, com um filho nos braços. Foi interrogada; manifestou tais contradições que parecem contínuo delírio; 'por isso a mandei expulsar para fora do distrito...'" (Dias, 1984:28).
A campanha promovida pelos médicos, a partir de 1830, contra a livre circulação dos loucos, teria o primeiro efeito prático nas determinações baixadas pelo código de posturas elaborado pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e promulgado pela Câmara Municipal em 1832. O Título Terceiro desse código legislava sobre os aspectos relativos à "limpeza e desempechamento das ruas e praças", fixando "providências contra a divagação de loucos e embriagados, de animais ferozes que podem incomodar o público". Não podendo, nesse primeiro momento, ser identificados como criminosos, os loucos eram associados aos bêbados e aos animais ferozes, cuja presença nos espaços públicos podia representar ameaça não apenas à ordem e à tranqüilidade públicas, mas também à própria integridade física e moral da população urbana. O estado de embriaguez era, assim, aproximado ao estado de loucura, na medida em que ambos caracterizavam-se pela ausência de consciência nos atos praticados. Nesse sentido, o Código Criminal de 1830 reconhecia o estado de embriaguez como circunstância atenuante na prática dos crimes nele prescritos. No Código das posturas municipais, os loucos e os embriagados eram associados aos animais ferozes, representando, assim, um perigo – diretamente relacionado ao estado de irracionalidade/animalidade – que circulava, sem controle, pelas ruas da cidade. Representação bastante próxima daquela identificada por Castel na França de fins do século XVIII: "O louco reativa a imagem do nômade que vagueia numa espécie de no man's land social e ameaça todas as regras que presidem à organização da sociedade. 'Divagação' assimilada à dos animais ferozes até por uma assembléia tão 'progressista' como a Constituinte..." (Castel, 1978:44).
No que se refere às medidas que deveriam ser tomadas contra esse "perigo", o Código de posturas estabelecia que "os fiscais farão conduzir aos corpos das guardas todo aquele que for encontrado nas ruas em estado de embriaguez: assim como farão conduzir os loucos à Santa Casa". Vale notar que, se circulando livremente pelas ruas os bêbados e os loucos eram identificados à periculosidade dos animais ferozes, no que diz respeito às formas de controle do "perigo", eles seriam diferenciados. Enquanto os primeiros deveriam ser conduzidos aos "corpos de guarda", os segundos não deveriam nem ser restituídos às suas famílias – possibilidade aberta, como visto, pelos legisladores do Código Criminal de 1830 para os loucos que tivessem cometido algum crime – nem entregues à polícia, mas sim encaminhados para uma instituição hospitalar. Assim, entre deixar os loucos sob o poder coercitivo de suas famílias – ou da polícia – ou colocá-los sob o controle dos administradores da Santa Casa, os médicos da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro optaram pela segunda alternativa. Por mais deficiente que fosse (segundo eles próprios) a assistência dada aos alienados naquela instituição, pelo menos lá eles estariam, de alguma forma, equiparados aos doentes, sendo tratados por médicos e enfermeiros, ainda que de forma inadequada à especificidade da sua doença.
Embora no relatório da Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro de 1830 (Jobim; Silva & Santos, 1831:77-80) a loucura já fosse concebida como doença especial, na prática, como não havia um hospício na cidade, restava aos médicos que elaboraram as posturas municipais, promulgadas em 1832, apenas afirmar a identificação dos loucos como doentes, determinando que fossem enviados ao Hospital da Santa Casa. Prática que teria sido efetivamente disseminada durante as décadas de 30 e 40 do século XIX. Pelo menos é o que parece sugerir a afirmação feita pelo primeiro diretor do serviço clínico do Hospital de Pedro II, Dr. Manoel José Barbosa, em seu relatório de 1853: "Já lá vai o tempo em que um inspetor de quarteirão com um simples ofício remetia alienados para a Santa Casa da Misericórdia" (Barbosa, 1853:20). Além dessa instituição, parece ter existido na corte, durante a década de 30 daquele século, um "hospital particular" que "também recebia doentes afetados da loucura ..." (Peixoto, 1837:31).153
Ressalte-se, ainda, que pelo menos alguns dos hospitais pertencentes às irmandades religiosas recebiam alienados mentais. É o caso, por exemplo, do Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, localizado nas proximidades do Mosteiro de Santo Antônio. De acordo com Thomas Ewbank, o andar térreo do hospital, "úmido demais para ser saudável", era ocupado por depósitos de móveis e outros utensílios, "com exceção de quatro pequenos fortes quartos destinados a dementes", enquanto o segundo andar era destinado aos "doentes e seus acompanhantes" (Ewbank, 1973, V. I:136).154
Diferenciados dos doentes, os "dementes" pareciam viver aí uma situação muito próxima a dos alienados internados no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, confinados em cubículos mal-iluminados e malventilados, conforme será visto mais adiante. Por ocasião da visita de Thomas Ewbank, em 1846, dos indivíduos internados na instituição, 19 tinham "doenças comuns" e 2 eram "dementes". Segundo o autor, "destes últimos são admitidos ao Hospital 12 por ano, em média, e o período de confinamento varia entre 4 e 16 dias" (Ewbank, 1973, V. I:137). O caráter efêmero dessas internações parece indicar que, superadas as crises, os loucos eram restituídos às suas famílias.
De qualquer forma, a presença de alienados em hospitais parece ter mesmo se concentrado na Santa Casa de Misericórdia até a criação do primeiro hospício na cidade. Conforme os dados fornecidos pelo Dr. Figueiredo, entre 1839 e 1847 teriam entrado aí 1.157 alienados (830 livres e 327 escravos), dos quais 670 (489 livres e 181 escravos) saíram e 189 (138 livres e 51 escravos) faleceram (Figueiredo, 1847).155 Observe-se que os escravos representavam 28,2% do total dos indivíduos internados num período em que compunham mais de 40% da população da cidade do Rio. Registre-se, contudo, que a presença de cativos no Hospício de Pedro II, ao longo da segunda metade do século XIX, seria reduzidíssima. Essa questão será novamente abordada. Quanto às origens sociais dos alienados livres, provavelmente a maioria integrava os segmentos pobres da população urbana. No entanto, os alienados pertencentes às famílias que tinham condição social mais elevada, eventualmente eram internados na Santa Casa.156
De acordo com o relatório elaborado por uma comissão nomeada pela Câmara do Rio de Janeiro para visitar hospitais e prisões em 1830, os loucos internados na Santa Casa ocupavam uma parte do pavilhão inferior do edifício – onde também estavam localizadas duas enfermarias de cirurgia e a "casa dos inválidos". Quase todos os "doidos" ficavam acomodados
... em uma sala, a que chamam xadrez, por onde passa um cano que conduz as imundices do Hospital. Aqui vimos uma ordem de tarimbas, sobre que dormem aqueles miseráveis, são mais nada do que algum colchão podre, algum lençol e travesseiro de aspecto hediondo: também vimos um tronco, que é o único meio que há de conter os furiosos... Há algunsquartos em que metem os mais furiosos em um tronco comum, deitados no chão, onde passam os dias e as noites, debatendo-se contra o tronco e assoalho, no que se ferem todos, quando ainda não vem outro, que com eles esteja e que os maltrate horrivelmente com pancadas.157
Mas não era apenas a proximidade do esgoto que marcava a presença de uma vizinhança bastante desagradável, aproximando a loucura da "podridão" no Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Segundo Debret (1978, T. II:51),158 as celas para os loucos eram "abertas dos dois lados do corredor abobadado que conduz a imenso pátio onde se situam a seção de dissecação e a porta interna do cemitério...".
Conforme é possível vislumbrar, tomando-se por base as histórias narradas no primeiro capítulo, nas ruas da cidade a loucura e a não-loucura impunham reciprocamente limites às agressões mútuas, viabilizando o convívio entre as diferenças, de modo que os mecanismos de controle – muitas vezes violentos – não eram atributos exclusivos dos que não eram loucos. Contudo, nos espaços de reclusão então existentes, essa situação mudaria substancialmente: o controle da loucura passava a ser assegurado pela submissão à autoridade coercitiva da família, da justiça, da polícia, dos administradores, dos médicos e dos enfermeiros dos hospitais. As possibilidades de reação do louco a esses poderes, embora existentes, seriam, entretanto, bem mais limitadas. De qualquer forma, livres ou reclusos, os loucos, nesse contexto histórico, não eram considerados doentes mentais. A presença de alienados na Santa Casa – e, eventualmente, em outros hospitais e casas de saúde – e o fato de poderem ser tratados por médicos quando mantidos reclusos junto de suas famílias, podem indicar a presença de certa medicalização da loucura, cujo significado seria, contudo, bem distinto daquele que a transformaria em doença mental, colocando-a sob a exclusiva tutela do saber/poder do alienista. Faz-se necessário aqui mais uma vez lembrar que, conforme observou Castel, a presença do médico no cenário da loucura não foi inaugurada com Pinel ou com o nascimento do asilo exclusivamente destinado aos alienados a partir de fins do século XVIII.
Mesmo depois da criação do Hospício de Pedro II, o conceito de doença mental não se difundiria no nível do senso comum pelo menos até fins do século XIX. Escrita em meados dos anos 80 daquele século, a história de Rubião, por exemplo, mostra a precariedade da associação entre loucura e doença mental no universo mental da população leiga de uma cidade do interior. Depois de fugir da casa de saúde onde havia sido internado, Rubião voltou para Barbacena, tendo sido acolhido por sua comadre Angélica, que, depois de algum tempo, percebendo que ele estava completamente "tomado pelo delírio", sai para pedir auxílio à vizinhança:
Alguns antigos desafetos do Rubião iam entrando, sem cerimônia, para gozá-lo melhor; e diziam à comadre que não lhe convinha ficar com um doido em casa, era perigoso; devia mandá-lo para a cadeia... Pessoa mais compassiva lembrou a conveniência de chamar o doutor. – Doutor para quê? acudiu um dos primeiros. Este homem está maluco. (Machadode Assis, 1982b)159
Essas seriam, em linhas gerais, as principais características do contexto no qua l começa riam a a pa recer, a partir de 1830, a s primeira s manifestações médicas a favor da criação de um hospício na cidade do Rio de Janeiro. As denúncias das condições às quais estavam submetidos os alienados internados na Santa Casa de Misericórdia, formuladas naquele ano pela Comissão de Salubridade Geral da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro – constituída pelos Drs. José Martins da Cruz Jobim, Joaquim José da Silva e Christóvão José dos Santos –, marcariam o início das tentativas de implantar o projeto de medicalização da loucura no Brasil. Mediante as denúncias, esses médicos procuravam acompanhar o movimento inaugurado por Pinel em fins do século XVIII, reivindicando a necessidade da construção de um asilo especialmente destinado aos alienados, onde lhes seria proporcionado um "tratamento físico e moral" ao mesmo tempo mais "humano" e mais "eficiente", ou seja, capaz de "restabelecê-los", de resgatá-los à razão. Alguns anos mais tarde, em 1835, o Dr. José Francisco Xavier Sigaud publicava, no Diário de Saúde, um artigo intitulado 'Reflexões acerca do trânsito livre dos doidos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro' e, em 1839, a Revista Médica Fluminense difundia um texto do Dr. Luiz Vicente De-Simoni sobre a importância e a necessidade da criação de um hospício na cidade do Rio de Janeiro (Sigaud, 1835; De-Simoni, 1839).160 Recorde-se, ainda, que em 1837 havia sido defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a primeira tese sobre alienação mental, onde o Dr. Antônio L. da Silva Peixoto revelava-se um ardoroso defensor da necessidade de se isolar o louco, mediante sua reclusão em uma "casa de alienados", mesmo reconhecendo que em certas circunstâncias essa reclusão poderia ser prejudicial. Passemos, então, à análise dos argumentos utilizados por tais médicos na defesa dessa bandeira.
A necessidade de um estabelecimento especialmente destinado aos alienados é associada, em primeiro lugar, à precariedade das condições às quais eles estavam submetidos na Santa Casa da Misericórdia. Segundo o relatório da Comissão de Salubridade, os loucos internados nessa instituição recebiam um tratamento "bárbaro" que, em vez de proporcionar o "alívio" de suas "desgraças", os tornava ainda "mais loucos". Tais denúncias, reafirmadas energicamente pela Comissão da Câmara Municipal encarregada de visitar hospitais e prisões, seriam retomadas, ao longo dos anos 30 do século XIX, pelos Drs. Sigaud, Peixoto e De-Simoni e pelo próprio Provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira. Em resumo, tais críticas questionavam a eficácia terapêutica da internação na Santa Casa contrapondo a imagem das minúsculas celas, verdadeiras "gaiolas humanas" – comparáveis, segundo o Dr. De-Simoni, aos subterrâneos do Hospital de Caridade de Lião, que ainda em 1809 eram habitados por alienados –, onde não havia ar e luz suficientes, nem o espaço, nem o isolamento e nem o silêncio necessários à imagem de um lugar,
... espaçoso, arejado, no meio do campo com ruas d'árvores para o livre exercício dos doidos e com água corrente para banhos frios, que são de tanta necessidade no curativo da loucura! Ali não há prisões, nem pancadas, nem divertimento para os visitantes ou curiosos: há pelo contrário vigilância ativa e inteligente de guardas fiéis, sob a direção de médicos caritativos. O tratamento dos maníacos no Hospital da Misericórdia é uma obra de misericórdia, e nós reclamamos uma obra de filantropia. (Sigaud, 1835:8)161
Tratava-se, portanto, de criar um espaço especializado para o tratamento da loucura, concebida nesse sentido não mais apenas como doença, mas como uma doença específica, isto é, como doença mental. Assim, os meios terapêuticos empregados no tratamento dos alienados internados na Santa Casa – "a lanceta, as bichas, o vesicatório e os remédios da botica", corriqueiramente utilizados no tratamento de várias doenças – eram condenados como inadequados, à medida que agravavam o seu estado mental, inviabilizando a cura de alienações mentais", que, segundo o Dr. De-Simoni, seriam "curáveis" (De-Simoni, 1839:254). Em seu lugar deveria ser adotado um "tratamento físico e moral bem dirigido" – compreendendo, por exemplo, o trabalho, a distração, o exercício ao ar livre e vários tipos de banhos –, baseado nos princípios difundidos por Pinel, Esquirol, Ferrus e "outros médicos filósofos" que, por meio de seu "espírito reformador", aperfeiçoaram o tratamento dos alienados "em quase todas as cidades da França, Itália, Inglaterra e Estados Unidos da América" (De-Simoni, 1839:241-242).
Criticava-se, também, a ausência de médicos destinados exclusivamente aos alienados que ficavam entregues aos cuidados do "facultativo da casa, que como uma panacéia serve para toda a qualidade de moléstia" (De-Simoni, 1839:255). Os meios utilizados no controle dos "furiosos" – a prisão, as pancadas e o tronco, onde também eram castigados os escravos da Santa Casa que cometiam faltas – causavam indignação e eram objeto da mais dura condenação. Em 1837, quando o Dr. De-Simoni era o médico responsável pela enfermaria dos alienados da Santa Casa da Misericórdia, o Dr. Peixoto havia condenado veementemente os métodos violentos utilizados no tratamento dos loucos internados naquele hospital (Peixoto, 1837:40).162 Acusação da qual o Dr. De-Simoni defende-se, alegando os limites do poder médico dentro da instituição. No controle não apenas dos "furiosos", mas de todos os internos, a persuasão deveria substituir a coação. Nada melhor para ilustrar esse aspecto do que a descrição das qualidades que deveriam ser exigidas de um "enfermeiro de alienados", feita por De-Simoni (1839:255-256):
... deve casar a severidade com a doçura, a coragem com a prudência,... ser discreto e caridoso, devendo além disso ter certa esfera intelectual, e moral, que o torne capaz, não sóde bem compreender e cumprir os deveres do seu cargo, mas de entender o médico e o doente... a fim de informar e esclarecer o médico, e ajudá-lo na difícil tarefa de penetrar nos esconderijos do coração humano, que, em muitos alienados... são mais profundos que nas pessoas de mente sã.
Em suma, o enfermeiro idealizado – que, aliás, jamais chegaria a se tornar uma presença real nos corredores dos futuros hospícios – seria um auxiliar perfeito na tarefa de submeter o louco pelo poder da persuasão e de transformar a loucura em objeto de investigação, devassando as suas profundezas mais recônditas.
A reclusão dos alienados na Santa Casa da Misericórdia não se caracterizava por um isolamento absoluto, transformando-os em objeto de "divertimento para os visitantes e curiosos". Segundo o Dr. De-Simoni, eles ficavam "em aberta comunicação com muitas pessoas, expondo-os aos ludíbrios e insultos dos que fazem deles objeto de divertimento", situação muito próxima a "de alguns presos da nossa cadeia pública" que, "contrária aos preceitos da ciência", impedia "uma fácil e pronta cura" dos alienados ali internados, aproximando a instituição de "qualquer estabelecimento do século passado" (De-Simoni, 1839:246).163 No que se refere a esse aspecto, é interessante notar que, mesmo enclausurada, a loucura era exibida. Contudo, diferentemente da presença dos loucos nas ruas da cidade, esse outro espetáculo estaria mais próximo da transformação da loucura em "escândalo público", operada em algumas cidades européias – como Londres e Paris – durante a era clássica, expondo-a do "lado de lá das grades", não mais como "um monstro no fundo de si mesmo", mas como "animal de estranhos mecanismos, bestialidade da qual o homem, há muito tempo, está abolido" (Foucault, 1978:148). Alegando razões de ordem humanitária e de ordem científica, os médicos defendiam o isolamento e a ocultação completa do louco, condenando os espetáculos da loucura que se vinculavam a práticas não medicalizadas.
A superlotação dos pequenos quartos – situados no andar térreo, onde se adotava como único critério de classificação a separação entre os sexos – tornava impossível, segundo o Dr. Sigaud, "o isolamento, e a separação dos idiotas, dos furiosos, dos melancólicos, dos convulsionários", comprometendo-se, assim, os "bons resultados do curativo" (Sigaud, 1835:8). Perspectiva compartilhada tanto pelo Dr. Peixoto quanto pelo Dr. De-Simoni, que condenava não apenas a mistura dos "loucos de todos os gêneros de mania", mas também a de "gente de todas as classes". Mas o espaço medicalizado da internação deveria também assegurar a separação absoluta entre o mundo do asilo e o mundo exterior. Em quase todos os textos examinados o hospício reivindicado é literalmente banido para fora dos limites urbanos, devendo ser construído "nas vizinhanças da cidade" (relatório da Comissão de Salubridade, 1830) ou "no meio do campo" (Sigaud, 1835) ou, ainda, "fora das grandes povoações e cidades" (Peixoto, 1837).
No mundo do asilo, o convívio entre a loucura e a não-loucura seria reduzido aos contatos indispensáveis que ocorreriam sob o olhar vigilante do médico. Com base nas convicções defendidas por Esquirol, expressas em textos como De la Folie, de 1816, e Sur l'Isolement des Alienés, de 1832, buscava-se proteger o louco contra os males que a convivência com as demais pessoas poderiam ocasionar e, ao mesmo tempo, proteger o conjunto da população urbana contra o "perigo" representado pela loucura. Além disso, pelo menos em tese, o isolamento no asilo proporcionaria ao médico maior autonomia, impedindo o exercício de outros poderes – o familiar, o administrativo, o jurídico, o policial etc. – sobre o louco. Porém, mais do que exilar a loucura, o hospício deveria ser organizado de tal forma que, mesmo internamente, não pudessem haver contatos entre os sexos, entre as diferentes condições sociais e, sobretudo, entre os diferentes tipos de doença mental. A eficácia terapêutica da internação estaria, portanto, intimamente relacionada ao aprimoramento e à sofisticação da classificação dos doentes e da doença.
Observa-se, pois, que todas as críticas colocavam em xeque a capacidade não apenas dos administradores leigos e dos enfermeiros, mas também dos próprios médicos da Santa Casa de tratar os alienados aí internados, reivindicando-se todo o poder sobre a loucura para um saber específico e especializado: o saber do alienista. Quanto a isso, o Dr. De-Simoni chegaria mesmo a afirmar: "Nada... de se aumentar edifícios e acomodações para os loucos no hospital da Santa Casa: esses infelizes ali nunca estarão bem; sua sorte ali nunca melhorará consideravelmente; seu interesse pede outro asilo: um manicômio em local separado... [com] uma dotação particular, um patrimônio seu, e uma administração sua..." (De-Simoni, 1839:257). Sonhos de emancipação que só se realizariam de modo completo, como será visto, em 1890, após a instauração do regime republicano.
No conjunto das denúncias formuladas pelos médicos, no entanto, delineava-se claramente o perfil do hospício desejado: "campo de úteis observações" – que acabariam sendo "proveitosas aos doentes, porque quanto melhor estudadas as moléstias, mais conhecidas ficam, e por conseguinte, com mais habilidade são tratadas" – e lugar onde garantia-se "com mais probabilidade de 'sucesso', e de 'certeza', a existência a uns e a cura a outros" (Sigaud, 1835:8). Laboratório de investigação, o hospício representaria uma conquista da ciência, mas antes de tudo seria uma vitória dos próprios "doidos", colocando-os sob o controle exclusivo do alienista. Saber científico e, conseqüentemente, único capaz de proporcionar, por meio de uma prática mais próxima da "certeza" – e com mais chances de "sucesso" – a sobrevivência e/ou a cura ao doente mental. Desse modo, o hospício deveria constituir não apenas um local de cura, mas também o destino para os crônicos incuráveis e um lugar de retorno para aqueles que depois de curados tivessem recaídas. Além disso, apesar de útil para o "interesse moral da sociedade", a criação de uma "casa de doidos" atenderia prioritariamente aos interesses "dos infelizes maníacos" que, "abandonados a si", revelariam forte inclinação ao suicídio. Sob a tutela do alienista, o louco estaria "protegido" da sua própria loucura.
Na tentativa de conquistar o poder absoluto sobre a loucura, o primeiro objetivo dos médicos seria retirar do próprio louco qualquer resíduo de poder sobre si mesmo e sobre a loucura que ele pudesse ter preservado. Assim, argumentando que o hospício atenderia antes de tudo ao interesse do próprio louco, o médico atribuía-se o direito e o poder de falar por ele. Entretanto, procurava-se acentuar que "abandonados a si mesmos", os loucos representariam ameaça, antes de tudo, à sua própria sobrevivência. Conforme assinalou Foucault (1985:127), as justificativas para a instalação das grandes estruturas asilares a partir do começo do século XIX baseavam-se, sobretudo, no "direito absoluto da não-loucura sobre a loucura". É nesse sentido que se pode entender a perseguição obsessiva do médico à permanência dos loucos nas ruas, talvez o único espaço onde tivessem conseguido manter algum tipo de poder sobre si mesmos e sobre a sua loucura.
Na argumentação em defesa da construção de um hospício na cidade, embora de forma tímida e vacilante, os médicos arriscariam um questionamento da tutela familiar sobre a loucura. O isolamento dos loucos em estabelecimentos especiais seria visto pelo Dr. Peixoto como um aspecto positivo, dentre outras coisas, por impedir que os familiares influenciassem negativamente no tratamento, conferindo maior autonomia aos médicos. Apesar de receberem tratamento "humanitário", os loucos que viviam com suas famílias estavam condenados à reclusão em "aposentos pequenos e pouco arejados", o que, segundo o Dr. Sigaud, tornava "quase sempre ineficaz o curativo". Aqui questionava-se a eficiência terapêutica de um tratamento que escapava ao controle mais estrito não apenas dos especialistas, mas de qualquer médico. Para o Dr. Peixoto, a escolha do melhor tratamento ou da melhor estratégia para lidar com a doença mental deveria depender unicamente do discernimento e do bom senso pessoal do médico, na medida em que ele deveria "ser investido de um poder superior em tudo o que respeita o serviço particular dos doentes".
Além disso, os loucos mantidos sob a responsabilidade de suas famílias eram uma "vizinhança incômoda, e às vezes insuportável", caracterizando-se, em certa medida, como elementos de perturbação da tranqüilidade pública. Pelos cuidados que exigiam e pelos problemas que podiam criar, esses loucos tornavam-se "um fardo penoso" para suas famílias. O hospício era, assim, colocado como uma alternativa para as famílias que quisessem se livrar desse ônus. Contudo, pelo menos neste primeiro momento o médico não se lançaria em termos mais firmes no propósito de destituir o poder familiar sobre o louco. A intenção de abrir as portas do futuro hospício para esses "enfermos" pensionistas parece se prender mais à possibilidade de baratear os custos de funcionamento da instituição do que entrar em confronto com o poder familiar.164
No entanto, o alvo prioritário a ser atingido com a criação de um estabelecimento para alienados compreendia os loucos que circulavam nos espaços públicos, a maioria dos quais, como se viu, pertencia aos segmentos pobres e miseráveis da população urbana. Conforme argumentava Sigaud, para essa "ordem de doidos" a vigilância da Câmara Municipal deveria ser mais rigorosa, pois ao lado dos mendigos, dos leprosos e dos bêbados representavam uma grande "ameaça" à integridade física e moral da população urbana. Não obstante serem "entes inóxios", podiam
... às vezes enfurecer-se e cometer atos homicidas de repente, e deste modo privar uma família de um filho amado... ou de uma pessoa útil... Na verdade a sociedade nada ganhacom o espetáculo ridículo e hediondo de certos doidos; a moral pública sofre com sua presença nas ruas; ... e a segurança dos habitantes corre riscos que pode (sic) comprometer a vida de alguns deles. (Sigaud, 1835:7)
A inofensividade dos loucos seria, pois, apenas aparente. Imperceptível aos leigos, o caráter imprevisível da loucura transformava-a num "perigo" que deveria ser eliminado das ruas da cidade por meio da reclusão dos loucos no hospício. Entregues a si mesmos e convivendo cotidianamente com a população sadia, esses loucos não representavam somente uma ameaça à integridade física das outras pessoas, mas também um exemplo pernicioso em termos morais e sociais. Embora, como se viu, a maioria desses personagens tivessem algum tipo de vínculo familiar ou estivessem integrados em relações de vizinhança e de solidariedade, sob a visão médica apareciam como indivíduos completamente sós e abandonados que sobreviviam mediante atividades consideradas inúteis ao progresso da sociedade, devendo, portanto, ser recolhidos ao hospício para preservar aqueles que, em oposição, fariam falta não apenas às suas famílias, mas à própria sociedade. Quanto a isso, o hospício é visto como um benefício para as famílias, para a capital do Império, para o Brasil e, mais uma vez, para o próprio "doido", que, "lançado fora do seio de sua família", nele seria restituído à comunidade dos homens, dos cristãos e dos "seus patrícios" (De-Simoni, 1839:269).
Isolando a loucura, circunscrevendo-a em um espaço especificamente destinado para ela, o hospício seria um meio eficaz de controlar o "perigo" que ela representava circulando livremente pelas ruas da cidade. Nesse sentido, a defesa da criação de um estabelecimento para alienados inscrevia-se em um projeto político mais abrangente que objetivava a normatização dos comportamentos da população urbana de acordo com padrões higiênicos, difundidos pela produção da Academia de Medicina do Rio de Janeiro e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro desde a década de 30 do século XIX. Inspirado sobretudo nas concepções formuladas pela medicina social francesa, tal projeto se orientava para conter aquilo que era visto como o caos urbano herdado do período colonial, por meio da produção de um conhecimento que continha a perspectiva de intervenção sobre todos os aspectos do cotidiano urbano. A situação caótica estaria expressa não apenas nas constantes epidemias que grassavam pela cidade, mas também nos hábitos e posturas assumidos pelos escravos e pelos setores pobres livres e libertos – que representavam uma alternativa aos valores e padrões culturais criados e difundidos pelos setores dominantes – e, portanto, nas tensões sociais que se revelavam cotidianamente.
Desde o século XVIII, a cidade do Rio de Janeiro adquiria crescente importância como principal porto escoador da produção mineira e, a partir de 1763, como centro político-administrativo. A transferência da Corte portuguesa e a abertura dos portos em 1808 determinaram considerável impulso no processo de crescimento da cidade. Desde então, o aumento populacional tendeu a se acentuar pela fixação de portugueses – e, em menor escala, de franceses, ingleses etc. –, incentivado pelo desenvolvimento das atividades políticas, administrativo-burocráticas, comerciais e artesanais. Com a expansão cafeeira no Vale do Paraíba, a cidade consolidou sua importância como centro político, financeiro e comercial nos anos 30 do século XIX. O crescimento demográfico revela-se como importante índice para a avaliação das transformações que modificavam, paulatinamente, o seu perfil.
Segundo Eulália Lobo, em 1799 somente a área urbana da cidade – composta pelas paróquias de Sacramento, Candelária, São José e Santa Rita – possuía um total aproximado de 43.376 habitantes, dos quais 14.986 eram escravos. Em 1821, a cidade – compreendendo as áreas urbana e suburbana – atingia um total de cerca de 112.695 habitantes, dos quais 55.090 eram escravos; em 1838, de aproximadamente 137.078, dos quais 58.553 eram escravos; e, em 1849, de aproximadamente 266.466, dos quais 110.602 eram escravos. Observa-se, pois, que durante a primeira metade do século XIX a presença de escravos na cidade era profundamente significativa – em 1799, representavam 34,5% da população total; em 1821, 48,8%; em 1838, 42,7%; e, em 1849, 41,5% (Lobo, 1976)165 –, o que lhe conferia feições bastante distintas daquelas que caracterizavam as principais cidades européias na mesma época.
Profundamente norteados pelas concepções formuladas por higienistas, filantropos, alienistas etc., que, transformando os principais centros urbanos europeus (tais como Londres e Paris) em laboratórios de observação, buscavam um "remédio" para as condições "degradantes" que iam "da insalubridade física do meio à miséria, à imoralidade ou ao vício" (Castel, 1978:132-133), os médicos da Academia de Medicina levantaram a bandeira em defesa da construção de um hospício, a partir de uma leitura, dentre outras possíveis, das condições concretas que caracterizavam a loucura na cidade do Rio de Janeiro na época, mediante a descrição de sua presença nas ruas, nas residências particulares e na Santa Casa da Misericórdia. No que se refere a esse ponto, os médicos da Academia abordaram a questão de um modo distinto do adotado pelo Dr. Peixoto, único dentre os autores examinados que contava com formação mais especializada no campo das doenças mentais, adquirida, possivelmente, na própria elaboração da tese que lhe conferiu o título de doutor pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com exceção de algumas críticas à Santa Casa – formuladas com base em uma entrevista com o Dr. De-Simoni, então responsável pelos alienados aí internados –, o autor não revela qualquer preocupação com o fim de descrever e avaliar as condições de existência dos loucos na cidade do Rio de Janeiro na época. Assim, a defesa da necessidade de isolar a loucura, assegurando tratamento mais adequado e mais eficiente ao alienado, é pautada quase exclusivamente nas idéias desenvolvidas por Pinel, Esquirol, Frank, Foville, Georget, Dubois, Broussais, entre outros, sendo, portanto, puramente teórica. Diferentemente, portanto, do Dr. De-Simoni, cujas concepções aliam o contato com essa mesma produção e as experiências concretamente vivenciadas no tratamento dos alienados do Hospital da Misericórdia.
É possível que tal aspecto revele uma diferença entre a produção da Faculdade de Medicina – pelo menos nesse primeiro momento, mais teórica, limitando-se quase reservadamente a reproduzir as concepções médicas estrangeiras – e a da Academia de Medicina – que procurava conferir um sentido prático às idéias européias, tentando, de alguma forma, adaptá-las às circunstâncias específicas do contexto brasileiro. Embora oficialmente ambas as instituições fossem definidas como instâncias especializadas na produção de um saber destinado a viabilizar a higienização do espaço urbano,166 parece que quanto a isso caberia à segunda um papel mais efetivo. Recorde-se, por exemplo, que o Código das posturas municipais de 1832 seria elaborado pela Sociedade de Medicina e que a campanha que culminou na construção do Hospício de Pedro II seria conduzida pelos médicos a ela pertencentes, aliados ao Provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira.
"Empresa útil e generosa", fruto da "associação feliz do coração com o espírito, da caridade, e da religião com o saber, e a experiência", "obra de filantropia e não de misericórdia", para esses médicos, o hospício representaria, em suma, um avanço das "luzes e da civilização". E seria, sem dúvida, o primeiro passo a fim de transformar a loucura em doença mental, construindo-a como objeto exclusivo do saber e da prática alienista. Saber científico e, logo, único capaz de detectar a verdade sobre a loucura. Prática científica e, portanto, única capaz de proporcionar a melhoria ou a cura da doença e de proteger o louco contra a sua própria loucura. Mas apenas o primeiro passo nesse sentido, uma vez que, como será visto, a presença efetiva do hospício na cidade a partir de meados do século XIX não determinaria a medicalização da loucura tal como ela é proposta nos textos examinados.
A campanha dos médicos articulada pela Academia Imperial de Medicina, aliada às insistentes reclamações dirigidas ao Ministro do Império pelo Provedor da Santa Casa da Misericórdia, José Clemente Pereira, por intermédio dos Relatórios de 1839 e de 1841 – em que insistia na "necessidade de dar-se princípio a um hospital destinado privativamente para o tratamento de alienados"167 – acabariam surtindo efeito. Assim, por meio do decreto n° 82, de 18 de julho de 1841, o Imperador, "desejando assinalar o fausto dia" da sua "sagração com a criação de um estabelecimento de pública beneficência", fundou "um hospital destinado privativamente para tratamento de alienados, com a denominação de – Hospício de Pedro Segundo...". A escolha dessa medida para imortalizar "o grande dia da coroação e sagração" do monarca parece bastante significativa, revelando, de um lado, um certo prestígio da Academia de Medicina junto do governo monárquico e, de outro, a disseminação da visão médica segundo a qual o hospício – resultado de uma aliança entre a caridade, a religião, o saber e a experiência – representaria, em suma, uma vitória das "luzes e da civilização". Nesse sentido, a inauguração do Hospício de Pedro II, em 5 de dezembro de 1852, foi noticiada na imprensa como "um grande triunfo das idéias filantrópicas" que colocava o Rio de Janeiro no "caminho dos progressos materiais", marcando "uma era notável na civilização do país". E um de seus idealizadores, o Senador José Clemente Pereira, "nunca deixará de ser lembrado pelos brasileiros amantes da civilização e do progresso material de seu país" (Marmota Fluminense, 10/12/1852).168 A partir de então, da Corte seriam irradiados por todo o País muitos outros focos de "progresso" e de "civilização". O Asilo Provisório de Alienados da cidade de São Paulo, criado pela lei provincial de 18 de setembro de 1848, seria inaugurado quase simultaneamente ao Hospício de Pedro II, em 1852 . Esta belecimentos especialmente destina dos a os a lienados começariam a surgir em Pernambuco, na Bahia, no Pará, na Paraíba, no Rio Grande do Sul, enfim, por todo o Brasil.
A instituição possível
Poucos meses depois de promulgado o decreto de 18 de julho de 1841 foram removidos nove alienados para as instalações provisórias, situadas na chácara do Vigário-Geral. Em 11 de novembro de 1842, o Dr. José Martins da Cruz Jobim foi nomeado primeiro médico dessa seção isolada do Hospital da Misericórdia, pela mesa administrativa do Hospício (Calmon, 1952).169 Dez anos mais tarde, o prédio do Hospício de Pedro II estava praticamente concluído, sendo benzido em 30 de novembro de 1852 e inaugurado cinco dias depois com os discursos de José Clemente Pereira – Provedor da Santa Casa de Misericórdia –, do Dr. José Martins da Cruz Jobim – então diretor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro – e do Dr. Francisco de P. Cândido – membro da Academia de Medicina –, numa solenidade na qual a fé, a filantropia e a ciência confraternizavam-se, comemorando uma vitória comum. Segundo o Dr. Manoel José Barbosa, primeiro diretor do serviço clínico do hospício, o estabelecimento começou efetivamente a funcionar desde 9 de dezembro de 1852, com 144 alienados, dos quais 76 (41 homens e 35 mulheres) eram provenientes do Hospital da Misericórdia e 68 (33 homens e 35 mulheres) da enfermaria provisória da Praia Vermelha (Barbosa, 1852/1853).170
Caracterizado por suas "belezas, asseio e comodidades", o edifício do Hospício de Pedro II compunha-se de "enfermarias imensas, alas arejadas e claras; casas dispostas com a maior segurança para banhos e moradias dos doidos furiosos; jardins, e recreios", tudo concebido com a finalidade de "mudar a sorte desses infelizes, até aqui mesquinha e inevitável" (MarmotaFluminense, 10/12/1852). Alguns anos mais tarde, Elizabeth Agassiz colheriaimpressões muito parecidas durante a sua primeira visita a esse Hospício. Eis seus passos desde a entrada do edifício:
Transpusemos as grades e, como o grande portão ... estava aberto e o porteiro não pareceu se opor, subimos as escadas e fomos caminhando em frente. É difícil imaginar um edifício mais bem adequado aos seus fins. Só vimos, é verdade, as salas públicas e os corredores, porque é necessária uma licença para visitar o interior; mas uma planta suspensa na parede do vestíbulo permite fazer idéia das instalações, e o aspecto geral atesta a limpeza, o cuidado extremo e a ordem que reinam em toda parte. (...) Chegamos ao andar superior, o som da música nos guiou para a porta da capela onde se celebravam os ofícios da tarde. Os enfermos e suas enfermeiras estão todos ajoelhados; um coro de vozes femininas se eleva, doce, calmo, tranqüilo ... Oh! sem dúvida, a razão que se perdeu pode encontrar de novo o seu caminho e retomar o seu lugar, sob tais influências e em semelhantes condições! (Agassiz & Agassiz,1975:67-68)
Planejado pelos arquitetos Domingos Monteiro, José Maria Jacinto Rebelo e Joaquim Cândido Guillobel,171 o prédio era disposto em um grande retângulo, compreendendo quatro grandes pátios internos, separados pelo corpo central da construção, garantindo-se assim o distanciamento entre as alas masculinas e femininas do asilo. A existência de apenas uma entrada – localizada no bloco central – concretizava a perspectiva de isolar o mundo do asilo do mundo exterior, reforçada por sua localização num sítio relativamente afastado. Mas tais características não seriam suficientes para atender às exigências médicas de isolamento. Em 1855, o Dr. Manoel Barbosa solicitava ao Provedor da Santa Casa a colocação de um gradil na frente do edifício, "para evitar toda a comunicação do público com os alienados" (Barbosa, 1856). Embora fosse necessária uma licença especial para visitar o interior do estabelecimento, independentemente da existência das grades, o acesso às salas públicas e aos corredores era livre, conforme assinalou Elizabeth Agassiz.
Situado num dos locais mais bonitos da cidade, o Hospício de Pedro II acabaria se transformando numa opção para os passeios dominicais: "Já passou o tempo em que ninguém se atrevia a entrar em um hospital de doidos ... onde eram encarcerados os míseros, como se fossem feras. Acorrentados, presos ao tronco ..." (Azevedo, 1877, V. I:394).172 Reclusa no hospício, a loucura era "humanizada" e exibida como verdadeiro troféu dos médicos. Nessas exibições, os loucos desempenhavam papel secundário, pois a grande estrela do espetáculo era a obra filantrópica e científica da medicina. Espetáculo, enfim, bastante distinto das exibições públicas da loucura nas ruas da cidade e no Hospital da Misericórdia. Mas havia um outro lado desse espetáculo da loucura reclusa que, contrariando os idealizadores do hospício, aproximava de forma íntima o Hospício de Pedro II do Hospital da Misericórdia. Raul Pompéia apreende de modo bastante perspicaz esse outro significado do espetáculo:
No domingo, abriram-se à visitação do público as portas do Hospício de Pedro II. A afluência foi considerável como em todas as visitas de hospitais, espetáculos do sofrimento a que o povo transporta a sua curiosidade, com uma pontinha de ânimo perverso, que vem do circo romano, no caráter latino. (Pompéia, 1982, V.6:71)173
Um outro significado da presença do visitante no interior do mundo asilar pode ser apreendido por meio das idéias expressas pelo Dr. José Pereira Rego no discurso pronunciado em 30 de junho de 1878 durante as comemorações do aniversário da Academia Imperial de Medicina. De acordo com esse médico – baseado nas concepções de Falret –, se a presença dos parentes e dos antigos conhecidos irritava os alienados, estimulando seus delírios, o contato com os "visitadores ordinários" e com os "visitantes em particular", preenchia "o sentimento mais inerente à natureza humana, o sentimento da sociabilidade", constituindo-se "distração agradável em um asilo, onde tudo é submetido a regras, senão severas, pelo menos uniformes ...".174 O convívio com parentes e amigos, situado fora dos limites circunscritos pelo olhar vigilante do médico era visto, portanto, como algo pernicioso. No entanto, os contatos proporcionados pelas visitas ao hospício, submetidos, em tese, ao controle do médico, eram vistos até mesmo como um instrumento capaz de contornar algumas falhas do próprio sistema asilar.
A construção tornava claramente visível o primeiro critério de divisão do espaço interno, aquele que separava os homens das mulheres. As obras do edifício seriam concluídas em março de 1855, e somente em maio desse ano o Dr. Manoel Barbosa conseguiu efetivar a separação dos "doentes em duas grandes divisões sexuais, ocupando os homens a ala esquerda e as mulheres a ala direita", situadas em "local separado e sem nenhuma comunicação entre si: a vigilância se exerce com muita facilidade, e todo o serviço tornou-se mais cômodo" (Barbosa, 1856:99). O esquadrinhamento do interior do hospício deveria atender, portanto, em primeiro lugar, a uma finalidade de controle. De acordo com os autores de Danação da Norma, as possíveis imperfeições produzidas pelo olhar leigo do arquiteto deveriam ser corrigidas pela regulamentação da ocupação do espaço, fundamentada na concepção de Esquirol, segundo a qual "no hospício o que cura é o próprio hospício, é a organização do espaço e a conseqüente localização do indivíduo em seu interior" (Machado et al., 1978). Não obstante as críticas coevas que questionavam a adequação da arquitetura suntuosa do edifício do Hospício de Pedro II à sua finalidade, não teria faltado a Domingos Monteiro, segundo Calmon (1952:25), "uma ampla informação sobre as exigências ideais de um hospital desta natureza".175 Entretanto, para o Dr. José Joaquim Ludovino da Silva – sucessor do Dr. Manoel Barbosa na direção do serviço sanitário do HP II –, a arquitetura do estabelecimento era contrária às concepções de Esquirol, segundo as quais o asilo de alienados deveria ser o principal instrumento de tratamento. Na sua opinião, a construção de asilos destinados a alienados deveria ser "principalmente subordinada a um fim médico especial. O Hospício de Pedro II é por demais ostensivo na sua arquitetura, e nem se diga que há melhores na Europa como asilos propriamente ditos" (Silva, 1868:187).
De acordo com os estatutos aprovados pelo decreto 1.077, de 4 de dezembro de 1852, as portas do hospício estavam abertas aos "alienados de ambos os sexos de todo o Império, sem distinção de condição, naturalidade e religião". Desse modo, a caminho da reclusão, os alienados eram igualados em sua loucura. Mas, uma vez transposta a entrada do hospício, a igualdade cederia lugar às diferenciações que conferiam múltiplos rostos à loucura. Dentro do hospício, além da divisão entre os sexos (Art. 18), os alienados passavam a ser discriminados, por um lado, de acordo com suas origens sociais, que os dividia em duas categorias: a dos admitidos gratuitamente – os indigentes, os escravos cujos senhores não possuíssem outros e não tivessem meios de custear seu tratamento, e os marinheiros de navios mercantes (Art. 5) –; e a dos pensionistas, compreendendo os de primeira classe – com direito a quarto separado com tratamento especial –, os de segunda classe – com direito a quarto para dois alienados, com tratamento especial – e os de terceira classe – pessoas livres ou escravas que ocupariam as enfermarias gerais (Art. 7). Por outro lado, os internos eram diferenciados pelo comportamento que manifestavam. Os indigentes e os pensionistas de terceira classe eram distribuídos nas seguintes subdivisões: 1ª) de tranqüilos limpos; 2ª) de agitados; 3ª) de imundos; 4ª) de afetados de moléstias acidentais. Os pensionistas de primeira e de segunda classes seriam separados em apenas duas subdivisões: 1ª) de tranqüilos; 2ª) de agitados (Art. 19).
Conforme observaram os autores de Danação da Norma, as classificações adotadas nas divisões e subdivisões do espaço interno do hospício estabeleciam "contato organizado" entre as pessoas do mesmo sexo, da mesma condição social e que manifestassem o mesmo "tipo de comportamento". Quanto a isso, o Dr. Ludovino da Silva condena o isolamento absoluto, considerando-o como "uma causa moral mórbida" que atua "sobre as já existentes da alienação". Assim, o convívio entre a maioria dos "doentes" nos dormitórios, nas salas de reuniões e no trabalho, observado no estabelecimento, é elogiada pelo médico: "Eis a vida em comum constituindo outra base de tratamento" (Silva, 1868:214). Mas se a aproximação entre os doentes e as doenças semelhantes é considerada saudável e, assim, incentivada, a possibilidade de contato entre os diferentes grupos seria veementemente condenada por esse mesmo médico.
Extremamente simples, as divisões internas do Hospício de Pedro II pautavam-se em critérios que remetiam ao mesmo tempo à condição social, aos hábitos de higiene, à presença ou não de outras moléstias, à visibilidade ou invisibilidade da loucura e à periculosidade ou inofensividade do louco. Para o Dr. Ludovino da Silva, a separação entre tais divisões era bastante precária, já que, na prática, havia contato entre diferentes estágios e tipos de doença mental, o que viabilizava a disseminação no interior do hospício dos riscos do contágio. A "promiscuidade" entre os doentes mentais produzia "a confusão, a desordem e a anarquia", sendo, portanto, imprescindível sofisticar as subdivisões do espaço interno do Hospício mediante a adoção de uma classificação que, mais próxima da nosografia médica, comportasse as "diversas gradações" da loucura: "A idéia de criar-se categorias na classificação das moléstias mentais (...) é uma necessidade irrecusável reclamada pelo tratamento, pela moral, pela higiene e pela disciplina do estabelecimento" (Silva, 1868:187). Num sentido bastante próximo, Jeremy Bentham defendia a separação dos prisioneiros do Panóptico em classes e grupos, evitando-se assim que a prisão se transformasse numa "... cloaca, onde aquele que é meio corrompido é logo atacado por uma corrupção total e onde a fetidez do ar é tanto menos prejudicial à saúde quanto a infecção moral é perigosa para seus corações" (Bentham, 1987:213).176
A classificação que vigorava no funcionamento do estabelecimento estava, pois, defasada em relação a alguns dos princípios básicos que norteavam os padrões de medicalização da loucura. Mas se a mistura entre diferentes tipos de doença e de doentes mentais constituía-se obstáculo para que a instituição cumprisse seu papel de forma eficiente, a presença de pessoas e de serviços que nada tinham a ver com a assistência a alienados mentais no interior do edifício do Hospício de Pedro II agravava ainda mais essa situação. A existência de um "consultório gratuito" destinado a atender à clientela pobre das proximidades e a "presença de algumas meninas filhas de mulheres pobres que morrem no Hospital da Misericórdia, as quais ali recolhidas aprendem a ler, a escrever e trabalhos de agulha" (Azevedo, 1877, V. I:390 e 393, respectivamente),177 comprometiam a especialização da ocupação do espaço arquitetônico do Hospício.
No que se relaciona à arquitetura do prédio do Hospício de Pedro II, outro aspecto deve ser mencionado. Sob a capela, localizada no andar superior do corpo central, ficava a farmácia.
Não sei se foi parte do plano diretor do projeto colocar, no centro do hospital, seus órgãos curativos; o espiritual no plano mais elevado, sobre o material, como a indicar que naquela casa se deveria subir direto ao Sagrado e que daí deveriam partir as demais atividades, a Ele subordinadas. (Lopes, 1966:338)178
A observação de Lopes é bastante significativa. A subordinação da farmácia à capela na linguagem da arquitetura do hospício poderia indicar que a convivência no cotidiano do mundo do asilo entre o poder médico e o poder religioso caracterizava-se pela subordinação do primeiro ao segundo. Contudo, ela poderia revelar também que ao médico caberia uma missão não apenas científica, mas também cristã, o que revestia sua atividade de um caráter santificado, subordinando-o não ao poder da Igreja, mas diretamente ao poder de Deus.
Nesse sentido, é interessante lembrar que o ritual para a colação do grau de doutor em medicina é feito durante o período monárquico da seguinte forma:
O doutorando, de joelhos, põe a mão sobre um livro dos Santos Evangelhos e profere o seguinte juramento: 'Juro aos Santos Evangelhos que no exercício da Medicina serei sempre fiel aos deveres da honra, da ciência e da caridade'. O doutorando levanta-se, e, pondo a mão sobre as obras de Hipócrates, continua: 'Prometo sobre as obras de Hipócrates que, penetrando no interior das famílias, os meus olhos serão cegos, e minha língua calará os segredos que me forem confiados; nunca de minha profissão me servirei para corromper os costumes, nem para favorecer o crime179
Por meio do gesto e das palavras proferidas em juramento, o médico transforma-se em uma espécie de missionário divino. Promete guardar os segredos a ele confiados – por ser detentor de um saber capaz de o conduzir a verdades inalcançáveis para os demais mortais – como se fossem segredos de confissão. Compromete-se, enfim, a jamais usar a sua "superioridade" – também devida a seu saber "iluminado" – para o mal, corrompendo os costumes ou favorecendo o crime. Conforme observado em outro trabalho (Engel, 1989), o embate entre ciência e fé que configurava a disposição médica para transformar o pecado em doença e de despojar a autoridade exercida pelo padre no âmago da família não determinaria, pelo menos durante o século XIX, a negação ou a ruptura com o ideário cristão. Ao contrário, o discurso médico acabaria por recriá-lo, transformando-o em instrumento eficaz na superação dos obstáculos que se interpunham entre a "vontade de saber" do cientista e os objetos situados em seara alheia – dominados ou monopolizados, por exemplo, pelo saber/poder da Igreja.
Compete mencionar, ainda, que a ornamentação do edifício do Hospício de Pedro II contava com a presença de sete estátuas de mármore de Carrara, encomendadas ao alemão Pettrich: a da Ciência, a da Caridade, a do Imperador, a de José Clemente Pereira, a de São Pedro de Alcântara e as de Pinel e Esquirol. Desse modo, o hospício sintetizaria, na linguagem expressa em sua arquitetura, uma rede de relações entre saberes e poderes pertencentes a diferentes instâncias dominantes – compostas por médicos, religiosos, filantropos e pelo próprio governo monárquico. Entretanto, é preciso ressaltar que as entradas das duas seções principais, a masculina e a feminina, eram respectivamente guardadas por Pinel e Esquirol, o que parece indicar o desejo de reservar a intimidade do mundo asilar ao domínio exclusivo do médico. No entanto, a perspectiva médica de conferir ao hospício um significado que o definia, em suma, como produto da "feliz" associação entre a "caridade" e o "saber" parece ter sido colocada, ironicamente, em xeque pelo senso comum: as "más línguas disseram desde logo que a Ciência e a Caridade não haviam entrado no Hospício, pois que suas estátuas foram colocadas fora dos muros, ao lado dos degraus do pórtico granítico" (Lopes, 1966:340).180
De acordo com os estatutos de 1852, o Hospício de Pedro II destina-va-se "privativamente para asilo, tratamento e curativo dos alienados" (grifos meus). Dessa forma, pelo menos teoricamente, a instituição destinava-se não apenas a excluir, mas também a tratar e a curar os alienados. O serviço sanitário ficaria a cargo de facultativos clínicos de cirurgia e medicina – servindo um de diretor – auxiliados por irmãs de caridade, enfermeiros, enfermeiras etc. (Art. 4). Em cada divisão sexual haveria um facultativo clínico encarregado do tratamento e curativo dos respectivos alienados (Art. 21). Assim, a partir de 20 de dezembro de 1852, o Dr. José Manoel Barbosa assumiria a responsabilidade por todo o serviço clínico do Hospício de Pedro II, auxiliado pelos Drs. Lallemont – encarregado da repartição feminina – e Pereira das Neves – encarregado da repartição masculina; único dentre os três médicos que teria tido preparação para atuar no âmbito da medicina mental.181 De modo geral não se exigia que os médicos do estabelecimento tivessem formação especializada no tratamento das doenças mentais, o que contrariava as expectativas dos defensores da criação do hospício. Contudo, se estabelecida, tal exigência dificilmente poderia ser cumprida, pois, como visto, apesar de já haver o esboço de um saber alienista desde fins da década de 30 do século XIX, a psiquiatria só começaria a se constituir como campo autônomo e especializado do conhecimento médico desde a reforma do ensino superior, promulgada pelo decreto n° 7.247, de 19 de abril de 1879, que criou a cadeira de clínica psiquiátrica nos cursos ordinários das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. De qualquer forma, é preciso considerar que mesmo possuindo formação em medicina generalista, os médicos que exerceram a função de clínicos do Hospício de Pedro II acabariam por adquirir, na prática, uma formação alienista, decorrente fundamentalmente do contato cotidiano com a alienação mental.182
O número de médicos existentes no Hospício de Pedro II era, no entanto, insuficiente. Já em 1855, o Dr. Manoel Barbosa queixava-se de continuar a ter a seu cargo todo "o serviço clínico", pois "a população do Hospício tem aumentado, e ... o trabalho é superior às forças de um só médico". Em 1867, apenas dois médicos eram responsáveis pelo serviço clínico, um para cada divisão sexual. Para o Dr. Ludovino da Silva, "o médico de um asilo de alienados tem necessidade de acercar-se de adjuntos que possam ser continuadores imediatos de suas investigações e dos meios empregados como base do tratamento geral...". Desse modo, visando solucionar ao mesmo tempo o problema do número insuficiente de médicos e a questão da especialização, propunha a presença, na instituição, de um estudante da Escola de Medicina, disposto a especializar-se no "estudo das moléstias mentais ... de modo a tornar-se de futuro um alienista ..." (Silva, 1868:189).183 Nos relatórios dirigidos ao Provedor da Santa Casa, as queixas dos diretores do serviço sanitário do Hospício de Pedro II, relativas à necessidade de se ampliar o quadro do pessoal auxiliar, repetiam-se monotonamente.
Em 1853, o Dr. Manoel Barbosa solicitava que fossem admitidos mais enfermeiros e reclamava do atraso na vinda das irmãs de caridade francesas. Mais tarde, no Relatório de 1855, afirmava que estas últimas eram encarregadas das enfermarias, das salas de trabalho, da rouparia, da cozinha e da dispensa e que, por isso, seu número era "muito limitado". Reclama, ainda, da falta de qualificação dos 12 enfermeiros responsáveis pela repartição masculina, alegando que eles
... servem mal e nenhuma confiança merecem. É necessária a maior vigilância sobre eles, puni-los a miúdo, despedi-los, etc. Não é isso, porém de admirar: todo o mundo conhece a classe de homens, que entre nós se presta a um tal gênero de serviço mediante a quantia de vinte e quatro mil réis mensais. (Barbosa, 1856:100)
Reeditavam-se, assim, as mesmas restrições feitas pelo Dr. De-Simoni, em 1839, ao desempenho dos enfermeiros da Santa Casa no cuidado dos alienados. Porém, enquanto os enfermeiros eram considerados péssimos funcionários, o trabalho das irmãs de caridade e das enfermeiras ou serventes era, pelo menos em princípio, muito elogiado pelos diretores do serviço clínico. Embora numericamente insuficientes para atender "todas as emergências do serviço", as serventes exerciam as mesmas funções dos enfermeiros na seção das mulheres e o faziam de forma muito mais eficiente. As irmãs de caridade eram vistas como uma espécie de braço direito dos médicos, auxiliando-os de forma competente não apenas no tratamento dos alienados internados, mas também na vigilância destes últimos e de todo o pessoal subalterno (Silva, 1868).184 A despeito da falta ou da precariedade da especialização do pessoal responsável pelo serviço clínico do Hospício de Pedro II, o discurso dos primeiros médicos-diretores apostava na viabilidade do objetivo terapêutico e curativo da instituição.
Na prática asilar os meios terapêuticos se confundiam freqüentemente com os mecanismos de punição, não havendo uma distinção clara e precisa entre tratamento e controle dos alienados internados. Os mais variados tipos de banho – de tina, emborcação, de chuva e de vapor; mornos ou frios (Barbosa, 1853, 1856; Rey, 1875)185 –, por exemplo, eram bastante utilizados no Hospício de Pedro II como remédio não apenas no tratamento, mas também no controle dos alienados aí internados. Acrescente-se, ainda, que a organização do "regime médico e policial" naquela instituição obedecia aos mesmos princípios:
...isolamento dos alienados; classificação, distribuição e colocação dos mesmos; adequado emprego dos meios de brandura e persuasão, e assídua vigilância da parte dos enfermeiros encarregados de sua guarda; ocupação, trabalho e recreio; coação e repressão quando necessárias, e finalmente emprego dos agentes higiênicos e farmacêuticos, e meios morais tão úteis no tratamento da alienação mental. (Barbosa, 1853:2)
Enquanto o regime médico caracterizava-se pela utilização de meios físicos e morais no tratamento e curativo dos alienados internados, o regime policial aliava os métodos persuasivos aos métodos coercitivos, conforme as exigências da situação.
O emprego de substâncias farmacológicas,186 de sangrias (por meio de sanguessugas ou de ventosas) e de vesicatórios revela a presença da concepção segundo a qual a loucura relacionava-se, de alguma forma, a distúrbios orgânicos. Contudo, pelo menos até a década de 80 do século XIX, os meios terapêuticos morais eram os mais utilizados, indicando, assim, o predomínio no interior do asilo da perspectiva segundo a qual a loucura seria, antes de tudo, uma doença moral. Nesse sentido, o Dr. Ludovino da Silva advertia que os meios farmacológicos, empregados de forma complementar, eram "... reservados para certas formas da loucura em que há predomínio do elemento anatômico, assim também para as moléstias acidentais e, enfim, para atenuar as consecutivas às fases avançadas da alienação" (Silva, 1868:215). Como se pode observar, os medicamentos associavam-se muito mais às doenças comuns do que à doença mental.
Dentre os meios morais aplicados pelos médicos do Hospício de Pedro II, o mais importante era, sem dúvida, o trabalho. A partir do contato com instituições e alienistas europeus, o Dr. Pereira das Neves, primeiro médico encarregado da repartição masculina daquele hospício, defendia a criação de uma "escola elementar" que, dividida em diferentes categorias de acordo com a capacidade e a natureza da moléstia dos alienados internados, lhes incutiria o "amor ao trabalho físico", fazendo que se tornassem "mais felizes e mais úteis a si mesmos e ao estabelecimento", obtendo-se, assim, "1°, um maior número de curas; 2°, uma diminuição das recaídas; 3°, uma mortalidade menor; 4°, uma felicidade física e moral imediatamente apreciada pelos alienados; 5°, a possibilidade de fazer trabalhar grande parte dos doentes, como vi em muitos hospitais que visitei" (Neves, 1848- 1949:46).187 O trabalho é, desse modo, concebido não apenas como um remédio eficaz no tratamento das moléstias mentais, mas também como um elemento importante para assegurar o equilíbrio, a felicidade e a paz no interior da instituição asilar. Tais idéias trazem ainda embutida a perspectiva de "recuperar" o alienado internado, transformando-o em indivíduo "útil" a si mesmo, ao estabelecimento e, portanto, à sociedade. Por intermédio do trabalho os alienados poderiam alcançar a cura, em termos mentais e sociais, recuperando, assim, a sua maioridade. A utilização do trabalho como um dos meios empregados no tratamento e curativo dos alienados internados em instituições asilares conferia ao médico o poder de transformá-los em indivíduos capazes e responsáveis.
A escola idealizada pelo Dr. Pereira das Neves nunca seria criada no Hospício de Pedro II. Entretanto, cabe notar que, dentre os meios terapêuticos que deveriam ser adotados na referida instituição, os estatutos de 1852 prescreviam o entretenimento
... em ocupações de instrução e recreio, e em trabalhos manuais nas oficinas, e no serviço doméstico do Estabelecimento, seus jardins e chácara, na conformidade das prescrições dos respectivos Facultativos ...; tendo-se em vista na escolha e designação dos trabalhos, e na maneira de os dirigir, a cura dos alienados, e não o lucro do Estabelecimento. (Art. 27)
Para esse fim previa-se a criação de oficinas que ficariam sob a inspeção e direção das irmãs de caridade, onde seriam empregados os alienados que tivessem um ofício ou mostrassem disposição para aprendê-lo (Art. 28). Metade do produto do trabalho seria destinada às despesas do estabelecimento e a outra seria entregue aos alienados quando saíssem curados (Art. 30). Segundo o primeiro diretor do serviço clínico do Hospício, em 1853 o trabalho era ainda aí aplicado em pequena escala: "temos apenas uma sala de costura, onde trabalham constantemente pouco mais ou menos de 30 alienadas, havendo já 2 que se ocupam de fazer rendas. No jardim estão 9 alienados empregados na cultura do mesmo, e no vapor 4 alienadas que ajudam a lavar a roupa" (Barbosa, 1853:16). Mesmo assim, o resultado do trabalho dos alienados do Hospício de Pedro II durante o primeiro semestre de 1853 revela dados relativamente expressivos, proporcionando uma renda de 595$320 à referida instituição (Barbosa, 1853).188
Os esforços do Dr. Barbosa no intuito de ampliar o número de alienados que trabalhavam dentro do Hospício surtiram efeito e, dois anos mais tarde, já funcionavam três salas de costura, onde estavam empregadas 75 alienadas, ocupadas na confecção de roupas para o próprio estabelecimento e para o Hospital da Santa Casa. Algumas mulheres lavavam e engomavam as roupas dos indigentes e dos pensionistas. Os homens trabalhavam no serviço do jardim, como serventes nas obras, nos refeitórios, enfermarias, "fazendo camas, limpando e varrendo, e lustrando os soalhos do hospital" e na oficina de alfaiates, onde estavam sempre empregados 6 ou 8 alienados. Havia, ainda, o projeto de se montar uma oficina de sapateiros, que, em meados da década de 60 do século XIX já funcionava, juntamente com a carpintaria:
Com poucas exceções, os enfermos estavam ocupados, as mulheres em costuras e bordados, os homens em trabalhos de madeira, sapataria e alfaiataria, ou então em fazer cigarros para uso do pessoal do estabelecimento, em reduzir velhas cordas a estopa, etc. A superiora nos disse que o trabalho era o melhor dos remédios e que, embora não obrigatório, quase todos os doentes pedem para trabalhar ... (Agassiz & Agassiz, 1975:394)189
De todos esses dados é possível depreender que parte significativa dos alienados internados no Hospício de Pedro II contribuíam efetivamente para a manutenção da instituição – a qual contava ainda com uma parte dos recursos arrecadados pela Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e com subsídios do governo imperial –, seja por meio de sua utilização em serviços indispensáveis ao funcionamento do estabelecimento, seja por meio da produção de artigos consumidos no Hospital Geral e no próprio Hospício ou, ainda, vendidos.190
Outro aspecto a ser assinalado relaciona-se à associação entre trabalho e atividade física, contraposto, portanto, à atividade intelectual. Ao conceber o trabalho como o principal meio de cura e de recuperação do alienado mental, o Dr. Pereira das Neves refere-se explicitamente, como se viu anteriormente, ao trabalho físico. Para o Dr. Manoel Barbosa, os "trabalhos corporais" seriam "sem dúvida mais necessários aos loucos do que aos outros homens". Visto como "poderoso meio curativo" e "indicado em quase todos os gêneros de loucura", não deveria "cansar o doente", mas apenas lhe proporcionar distração, um sono tranqüilo e o "repouso das funções intelectuais" (Barbosa, 1853, 1856).191 Desprovidos da razão ou possuidores de um raciocínio alterado e/ou equivocado, os doentes mentais, assim como os indivíduos considerados ignorantes ou limitados em termos intelectuais, ajustar-se-iam melhor ao trabalho braçal, independentemente de suas origens sociais: "Em todos os países se tem observado que nos hospitais em que os alienados são empregados em trabalhos corporais, as curas são mais numerosas do que nos estabelecimentos em que são recebidos alienados de certa ordem ou das classes opulentas, que nenhum exercício fazem desse gênero" (Barbosa, 1853:14).192
Do mesmo modo que o exercício do corpo deveria proporcionar ao doente mental distração e repouso de suas atividades mentais, contribuindo para recuperá-lo e/ou curá-lo, as atividades intelectuais deveriam se constituir meio de diversão para os indivíduos internados em instituições asilares. Assim, os exercícios de instrução primária – a leitura, o cálculo, a escrita –, o desenho, a música, a representação de peças teatrais eram incentivados pelo primeiro diretor do serviço clínico do Hospício de Pedro II como eficientes meios de tratamento, desde que se limitassem a entreter a mente. Observa-se, enfim, uma aproximação entre os significados da atividade intelectual e do trabalho físico no mundo asilar. Mas se dentro da concepção alienista os corpos deveriam ser submetidos a exercícios físicos indistintamente, as atividades mentais deveriam ser estimuladas de forma hierarquizada. Sobre isso, o Dr. Ludovino da Silva, por exemplo, advertia que as opções de lazer existentes no hospício deveriam ser "graduadas em relação ao grau de inteligência, à posição social e à profissão do alienado". Inseridas numa sociedade marcada pela desqualificação do trabalho – associado, via de regra, às atividades físicas que, por sua vez, relacionavam-se ao trabalho escravo – , tais concepções, ainda que perpassadas por intenções de redimir o trabalho e a atividade do corpo mediante qualificações positivas, acabam por reafirmar a oposição entre trabalho (atividade do corpo) e lazer (atividade da mente), necessariamente associada às distinções sociais.
Ainda que em termos teóricos a perspectiva alienista trouxesse implicitamente o desejo de curar e recuperar as mentes e os corpos – fossem eles aristocráticos ou indigentes, masculinos ou femininos –, por meio dos exercícios físicos, no cotidiano do hospício os "trabalhos corporais", embora facultativos, destinavam-se exclusivamente aos alienados admitidos gratuitamente e, dentre estes, eram realizados predominantemente pelas mulheres.193 De acordo com os dados apresentados por Philippe Rey, 15 anos depois essa situação não teria sofrido alteração substancial, pois dos 186 homens internados no HP II em junho de 1869, 83 ou 44,6% "... estavam ocupados em diversos trabalhos de atelier, no jardim, na cozinha e nos serviços do interior", ao passo que das 146 mulheres internadas na instituição no mesmo período, 108 ou 73,9% "... estavam empregadas no trabalho de costura, de bordados, de tapeçaria e de flores artificiais" (Rey, 1875:26). Note-se que as atividades desempenhadas pelas mulheres parecem estar predominantemente inseridas entre aquelas diretamente relacionadas à confecção de produtos consumidos no próprio hospício e no hospital da Santa Casa ou comercializados. Porém, a presença masculina nos serviços cotidianos de manutenção da instituição – limpeza, arrumação, cozinha etc. – parece ter sido bastante significativa. Infelizmente não se dispõe de informações suficientes para avaliação mais profunda e consistente da questão. De qualquer forma, cabe ressaltar que os dados sobre a composição sexual da população internada no HP II, aos quais se teve acesso, indicam a tendência a um certo equilíbrio entre o número de homens e o número de mulheres, com ligeira superioridade numérica da população masculina (Tabela 1), o que parece reforçar a dimensão da importância das ocupações femininas no interior do mundo asilar.
Tabela 1 – Composição sexual da população internada no HP II
Ano |
Pop. Total |
Homens |
Mulheres |
|
12/1852 |
144 |
74 (51,3 %) |
71 |
(48,6%) |
6/1853 |
136 |
68 (50%) |
68 |
(50%) |
7/1854 |
256 |
126 (49,2%) |
130 |
(50,7%) |
6/1855 |
283 |
149 (52,6%) |
134 |
(47,3%) |
7/1866 |
349 |
190 (54,4%) |
159 |
(45,5%) |
6/1867 |
275 |
153 (55,6%) |
122 |
(44,3%) |
12/1867 |
318 |
184 (57,8%) |
134 |
(42,1%) |
12/1868 |
339 |
190 (56%) |
149 |
(43,9%) |
7/1869 |
332 |
186 (56%) |
146 |
(43,9%) |
6/1870 |
297 |
168 (56,5%) |
129 |
(43,4%) |
7/1873 |
297 |
166 (55,8%) |
131 |
(44,1%) |
6/1874 |
300 |
173 (57,6%) |
127 |
(42,3%) |
7/1887 |
307 |
169 (55%) |
138 |
(44,9%) |
7/1888 |
321 |
172 (53,5%) |
149 |
(46,4%) |
Fontes: BARBOSA (1853, 1856); SILVA (1868); Relatório do Ministério do Império, 1868 e 1869; REY (1875); BRANDÃO (Estatística e movimento do HP II de 1/07/1887 a 1/07/1888).
O primeiro aspecto apontado remete necessariamente a uma reflexão sobre a composição social da população internada no Hospício de Pedro II. Como visto, segundo os estatutos de 1852, a instituição destinava-se a acolher os indivíduos, diagnosticados como doentes mentais, pertencentes aos mais variados segmentos sociais, até mesmo os escravos. No caso, conseguiu-se localizar apenas alguns dados referentes às origens sociais da população internada naquela instituição entre 1852 e 1890 (Tabela 2).
Tabela 2 – Classificação da população internada no HP II por categorias profissionais
Categorias Pop. Total |
Junho 1853 252 |
Junho 1867 275 |
Artistas |
35 (13,3%) |
5 (1,8%) |
Comerciantes |
15 (5,7%) |
1 (0,3%) |
Lavradores |
13 (4,9%) |
– |
Farmacêuticos |
1 (0,3%) |
1 (0,3%) |
Marítimos |
6 (2,2%) |
– |
Militares |
4 (1,5%) |
– |
Estudantes |
1 (0,3%) |
6 (2,1%) |
Literatos |
3 (1,1%) |
– |
Eclesiásticos |
1 (0,3%) |
2 (0,7%) |
Carroceiros |
1 (0,3%) |
– |
Emp. Públicos |
3 (1,1%) |
– |
Bacharéis |
– |
2 (0,7%) |
Costureiras |
– |
76 (27,6%) |
Fazendeiros e lavradores |
– |
2 (0,7%) |
Lavadeiras |
– |
10 (3,6%) |
Praças da armada |
– |
4 (1,4%) |
Médicos |
– |
2 (0,7%) |
Praças do exército |
– |
15 (5,4%) |
Oficiais (exército e armada) |
– |
6 (2,1%) |
Trabalhadores |
– |
28 (10,1%) |
Profissão desconhecida |
179 (68,3%) |
115 (41,8%) |
Fontes: BARBOSA (1853); SILVA (1868).
OBS Os relatórios apresentam diferenciações nas nomenclaturas utilizadas para designar as profissões, sendo coincidentes apenas nas seguintes: artistas, comerciantes, farmacêuticos, eclesiásticos, estudantes e profissão desconhecida. A mudança pode representar uma simples troca de nomenclatura – como por exemplo, de literato para bacharel – ou a adoção de uma classificação mais detalhada – por exemplo, em vez de militares, praças da armada, praças do exército e oficiais do exército e da armada –, ou ainda, a inclusão de novas categorias profissionais.
Não obstante serem insuficientes para estabelecer uma seqüência cronológica seriada, tais dados revelam uma amostragem válida dos principais traços do perfil social dessa população. De imediato observa-se que a maior parte dos indivíduos internados no Hospício de Pedro II, tanto em 1853 (68,3%) como em 1867 (41,8%), não tinham profissão definida (ou não foi possível, por alguma razão, determiná-la). Sobre isso é importante lembrar que, de acordo com o censo de 1870, dos 235.381 habitantes da cidade do Rio de Janeiro – livres, libertos e escravos –, 80.717 (ou 34,29%) foram incluídos na categoria "sem profissão conhecida".194 É possível, portanto, concluir que os indivíduos de profissão desconhecida internados no hospício pertenciam aos segmentos pobres e/ou miseráveis (livres, libertos ou escravos) da população da cidade do Rio de Janeiro e regiões próximas. Mas a presença desses indivíduos naquela instituição torna-se ainda mais expressiva se se atentar para o fato de que compunham a maior parte, senão a totalidade, de outras categorias, tais como: artistas, lavradores, marítimos, carroceiros, empregados públicos, costureiras, lavadeiras, praças da armada, praças do exército e trabalhadores. É interessante notar que esta última categoria, incluída no relatório do Dr. Ludovino da Silva, revela-se quase tão abrangente e imprecisa quanto a categoria "profissão desconhecida", mas enquanto o termo "trabalhadores" remete a profissões reconhecidas como trabalho – embora não tão precisas quanto, por exemplo, comerciantes, costureiras, lavadeiras etc. –, o termo "profissão desconhecida" parece relacionado ao "mundo do não trabalho" (ou das atividades não reconhecidas como trabalho).
As considerações até aqui tecidas podem adquirir maior consistência mediante dados relativos à classificação dos internos adotada pela instituição (Tabela 3). Eles expressam com clareza o predomínio da categoria dos indigentes, daqueles que eram internados gratuitamente já que não dispunham de recursos para arcar com as despesas da internação.195 Dentre estes predominam de forma absoluta os indivíduos livres, seguidos de longe pelos libertos, sendo o número de escravos bastante reduzido. Depois dos chamados indigentes, a categoria mais numerosa é a constituída pelos pensionistas de terceira classe, que, dispondo de poucos recursos, pagavam uma taxa mínima pela internação. Nessa categoria estão incluídos alguns poucos escravos.196 Tais dados são confirmados alguns anos mais tarde pelo Dr. Teixeira Brandão: em meados dos anos 80 do século XIX, dos 308 alienados internados, 3 (0,9%) eram escravos; 135 (43,8%) eram pobres; 70 (22,7%) eram mantidos pelo governo da Província do Rio de Janeiro; 79 (25,6%) eram pensionistas – 13 (4,2%) de primeira classe; 25 (8,1%) de segunda classe; 41 (13,3%) de terceira classe – e 21 (6,8%) pertenciam às Forças Armadas (Brandão, 1886). Os escravos, os pobres e os pensionistas de terceira classe representavam, assim, 58,1% da população internada. Porcentagem que se torna ainda mais expressiva ao se considerar que a maioria dos que estavam internados às custas da Província do Rio de Janeiro e dos pertencentes às Forças Armadas integrava os segmentos pobres da população. A despeito da falta de uniformidade e das imprecisões dos dados apresentados, eles parecem indicar com clareza que o perfil social dos alienados internados no Hospício de Pedro II expressava a meta prioritária da instituição: a reclusão dos loucos pobres ou miseráveis que circulavam pelas ruas da cidade.197
Tabela 3 – Composição social da população internada no HP II
Categorias |
Junho 1869 |
Julho 1870 |
Junho 1873 |
Julho 1874 |
Pensionistas de 1ª classe |
12 (3,6%) |
13 (4,3%) |
10 (3,3%) |
13 (4,3%) |
Pensionistas de 2ª classe |
17 (5,1%) |
18 (6%) |
24 (8%) |
20 (6,6%) |
Pensionistas de 3ª classe (livres) |
53 (15,9%) |
56 (18,8%) |
91 (30,6%) |
101 (33,6%) |
Pensionistas de 3ª classe (escravos) |
4 (1,2%) |
1 (0,3%) |
2 (0,6%) |
1 (0,3%) |
Indigentes (livres) |
211 (63,5%) |
183 (61,6%) |
145 (48,8%) |
141 (47%) |
Indigentes (libertos) |
29 (8,7%) |
21 (7%) |
19 (6,3%) |
18 (6%) |
Indigentes (escravos) |
6 (1,8%) |
5 (1,6%) |
6 (2%) |
4 (1,3%) |
População Total |
332 |
297 |
297 |
300 |
Fonte: REY (1875).
O número extremamente reduzido de escravos internados na instituição merece algumas considerações, especialmente se formos lembrar que entre 1839 e 1847 eles representaram, de acordo com os dados fornecidos pelo Dr. Figueiredo, 28,2% dos alienados internados na Santa Casa. É provável que tal índice esteja relacionado à presença extremamente significativa de escravos entre a população da cidade do Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, conforme já se teve a oportunidade de observar. Ainda com relação a isso, a redução drástica do número de cativos reclusos no Hospício de Pedro II pode ser atribuída às transformações ocorridas em meados do mesmo século. Com a extinção do tráfico africano, o número de escravos fixados na cidade tenderia a diminuir de forma significativa: em 1856, a população total era de, aproximadamente, 151.776 habitantes, dos quais 48.282 ou 31,8% eram escravos; em 1870, entre os 235.381 habitantes, 50.092 ou 21,2% eram escravos (Chalhoub, 1990). Tal fato se encontrava relacionado, entre outras coisas, às perspectivas de proprietários e comerciantes venderem o maior número possível de escravos para as fazendas do interior – movidos por interesses econômicos, mas também, possivelmente, sobretudo pela preocupação com a segurança na cidade –, atitude que contaria com forte reação por parte dos escravos afetados, conforme observou Sidney Chalhoub. Além da redução da presença escrava na cidade do Rio, é razoável supor que a alta valorização da mão-de-obra cativa, aliada à tendência de concentrá-la em atividades ou setores considerados básicos ou fundamentais, tenham contribuído de maneira decisiva para a diminuição do número de cativos internados como alienados.
De qualquer forma, embora a presença de escravos no Hospício tenha sido bastante reduzida, as possibilidades previstas para a sua admissão, nos estatutos de 1852, são dignas de nota. Os escravos podiam ser internados como pensionistas de terceira classe desde que seus proprietários possuíssem recursos e se dispusessem a pagar as diárias, que custavam $800 – aliás, mais baratas que as fixadas para as pessoas livres inseridas na mesma categoria (1$000). Ora, por menores que fossem as despesas com a manutenção de um escravo internado no hospício, tais gastos não faziam parte da lógica escravista que presidia a exploração da força de trabalho nos principais setores da produção, sobretudo na conjuntura pós-extinção do tráfico africano. Os alienados escravos empregados nesses setores não constituíam, pois, objeto prioritário da perspectiva médica de segregar a loucura no asilo.
No entanto, para que os escravos fossem admitidos gratuitamente no Hospício era preciso que seus proprietários não tivessem outros escravos e não pudessem custear as despesas com seu tratamento. Procurava-se, assim, viabilizar a internação para os escravos alienados pertencentes aos segmentos mais pobres da população urbana, cuja presença numérica na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX teria sido bastante expressiva, conforme a pesquisa realizada por Sidney Chalhoub. Contribuindo para a sobrevivência de seus proprietários, geralmente prestavam serviços variados, eram vendedores ambulantes ou se empregavam como assalariados, "vivendo sobre si" e tendo, portanto, grande mobilidade pelas ruas da cidade (Chalhoub, 1988, 1990).198
A relação entre senhor e escravo assumia, nesses casos, uma especificidade que conferia um outro significado à autoridade senhorial, cujo exercício baseava-se em critérios nitidamente distintos daqueles que presidiam as relações escravistas nos setores de produção considerados essenciais. A reclusão dos alienados pertencentes a esse grupo de escravos, por um lado, não implicaria o confronto entre o poder do médico e o poder senhorial; por outro, visaria justamente aqueles que circulavam livremente pelas ruas da cidade, engrossando as fileiras dos famosos personagens descritos no primeiro capítulo deste livro.
Em suma, escravos, libertos ou livres, o alvo prioritário do projeto médico de encerrar a loucura num estabelecimento para alienados voltava-se para a população pobre ou miserável da cidade do Rio de Janeiro, sob o ponto de vista dos setores dominantes e dirigentes, como uma ameaça cotidiana à ordem estabelecida. No que se refere especificamente ao controle dos segmentos livres e libertos dessa população, o Código Criminal de 1830 expressaria, segundo os autores de A Polícia e a Força Policial no Rio deJaneiro, uma perspectiva com a finalidade de conhecê-los e discipliná-los –seja circunscrevendo-os, em menor escala, incorporando-os – por intermédio, fundamentalmente, do trabalho, o que pode ser observado no "grande número de crimes punidos com a pena de prisão com trabalho" (Brandão et al., 1981:63-64). Idéias como as defendidas pelos doutores Pereira das Neves e Manoel Barbosa, concebendo o trabalho como elemento de recuperação/ ressocialização, não podem ser consideradas isoladas. Nesse sentido, vale mencionar que em meados dos anos 30 do século XIX o Ministro do Império, Joaquim Vieira da Silva e Souza revelaria uma postura bastante crítica em relação às instituições de caridade caracterizadas como espaço de reprodução da ociosidade e, portanto, da miséria de indivíduos capacitados para o trabalho. Assim, o mencionado Ministro propunha uma reforma dessas instituições, que passariam a prestar serviços – atendimento médico, por exemplo – em troca do trabalho dos beneficiados. Parece evidente a presença do ideário que fundamentava os programas ingleses de atendimento ao pobre que, negando o "gesto da esmola" – rompendo, pois, com o significado anterior da caridade – pretendia conter e controlar a "ameaça da miséria" –, concebida então como uma "opção" dos indivíduos – por meio da incorporação via trabalho.199
Trata-se, portanto, de uma perspectiva que, apropriada e redefinida com base na inserção numa realidade predominantemente escravista, buscava, por intermédio de caminhos marcados por ambigüidades e contradições – peculiares e originais em relação àquelas que permearam os discursos que a inspiraram –, redimir a idéia de trabalho imputando-lhe conotações positivas associadas às idéias de "recuperação", "inserção", "identidade", "ordem" etc. Parece, pois, que os objetivos do Hospício de Pedro II encontravam-se perfeitamente inseridos nesse universo de intenções disciplinarizadoras dos indivíduos livres pobres e/ou despossuídos. Como se observou, pelo menos teoricamente a instituição deveria funcionar como instrumento de ressocialização desses indivíduos, curando-os da doença mental e reintegrando-os à sociedade por meio do trabalho. Quanto a isso, dos estatutos de 1852 aos relatórios dos diretores do serviço clínico, reafirmava-se a todo instante o caráter curativo da instituição.
Desde o seu primeiro relatório, o Dr. Barbosa já revelava grande preocupação quanto a demonstrar a eficácia do HP II como local de cura, procurando, de um lado, justificar os altos índices de mortalidade e, de outro, exaltar a expressividade do percentual de pacientes que saíram curados. Admitindo que a mortalidade verificada na citada instituição entre 9 de dezembro de 1852 e 30 de junho de 1853 era "por certo excessiva" – dos 262 indivíduos internados nesse período, 49 (ou 18,7%) faleceram –, o médico alegava que esta não deveria
... parecer excessiva, se se atender a que a maior parte dos doentes passaram para o hospício em estado tal, que não podiam decerto resistir ao escorbuto e a outras moléstias, de que foram acometidos; uns por sua idade já avançada, outros por sua constituição deteriorada. Infelizmente ainda temos um grande número de velhos, e ultimamente recebemos da Bahia 20 alienados, quase todos incuráveis e a maior parte afetados de diarréia. Com tais doentes é decerto impossível fazer diminuir o número de óbitos. (Barbosa, 1853:26)
Além disso, o número de curas – 77 ou 29,3%, dos quais apenas 3 voltaram para o hospício – era "bastante lisonjeiro", depondo a favor da eficiência curativa da instituição. Os dados apresentados no relatório de 1855 revelavam um quadro bastante próximo da estatística médica referente aos sete primeiros meses de funcionamento do Hospício Pedro II: dos 485 alienados internados entre 1° de julho de 1854 a 30 de junho de 1855, 126 (ou 25,9%) receberam alta; 76 (ou 15,6%) faleceram; e 283 (ou 58,3%) permaneceram em tratamento. O número de altas era considerado satisfatório e deveria servir de "consolo" para o número de óbitos, cuja quantidade era atribuída, mais uma vez, não à ineficácia da instituição – "comprovada", por exemplo, pela ausência de suicídios –, mas às características dos doentes que para lá eram remetidos todos os dias pela polícia. Esboçava-se, assim, uma reivindicação que se tornaria cada vez mais freqüente – e, a partir dos anos 80 do século XIX, como será visto adiante, também mais sofisticada – com o objetivo de transformar o hospício num espaço mais especializado, destinado apenas a certos tipos de doentes mentais que não comprometessem a sua credibilidade. O estabelecimento de uma regulamentação mais rígida e seletiva das admissões viabilizaria a transformação do mundo asilar não apenas num lugar eficiente de cura, mas também, como desejava o Dr. De-Simoni, num "campo de úteis observações" para o bem comum da ciência e do próprio doente. Esta questão será novamente abordada mais adiante.
Apesar de os reiterados esforços dos diretores do serviço clínico do HP II para comprovar a eficácia do caráter curativo da instituição, na prática, ela parece ter funcionado prioritariamente como instrumento de exclusão – freqüentemente temporária – de indivíduos cuja presença nas ruas era considerada uma ameaça social. Desse modo, o significado do trabalho no interior do mundo do asilo resumia-se em manter a própria instituição por meio da produção de bens que seriam consumidos no Hospício e no Hospital da Santa Casa, ou comercializados. No entanto, além do significado que o definia como um meio terapêutico eficiente, o trabalho também representava, no cotidiano do hospício, um meio de controle eficaz. Este duplo caráter do trabalho se expressa, por exemplo, na sua associação tanto à atividade produtiva, como à distração nos textos examinados. Ao lado das atividades de instrução e recreio – passeios, música, declamação, representações teatrais etc. –, o trabalho também se destinava a educar por meio da ocupação e a distrair os alienados, tornando-os mais dóceis e submissos, controlando-os mediante mecanismos persuasivos. Assim, para a irmã superiora, "... o domingo é o dia que dá mais preocupações aos guardas, porque a maior parte das ocupações está suspensa e os pobres coitados ficam tanto mais indisciplinados quanto menos têm o que fazer" (Agassiz & Agassiz, 1975:276).200 Em 1888, o Dr. Teixeira de Souza lembraria que os efeitos do trabalho não se limitariam "à simples influência terapêutica e higiênica", pois "entre os loucos, como em qualquer outro grupo de homens, é o trabalho condição de moralidade e de ordem".201
Como se viu, conforme a avaliação dos médicos da Academia de Medicina, o controle estabelecido sobre os loucos – nas ruas da cidade, nas residências particulares, no Hospital da Misericórdia etc. – por outras instâncias de poder não era capaz de conter satisfatoriamente a "ameaça" que representavam para a tranqüilidade e a moral públicas, bem como para a sua própria integridade física e a das outras pessoas. A eliminação dos "perigos da loucura" só seria efetivamente assegurada isolando-a no hospício, onde ela ficaria sob a estrita vigilância e controle do médico. Arquitetonicamente, a intenção de submeter os internos a uma vigilância constante expressava-se no Hospício de Pedro II por intermédio de uma torre situada no centro do pátio dos "agitados". De acordo com os estatutos de 1852, aí os alienados seriam "vigiados assiduamente, por forma que estejam sempre limpos e asseados, e se evitem os perigos de altercação e distúrbios" (Art. 26). As teias da vigilância tornavam-se ainda mais finas por meio da proibição de qualquer tipo de contato entre os alienados e as pessoas estranhas ao estabelecimento, "sem licença do respectivo Clínico, debaixo da responsabilidade dos Enfermeiros" (Art. 34). Os internos eram também impedidos de receber qualquer papel manuscrito ou impresso, "sem prévia licença do Clínico" (Art. 35). Todos os espaços e todas as pessoas estariam submetidos a uma rede hierarquizada de olhares vigilantes. Recorde-se que nas considerações feitas pelo Dr. Barbosa acerca dos enfermeiros, anteriormente citadas, estes também deveriam ser objetos de uma vigilância constante. Se arquitetonicamente o Hospício não se aproximaria nem de longe do modelo do Panóptico, a rede de olhares vigilantes que caracterizariam sua organização interna lembra muito o "princípio de inspeção" tal como é definido por Jeremy Bentham.202 Aí esta função seria desempenhada sobretudo pelo enfermeiro, ao mesmo tempo vigilante e vigiado, na medida em que sua atuação estava colocada sob a inspeção imediata das irmãs de caridade.
Embora teoricamente o médico constituísse a autoridade suprema nessa hierarquia de olhares vigilantes, na prática, o seu papel acabava secundarizado em relação ao exercido pelas irmãs de caridade. Salientando a ascendência da autoridade da superiora no Hospício de Pedro II, o Dr. Philippe Rey afirma que, em meados da década de 70 do século XIX, nenhum membro do "pessoal superior" – constituído por um administrador e dois médicos – residia na instituição e, desse modo, durante grande parte do dia e toda a noite, a direção do estabelecimento ficava, de fato, nas mãos da superiora (Rey, 1875). Embora a princípio os médicos não contestassem esse poder de forma explícita, reivindicavam insistentemente em seus relatórios a necessidade de um pessoal médico residente no asilo. Às desqualificações constantes dos enfermeiros, os primeiros diretores do serviço clínico opunham rasgados elogios à atuação das irmãs de caridade, cuja preeminência no interior do mundo asilar passaria, contudo, a ser cada vez mais contestada pelos médicos nos anos 70 e 80 daquele século.
Para assegurar a obediência dos alienados eram prescritos como únicos meios de repressão permitidos:
1°) A privação de visitas, passeios e quaisquer outros recreios; 2°) A diminuição de alimentos, dentro dos limites prescritos pelo respectivo Facultativo; 3°) A reclusão solitária, com a cama e os alimentos que o respectivo Clínico prescrever, não excedendo a dois dias; 4°) O colete de força, com reclusão ou sem ela; 5°) Os banhos de emborcação, que só poderão ser empregados pela primeira vez na presença do respectivo Clínico, e nas subseqüentes na da pessoa e pelotempo que ele designar. (Art. 32)
Deixava-se, pois, aos médicos do Hospício apenas a tarefa de precisar alguns dos limites na aplicação dos meios de repressão estabelecidos pelo regulamento. No entanto, a eles cabia a decisão acerca da necessidade de empregá-los. Porém, nos casos de urgência, a decisão de empregar a privação de visitas, passeios etc., ou a reclusão solitária ou o colete-de-força, poderia ser tomada pelo enfermeiro, "dando conta ao Facultativo respectivo da qualidade dos meios empregados e dos motivos que tornaram indispensável a sua aplicação" (Art. 33). Embora a subordinação à autoridade do médico estivesse assegurada, abria-se uma brecha para que, na prática, houvesse uma certa autonomização do poder do enfermeiro.
Existem indícios de que os castigos impingidos aos pacientes internados no HP II pelos enfermeiros, sob o aval das irmãs de caridade, suscitariam inúmeros conflitos entre estes e os médicos. Teixeira Brandão refere-se, por exemplo, ao episódio da morte do alienado Sant'Anna, ocorrida em 18 de janeiro de 1874, que, de acordo com as suspeitas dos médicos do estabelecimento, Drs. Luis José da Silva, Custódio Nunes e Ignácio Francisco Goulart – este último diretor do serviço clínico –, teria sido provocada pelas agressões do enfermeiro Antônio de Oliveira. Para o Dr. Goulart, violências desse gênero eram produzidas pela visão corrente segundo a qual o louco era uma fera e como tal deveria ser tratado:
Se tal opinião fosse admitida seria melhor deixar estes infelizes abandonados nas ruas desta cidade do que recolhê-los aqui, para, sob a capa de uma pseudo-caridade, consentir que sejam provocados, como regra geral o fazem os enfermeiros com suas brutalidades, para depois tratá-los como assassinos e cães danados, quando eles reagem em própria defesa.203
Denunciava-se, assim, a violência produzida por percepções não científicas da loucura que, predominantes no espaço asilar, comprometiam a própria razão de ser da instituição. Entre o hospício sonhado e o hospício possível, os médicos vislumbravam cada vez mais claramente um imenso abismo. Então, melhor seria deixar os "infelizes abandonados nas ruas" ...
De acordo com o depoimento dos três médicos, os enfermeiros e as irmãs de caridade, intimidando os pacientes que poderiam servir como testemunhas importantes, conseguiam sempre encobrir a verdade, inviabilizando qualquer controle mais efetivo dos médicos sobre episódios do mesmo gênero, bastante freqüentes no hospício.204
No entanto, alguns dos meios repressivos autorizados – tais como a privação de alimentos, o uso do colete-de-força e os banhos de emborcação – representavam agressões ao corpo do interno. Também certos meios curativos empregados – tais como a aplicação de sanguessugas ao ânus, referida pelo Dr. Barbosa como de grande proveito no tratamento dos maníacos (Barbosa, 1856)205 – constituíam verdadeiras torturas físicas.
Segundo o Dr. Ludovino da Silva, a utilização de meios coercitivos – tais como o uso do colete-de-força, a manutenção de alguns "agitados" em quartos fortes durante o dia – apesar de muitas vezes serem prejudiciais aos alienados, não podia ser abolida completamente num Hospício "cuja população compõe-se de indivíduos de condições e de educações diversas, de hábitos e de costumes variados..." (Silva, 1868:190). Longe de serem "ativados fundamentalmente para conseguir a docilidade" sem ameaçar a integridade física do paciente, tais meios de repressão revelam, a meu ver, que pelo menos nesse momento a prática médica não conseguiria desvincular sua atuação sobre o louco da "violência que marca o corpo". Nesse sentido, mais uma vez, o Hospício de Pedro II afastava-se do modelo do Panóptico, onde as regras de suavidade deveriam assegurar a integridade dos corpos dos prisioneiros. No controle da população internada combinavam-se os meios persuasivos com os meios coercitivos. Entre as atribuições dos facultativos clínicos estava a de "determinar a aplicação dos meios coercitivos e repressivos... e conceder os prêmios, que se estabelecerem no Regimento Interno do Hospício..." (Arts. 21 e 31). Assim, introduzia-se no mundo do asilo o castigo disciplinar tal como foi definido por Foucault, que entre outros aspectos caracterizava-se por estabelecer a recompensa como contrapartida da punição (Foucault, 1977; Duprat, 1987; Goffman, 1974).
Mesmo não dispondo de dados sobre as variadas formas de resistência aos meios de controle (e de tratamento) empregados no dia-a-dia do Hospício de Pedro II, parece bastante razoável supor que os indivíduos aí internados não se mantiveram sempre passivos diante do domínio exercido pelos médicos, pelas irmãs de caridade e pelos enfermeiros. O caso de Sant'Anna há pouco mencionado revela alguns indícios significativos nesse sentido.
Merece menção, ainda, outro episódio ocorrido durante os primeiros anos de funcionamento do HP II. O Dr. José Manoel Barbosa saía da enfermaria quando um dos internos atacou-o com uma tesoura, ferindo um enfermeiro que se colocou entre o agressor e o médico. O interno teria se rebelado contra a recusa do médico em dar-lhe alta. Havia muitas formas de questionamento e de reação por parte dos indivíduos à situação de internamento. Veja-se um outro exemplo bastante expressivo.
Anna de A. L. V., brasileira, branca, 37 anos, casada, foi recolhida ao Hospício de Alienados, anexo ao Hospital de São João Baptista, em Niterói, em 14 de maio de 1883, aguardando uma vaga no Hospício de Pedro II, para onde seria efetivamente transferida em 27 de junho do mesmo ano. Longe de assumir atitudes conformistas, Anna revelava um comportamento desconcertantemente ambíguo aos olhos do Dr. Domingos Jacy Monteiro Júnior: "Falava, gritava, chorava, ria-se, pedia alta, batia com violência, para logo depois moderar-se tornando-se carinhosa quase humilde" (Barros, 1883:67). Movida por um refinado senso crítico, aliado a uma profunda sensibilidade, Anna expressava toda a dor oriunda de uma vivência na qual o sofrimento provocado pela reclusão se confundia, e até mesmo suplantava, o tormento da loucura: "estou presa condenada a este ostracismo, que deriva-se de ostra, pois estou reduzida a ostra, nem me posso mover, ainda menos do que isso nem posso escolher a pedra a que devo agarrar-me" (Barros, 1883:67). Em suas cartas, que seriam vistas pelos médicos única e exclusivamente como provas de seu desequilíbrio mental, ela contestava o diagnóstico, a internação e reclamava sua retirada do hospício: "Exmo. Sr. – D. A. de A. ... vem pedir por este meio a V.Ex.ª a sua saída do Hospital de S. João Baptista, enfermaria Visconde de Prados, de onde foi atirada brutalmente por três esbirros embriagados, estando a mesma senhora passeando diante de sua casa..." (Barros, 1883:67). Em outra carta: "Ora, uma senhora que está habituada a sair ... etc. ... como é que agarram atestam que sofre de alienação mental visto os atos que pratica não ser mais, não ser mais (sic) do que de uma boa mãe e esposa" (Barros, 1883:68). Percebe-se que ela parece plenamente consciente de que de acordo com a própria avaliação dos médicos, o lugar de "uma boa mãe e esposa" era junto dos filhos e do marido e não no hospício e, talvez, partilhasse dessa mesma convicção. Certamente, vozes como as de Anna não constituíam entonações isoladas no interior do mundo asilar.
Os traços do hospício possível, até aqui esboçados, revelam inúmeros indícios que levam a questionar o caráter efetivamente medicalizado da instituição. É chegada a hora, pois, de avaliar os limites do poder do médico no espaço asilar. O Hospício de Pedro II foi criado em 1841, subordinado à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Subordinação expressa na arquitetura do edifício do asilo – cujo plano, segundo a avaliação de Elizabeth Agassiz, guardava "certa analogia, na disposição geral, com o da Misericórdia" (Agassiz & Agassiz, 1975:275)206 – e reafirmada nos primeiros estatutos que determinavam que a administração do estabelecimento ficaria a cargo de três irmãos da Santa Casa, subordinados à Mesa da Irmandade, sob a superintendência do Provedor (Art. 3). Além do serviço sanitário, o Hospício tinha um serviço econômico – a cargo de um administrador – e um serviço religioso – desempenhado por capelães (Art. 4) –, instâncias que escapavam ao controle imediato do médico. Mas mesmo em sua própria seara, o médico do Hospício acabava tendo que compartilhar a autoridade sobre a loucura com outros poderes e, às vezes, até mesmo de forma subordinada.
Se, por um lado, as visitas de parentes e amigos dependiam da autorização médica, os clínicos eram obrigados a "informar à família de qualquer alienado do estado deste, todas as vezes que assim lhe for requerido" (Art. 21). Os alienados pensionistas podiam obter alta qualquer que fosse o seu estado mental, por meio da solicitação das pessoas que haviam requerido a sua admissão, desde que satisfeitas as despesas vencidas (Art. 16). Recorde-se que a categoria dos pensionistas de terceira classe compreendia as pessoas livres e escravas que estivessem sob a responsabilidade de alguém – parente, amigo ou proprietário – que assumisse as despesas com a internação. Resguardava-se, assim, a autoridade familiar ou senhorial daqueles que possuíssem pelo menos algum recurso econômico. Compreende-se, desse modo, porque o alvo prioritário das internações no hospício seriam os admitidos gratuitamente. Mas, mesmo sobre estes, a autoridade do médico não seria absoluta, já que ele ficava obrigado a comunicar trimestralmente ao Provedor o estado e a natureza "dos padecimentos dos alienados retidos no Hospício por ordem da Autoridade Pública" (Art. 21). No entanto, o regulamento determinava que ao médico caberia "indicar por escrito às pessoas a que forem entregues os alienados, que saírem curados, os preceitos e cautelas que devem se observar para prevenir as recaídas" (Art. 21). Embora dificilmente pudessem ser estabelecidos mecanismos que assegurassem o cumprimento desses preceitos, tratava-se de uma tentativa de estender a autoridade do médico para além dos muros do asilo.
A inscrição dos alienados no Hospício seria realizada exclusivamente por intermédio de despacho do Provedor da Santa Casa que, por sua vez, só poderia ordenar a matrícula mediante: 1) requisição oficial do Juiz de Órfãos ou do Chefe ou Delegado de Polícia do distrito da residência do alienado, ou do lugar onde foi encontrado; e sendo militar, eclesiástico ou religioso, do seu superior competente; 2) petição do pai, tutor, ou curador, irmão, marido ou mulher, ou senhor do alienado (Art. 10). Exigências que compreendiam não apenas a categoria dos pensionistas, mas também a dos admitidos gratuitamente. Os alienados internados sem "certidão autêntica do julgamento da demência" ficariam sob observação médica durante no máximo 15 dias, a fim de que fosse elaborado um parecer sobre seu estado mental, com base no qual o Provedor determinaria a matrícula ou a saída (Art. 12). Se esses alienados permanecessem no Hospício por mais de um mês, o administrador era obrigado a comunicar sua admissão ao Juiz de Órfãos da cidade do Rio de Janeiro (Art. 14). De acordo com a perspectiva de medicalização da loucura, a entrada, a permanência e a saída dos loucos da instituição asilar deveria ser um assunto estritamente médico, mas no caso do Hospício de Pedro II tratava-se de uma decisão compartilhada por várias outras instâncias de poder – o provedor da Santa Casa, o juiz de órfãos, o chefe ou delegado de polícia, os familiares, tutores, curadores ou senhores dos alienados etc. –, cabendo ao médico apenas a tarefa de contribuir com uma avaliação científica acerca do assunto.
Mas a relativização do poder exercido pelo médico no interior do estabelecimento torna-se inquestionável por meio de uma outra determinação fixada pelos primeiros estatutos. Para evitar os abusos que poderiam ser cometidos na "detenção indevida dos alienados, incumbia-se aos membros da administração e, particularmente, ao provedor, de visitar freqüentemente os dormitórios e aposentos dos alienados, fazendo as convenientes investigações para conhecerem por si mesmos a verdadeira posição e estado mentalde cada alienado" (Art. 15, grifos meus). Tratava-se, pois, de uma função defiscalização não apenas importantíssima, mas essencialmente médica, já que se referia à capacidade de elaborar um diagnóstico correto da alienação mental. Tarefa da qual o médico do hospício seria completamente excluído: dentro do mundo do asilo, a "verdade" ou a "mentira" da loucura – bem como a justiça ou a injustiça da exclusão – deveriam ser avaliadas pelos olhos leigos e não pelos olhos médicos. A seara médica era invadida dentro do próprio território sobre o qual o médico reivindicava o domínio absoluto.
Outro exemplo de que a autoridade do provedor imiscuía-se em assuntos médicos pode ser visto no fato de que as classificações adotadas nas separações do espaço asilar poderiam ser modificadas por sugestão dos facultativos clínicos, desde que fossem "úteis ao serviço e tratamento dos doentes" e autorizadas pelo provedor (Art. 20). O funcionamento cotidiano do hospício deveria se pautar, portanto, numa rede de poderes sobre o louco, em que a exigência médica de ocupar o topo da hierarquia do asilo acabaria, de fato, bastante diluída. O controle sobre a maioria da população do hospício, constituída pelos loucos mais visados pelo projeto de medicalização da loucura, era exercido por intermédio de uma espécie de aliança entre os médicos, os administradores da Santa Casa e as autoridades policiais e judiciárias, onde nem sempre a "vontade médica" se sobrepunha às demais.
Desde a década de 30 do século XIX, tanto os textos médicos em defesa da construção de um hospício, quanto as teses sobre alienação mental defendidas nas faculdades de medicina expressavam o objetivo de medicalizar a loucura. A criação do Hospício de Pedro II representou o primeiro passo concreto para a implantação desse projeto, assinalando não apenas a intenção de excluir a loucura, mas também de tratá-la e, até mesmo, curá-la. Entretanto, é preciso considerar que, embora tendo representado uma conquista importante para a apropriação médica da responsabilidade sobre a loucura, a criação desse estabelecimento não assegurou, na prática, a consolidação do predomínio do médico. Como já foi visto, mesmo dentro das fronteiras que isolavam o mundo do asilo, a autoridade médica em relação ao louco era bastante cerceada. Por um lado, o médico teria que dividi-la com os poderes familiar, jurídico, policial e religioso que não deixaram de fato e de direito de exercer uma tutela sobre a loucura. Por outro, no funcionamento cotidiano do Hospício o poder médico subordinava-se à administração leiga da Santa Casa de Misericórdia, inclusive no que se relacionava às decisões no âmbito do serviço clínico. O pequeno número de médicos existentes no estabelecimento era outro aspecto que impunha limites importantes à medicalização da loucura.
Por todos os aspectos aqui assinalados, pode-se concluir que a função de medicalizar a loucura era cumprida pelo HP II de modo bastante precário. A despeito dos propósitos fixados nos primeiros estatutos, a instituição acabaria desempenhando, de fato, uma função predominantemente segregadora. Contudo, é importante considerar que mesmo tendo sido predominante, o caráter segregador da instituição jamais seria exclusivo. Conforme assinalou Castel, os asilos do século XIX retomaram o duplo papel comumente desempenhado pelos "lugares de internação" dos séculos XVII e XVIII:
... reinjetar os reclusos no circuito da normalidade, quando as técnicas de disciplinarização são vitoriosas; neutralizá-los, pelo menos, e definitivamente, se necessário, através da segregação.
(...)
Se, como Michel Foucault demonstrou, o controle exercido sobre os desviantes pode ser feito segundo dois modelos antagônicos, a exclusão e o esquadrinhamento disciplinar, essas duas estratégias não são mutuamente excludentes. (...) Somente o leprosário parece ter sido um meio de pura exclusão. (Castel, 1978:90 e 93, respectivamente)
Durante as três primeiras décadas de funcionamento do Hospício de Pedro II, os diretores do serviço clínico revelariam uma crescente consciência da fragilidade e dos limites do poder do alienista dentro e fora da instituição. As admissões indiscriminadas – determinando a presença de "doentes incuráveis" e de "doentes terminais" no hospício –, bem como a ausência de informações mais precisas acerca dos indivíduos que chegavam ao hospício trazidos pela polícia (ou mesmo pelas famílias), comprometendo não apenas a função curativa, mas também o papel de laboratório de observação que a instituição deveria desempenhar; as deficiências das instalações do estabelecimento – caracterizadas, entre outras coisas, pelos problemas de superlotação, da "mistura" entre os diversos tipos de alienação mental e da falta de isolamento – e a necessidade de um pessoal médico residente no hospício revelam-se como os principais alvos das críticas formuladas até fins da década de 70 do século XIX. Esboçavam-se, assim, os primeiros sintomas da insatisfação médica quanto aos resultados concretos de sua primeira conquista no intuito de medicalizar a loucura nas tímidas – embora insistentes – lamentações que, por meio das intermediações do Provedor da Santa Casa da Misericórdia e do Ministro do Império, eram dirigidas aos ouvidos do Imperador, o qual, no entanto, se manteria surdo à maioria delas. Murmúrios que nos anos seguintes se transformariam em brados indignados e que, finalmente, seriam ouvidos pelos primeiros governos republicanos. Perceba-se, então, os brados que ecoaram da Praia da Saudade durante toda a década de 80 daquele século.
O hospício em xeque
A partir de fins dos anos 70 e início dos 80 do século XIX, os alienistas do Hospício de Pedro II passariam a reivindicar uma medicalização mais consistente e efetiva da instituição, mediante críticas contundentes e radicais. O tom áspero de suas queixas, a formulação de denúncias explícitas, fundamentadas em argumentos cada vez mais rebuscados, revelam algumas mudanças intimamente vinculadas ao surgimento formal da psiquiatria como um campo de conhecimento especializado no âmbito da medicina. No que se relaciona às características que nortearam o processo de constituição da psiquiatria brasileira, dois aspectos devem ser assinalados. O primeiro diz respeito ao contexto eminentemente urbano no qual ela surgiria.
De modo geral, o aparecimento da medicina mental no mundo ocidental esteve profundamente vinculado às transformações urbanas que marcaram o advento das sociedades burguesas. Nesse sentido, Castel (1978:26) salienta que durante a sua primeira fase – entre fins do século XVIII e meados do XIX, aproximadamente –, a medicina mental teria se orientado com a finalidade de "propor uma política global e 'democrática' de assistência, sob a forma de um serviço público", visando "prioritariamente categorias particulares da população: os indigentes mais do que os ricos, os errantes mais do que os integrados, os urbanos mais do que os rurais". No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro seria o berço da especialização psiquiátrica num momento marcado por profundas transformações que conferiam à cidade feições bastante distintas daquelas que ela possuía nos anos 30 do século XIX, quando formulou-se e difundiu-se o discurso médico em favor da criação de um hospício. A fisionomia da cidade em fins dos anos 70 e início dos 80 já não era também a mesma que a teria caracterizado durante as três primeiras décadas de funcionamento do Hospício de Pedro II.
Consolidado como centro político, administrativo, comercial, financeiro e cultural, o Rio de Janeiro converteu-se, nas últimas décadas do século XIX, em um grande pólo de atração (Pechman & Fritsch, 1984/ 1985:147):207 estrangeiros de várias nacionalidades, indivíduos livres e despossuídos provenientes de outras regiões do País dirigiam-se para a cidade em busca de melhores condições de vida e de trabalho. Mas apesar da ampliação e diversificação do perfil econômico da cidade, notadamente a partir dos anos 40 e 50 daquele século, a capacidade de absorção de modo regular e estável desses contingentes de mão-de-obra livre nos setores urbanos – entre os quais destacavam-se o comercial, o burocrático-administrativo e o de serviços – revelava-se bastante restrita em relação à oferta, que tendia a crescer a cada dia. Lembre-se, ainda, que a presença significativa dos escravos nas atividades urbanas (mesmo após 1850) reduzia bastante as oportunidades de emprego para os segmentos compostos por indivíduos livres ou libertos. Restava, pois, à grande parcela desses segmentos que não encontrava ocupação regular – da qual faziam parte, inclusive, muitos escravos de ganho – buscar a sobrevivência por intermédio dos mais variados expedientes, que, via de regra, compreendiam atividades ligadas à prestação de serviços, ao artesanato, ao pequeno comércio etc. – algumas das quais situadas nas fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade.
Assim, a cidade era profundamente marcada pela presença de vendedores ambulantes, prostitutas, capoeiras, pedintes de esmolas, coristas, dançarinas e cantoras, atrizes e atores, pintores, músicos ambulantes etc. , constantemente referidos e, muitas vezes, retratados pelos viajantes e cronistas do século XIX. A cidade negra escamoteava os sinais reveladores das origens sociais, confundindo escravos, livres e libertos – atraindo, até mesmo, escravos fugidos de áreas rurais próximas e distantes do Rio de Janeiro – "e diluindo paulatinamente uma política de domínio onde as redes de relações pessoais entre senhores e escravos, ou amos e criados, ou patrões e dependentes, podiam identificar prontamente as pessoas e seus movimentos" (Chalhoub, 1988:91). Os cortiços que começavam a proliferar pelas freguesias da cidade208 abrigavam indistintamente negros de origem africana e brancos de origem européia igualados pela pobreza e pela miséria.
O universo urbano caracterizava-se, então, pela presença de hábitos, crenças, atitudes, atividades de sobrevivência profundamente diversificados, repletos de tensões, solidariedades e conflitos. Um conjunto de valores, comportamentos e relações sociais que escapavam cada vez mais aos instrumentos e às estratégias de disciplinarização criados e difundidos pelo poder senhorial e pelo poder do Estado monárquico na sociedade escravista. A cidade, de modo geral e, particularmente, a cidade do Rio de Janeiro transformava-se, dia a dia, num espaço cada vez mais "caótico" e "perigoso" para os setores dirigentes e proprietários. Na construção das imagens da "ameaça" representada pelas misturas sociais, étnicas, culturais presentes nas ruas e nas casas da cidade – freqüentemente expressas pelas oposições, tais como "barbárie" versus "civilização"; "atraso" versus "progresso"; "não trabalho" versus "trabalho"; "doença" versus "saúde" – os médicos e os higienistas, aqui, como na Europa, desempenhariam papel fundamental. Profundamente inspirados na produção literária e científica européia do século XIX, que criou uma nova sensibilidade delineada essencialmente em torno das imagens das máquinas, das multidões e das cidades – "o persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo" (Bresciani, 1984/1985) –, intelectuais, políticos e administradores brasileiros transformaram os hábitos e os valores da população urbana – sobretudo dos segmentos mais pobres – em objeto de observação e formularam projetos de ordenação do "caos" herdado do período colonial – associado às idéias de "atraso", de "barbárie" e de "doença". À medicina social, no centro da qual a psiquiatria começava a adquirir os contornos de uma especialidade autônoma, caberia um papel essencial na formulação das estratégias dessa intervenção sobre o espaço urbano – cujas bases angulares encontravam-se pautadas, conforme assinalou Chalhoub (1996), de um lado, na apropriação de concepções que estabeleciam uma identidade entre "classes trabalhadoras" e "classes perigosas" e, de outro, nos pressupostos da ideologia da higiene.209
O segundo aspecto a ser observado refere-se ao fato de que a psiquiatria brasileira surgiria, como já visto no terceiro capítulo, em meio às transformações ocorridas no âmbito da medicina mental, marcadas sobretudo pela disseminação da teoria da degenerescência – elaborada por Morel e consolidada por Magnan – e do organicismo, que determinariam, entre outras coisas, a mudança no enfoque da loucura. Ao conceber a alienação mental como produto de "um fundo perverso", de "determinações hereditárias" ou de "lesões orgânicas", imputando-lhe, portanto, um prognóstico de incurabilidade, as novas diretrizes da psiquiatria conduziriam, ainda, ao questionamento da prática asilar.210 Tal questionamento daria origem a dois movimentos orientados para reconstruir o campo de atuação do saber e da prática alienista. O primeiro, caracterizado pela intenção de recuperar "o espaço asilar a fim de torná-lo em meio verdadeiramente médico", o que pressupunha sua transformação num espaço altamente especializado. O segundo, caracterizado pela perspectiva de deslocar a intervenção do alienista para fora dos muros do asilo, orientando-a diretamente para atuar sobre as "superfícies de emergência da loucura". De acordo com esta última concepção, Morel proporia uma profilaxia para "combater as causas das doenças" e "prevenir seus efeitos"; à "profilaxia defensiva" atribuída a Pinel e a Tuke, opunha-se, assim, uma "profilaxia preservadora", cujo alvo prioritário, embora não exclusivo, seriam os "focos de desordem e de miséria" existentes na sociedade (Castel, 1978).
Os caminhos da psiquiatria brasileira emergente orientaram-se, num primeiro momento, no intuito de transformar os hospícios então existentes em espaços realmente medicalizados. Conforme foi visto ao longo do item precedente, tal preocupação revela-se como um objeto constante dos relatórios dos primeiros diretores do serviço clínico do Hospício de Pedro II. O núcleo central das queixas desses diretores situava-se em torno das questões relacionadas ao pessoal. Seja do ponto de vista quantitativo, seja do qualitativo, as queixas esboçavam uma denúncia dos limites do poder médico no interior do mundo asilar, que ampliadas e sofisticadas ao longo das duas primeiras décadas de funcionamento da instituição, encontram-se sintetizadas no relatório do Dr. Moura e Câmera, de 1878. A existência de pouquíssimos médicos para atender a uma quantidade enorme de pacientes comprometeria o próprio desempenho da "difícil e arriscada missão do alienista" que, diferentemente dos outros médicos, não poderia lançar mão de "vomitivos" ou "cataplasmas" para corrigir os "erros do espírito" (apud Machado et al., 1978:457). O número reduzido de médicos determinaria irremediavelmente um distanciamento entre estes e os alienados, os quais ficariam, de fato, submetidos no dia-a-dia do hospício à autoridade dos enfermeiros e das irmãs de caridade. As deficiências do pessoal do serviço sanitário, especialmente dos enfermeiros – numericamente insuficientes, desqualificados profissionalmente, malremunerados – comprometiam a segurança interna da instituição, onde se disseminavam as agressões físicas – tanto da parte dos enfermeiros, quanto da dos alienados – e os riscos de suicídio e de evasão.
A reivindicação pelo controle administrativo das instituições asilares seria um dos pontos prioritários do processo de expansão do movimento alienista francês durante as primeiras décadas do século XIX. O princípio de que o médico deveria exercer o domínio absoluto sobre todas as instâncias de funcionamento dos asilos para alienados já se encontrava presente, por exemplo, em Esquirol e Scipion Pinel. Mesmo depois de aprovada a Lei de 1838 que, segundo Castel, ratificaria, no essencial, "essa pretensão bastante exorbitante", tal princípio continuaria sendo reafirmado pelos alienistas.211 No Brasil, como já observado, as reivindicações quanto a isso apareceriam de forma mais ou menos velada nos relatórios dos primeiros diretores do serviço clínico do Hospício de Pedro II. Somente no princípio da década de 80 do século XIX elas passariam a se tornar explícitas, mediante o questionamento da subordinação do mencionado Hospício à administração da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Em 1882, a demissão do mordomo do estabelecimento, Conselheiro Pertence, levou o Dr. Nuno de Andrade a escrever uma carta ao Provedor da Santa Casa, Visconde de Jaguary, na qual fazia uma série de críticas aos estatutos aprovados em 1852, bem como ao regimento interno então em vigor. O principal alvo de tais críticas era o poder de fato exercido pelas irmãs de caridade no interior do mundo asilar e a influência dos padres de São Vicente de Paulo que "imperavam" no Hospício de Pedro II. A guerra entre o poder médico e o poder religioso tornava-se, assim, explícita.
Segundo o diretor do serviço sanitário da referida instituição, embora o regulamento de 1852 determinasse que as irmãs de caridade teriam apenas as funções de auxiliares dos facultativos clínicos, o regimento interno conferia-lhes o "governo discricionário do Hospício", dando-lhes "competência igual à do mordomo 'representante do provedor e seu delegado'".212 Desse modo, o Dr. Nuno de Andrade propunha que a administração do estabelecimento fosse confiada ao Estado, separando-o da Santa Casa da Misericórdia e submetendo-o a uma nova regulamentação. A resposta do provedor foi imediata e contundente na defesa dos fundamentos regulamentares da instituição: afirmava que as atribuições exercidas pelas irmãs de caridade eram condizentes com o regulamento de 1852; negava a influência dos padres no Hospício; e, é claro, mostrava-se profundamente indignado diante da proposta de separar o hospício da Santa Casa de Misericórdia qualificando-a como extremamente injusta, já que se tratava de "um cargo de caridade" próprio dessa instituição que vinha sendo "desempenhado de modo que o Estado não poderia fazer melhor".213
A réplica do Dr. Nuno de Andrade, em que insistia nas críticas e nas sugestões formuladas na primeira carta,214 lhe custaria o cargo. Em 4 de maio de 1882, o Visconde de Jaguary, "consciente" de que o Dr. Nuno de Andrade "só quer o bem dos infelizes, mas acreditando piamente que outro não é o intuito da Administração da Santa Casa", demitia-o da direção do serviço sanitário do Hospício de Pedro II, nomeando para substituí-lo o Dr. Agostinho José de Souza e Lima.215 Tal fato parece revelar claramente que as críticas do Dr. Nuno de Andrade abriam um novo momento na luta pela medicalização do espaço asilar, marcado não apenas pela explicitação das disputas entre as diferentes instâncias de poder aí existentes, mas também pela radicalização do conteúdo das reivindicações que passavam a assumir, inclusive, um tom mais insolente e agressivo. Três anos após ter apresentado um trabalho na Sociedade Médico-Psicológica de Paris, em que não poupava elogios ao Hospício de Pedro II, o Dr. Teixeira Brandão publicou um estudo sobre os alienados no Brasil, no qual não apenas retomava as principais queixas formuladas até então pelos diretores do serviço clínico daquela instituição, como também ampliava e aprofundava as reivindicações para que fosse assegurada a implantação do projeto de medicalização da loucura em bases mais sólidas (Brandão, 1886). Tanto para o Dr. Nuno de Andrade, quanto para o Dr. Teixeira Brandão, a implantação desse projeto implicaria não no questionamento do espaço asilar, mas em reformas substanciais, das quais a mais importante seria a criação de um estabelecimento público exclusivamente destinado ao tratamento da alienação mental. A inexistência de um estabelecimento dessa natureza na cidade do Rio de Janeiro era atribuída, pelo Dr. Teixeira Brandão, ao fato de que "a autoridade não se importa com o louco senão quando sabe que ele perturbou a tranqüilidade pública: a enfermidade de que padece é coisa de somenos valor. O essencial é que ele seja recluso" (Brandão, 1886:21).
Palavras muito próximas daquelas pronunciadas, por exemplo, pelos Drs. Sigaud e De-Simoni nos anos 30 do século XIX, cuja retomada 50 anos depois revelava que a criação do Hospício de Pedro II não teria eliminado nem a presença dos loucos nas ruas da cidade, nem as formas de reclusão da loucura não-medicalizadas ou precariamente medicalizadas. Concebido para ser uma "obra de filantropia e não de misericórdia", conforme salientou o Dr. Sigaud, na prática, a instituição assumiria, como visto, um perfil de contornos imprecisos e ambíguos, oscilando entre a função caritativa – de abrigar temporariamente, proporcionando certo alívio imediato ou de exilar – e o papel assistencialista propriamente dito – de regenerar socialmente os "recuperáveis" e de excluir os "irrecuperáveis". A perspectiva assumida pelos alienistas pautava-se na idéia de que, administrado pelo Estado, o hospício desempenharia de forma mais eficiente a função não apenas de excluir, mas também, e talvez sobretudo, de curar o doente mental, restituindo-o à sociedade como "indivíduo produtivo".
Diferentemente do Dr. Nuno de Andrade, as reivindicações do Dr. Teixeira Brandão não contestavam de forma direta e explícita a manutenção do Hospício de Pedro II – bem como dos existentes ou em vias de construção no Pará, em Pernambuco, na Bahia, no Maranhão, no Rio Grande do Sul e em São Paulo – sob a administração da Santa Casa da Misericórdia. Apesar de denunciar alguns aspectos da precariedade da medicalização dessa instituição, como será observado adiante, Teixeira Brandão centralizava seus argumentos em torno da necessidade de se elaborarem leis que amparassem os alienados. Assim, o alienista defendia a criação de um estabelecimento público destinado a acolher os alienados "indigentes". Esses "infelizes que invalidaram nos combates da vida" que não possuíam domicílio eram enviados por deliberação das autoridades públicas para o Asilo de Mendicidade, já que o Hospício de Pedro II "além de estar com sua lotação completa, ... é administrado pela Santa Casa da Misericórdia e a autoridade pública não pode nele colocar doente algum sem consentimento do digno provedor" (Brandão, 1886).216
A preocupação com a periculosidade representada, segundo o parecer das autoridades públicas, pelo número crescente de mendigos nas ruas da cidade do Rio, ensejaria a criação, em 1854, do Albergue de Mendigos, o qual, subordinado ao Chefe de Polícia, deveria recolher todos os mendigos encontrados durante a noite nas ruas, nas praças públicas e nos adros das igrejas.217 Desde pelo menos o início da década de 60 do século XIX, os "alienados mansos" ou "menos furiosos" encontrados pela polícia vagando nas ruas da cidade, cuja admissão no HP II fosse recusada por problemas de superlotação, eram encaminhados para a Albergaria, enquanto os "mais furiosos" eram enviados à Casa de Detenção. O aumento crescente da população internada acabaria por determinar a construção de um novo edifício, inaugurado em 10 de julho de 1879. De acordo com o primeiro regulamento aprovado cinco anos depois, além dos indivíduos que solicitassem sua entrada comprovando "absoluta indigência", dos que em razão da idade avançada ou a seu estado físico não pudessem prover sua subsistência e dos menores de 14 anos que vagassem abandonados ou ociosos pelas ruas, o Asilo de Mendicidade deveria receber também os idiotas, imbecis e alienados que não fossem admitidos no Hospício de Pedro II.218 Todos os indivíduos internados no estabelecimento eram obrigados a trabalhar (Art. 6), sendo empregados nas oficinas e nos serviços internos (Art. 7). Às vésperas da abolição da escravidão, a crença na perspectiva de "regeneração social" via trabalho aparecia, pois, plenamente consolidada.
A presença de loucos no Asilo de Mendicidade parece ter-se tornado cada vez mais expressiva.219 Segundo Teixeira Brandão, com o passar dos anos o estabelecimento havia-se transformado efetivamente num "depósito de loucos indigentes": dos 400 indivíduos que se achavam reclusos em 1886, o psiquiatra estimava que 350 (ou 87,5%) eram alienados, sendo a população restante composta por "vagabundos, velhos e crianças" (Brandão, 1886:50). Para o Dr. Teixeira Brandão, a reclusão dos "loucos sem domicílio" no Asilo de Mendicidade, qualificado como sendo "uma monstruosidade em nosso meio social", representava ato "condenável e odioso". Em primeiro lugar, ele denunciava a arbitrariedade da reclusão, cujo "processo sumário" não pressupunha uma avaliação competente do estado de sanidade mental ou da posição social do indivíduo: "Todo e qualquer cidadão não está isento de ser levado à polícia, como se fora alienado, se isto aprouver aos agentes de segurança pública; e os protestos que fizer diante desta arbitrariedade, a revolta que se seguir a tal vexame serão provas convincentes da insânia que se prejulga" (Brandão, 1886:23). Além disso, o Asilo de Mendicidade, ao contrário do que pregavam os princípios que fundamentaram a sua criação, edificado "em um núcleo populoso sem terrenos adjacentes para a cultura e sem oficinas" estimulava a ociosidade, transformando-se, na prática, em um depósito no qual "todos aqueles que não tinham domicílio ou não sabiam dizer onde era ele", crianças, velhos, loucos e vagabundos, homens e mulheres, viviam "em uma promiscuidade revoltante". De acordo com as críticas do professor da cadeira de clínica psiquiátrica da FMRJ e diretor do serviço clínico do HP II, o Asilo de Mendicidade funcionava, na prática, completamente defasado das disposições que o regulamentavam que não apenas priorizavam o trabalho como via de recuperação dos indivíduos reclusos na instituição, mas também determinavam o cadastramento minucioso dos mesmos e um cuidado extremado com as condições de higiene física e moral do estabelecimento, dos asilados e dos funcionários. Apesar de revelar problemas muito próximos aos apresentados pelo HP II, o Asilo de Mendicidade, qualificado como um espaço que se restringia puramente a excluir, caracterizado pela ausência absoluta de práticas higiênicas e medicalizadas, era considerado por Teixeira Brandão completamente inadequado à função de acolher doentes alienados.
O hospício público também deveria funcionar no sentido de admitir não apenas os indigentes alienados, mas também os loucos criminosos, cuja presença significativa nas casas de correção e nas prisões – decorrente tanto da inexistência de locais apropriados para a sua reclusão, quanto da falta de exames de sanidade realizados "com o cuidado e critério convenientes" – era denunciada pelo Dr. Teixeira Brandão.220 Mais grave ainda era o fato de que a prática de enviar "loucos comuns" para as prisões continuava a ser bastante freqüente em várias regiões do Império. O destino impróprio dado aos loucos indigentes e/ou perturbadores da ordem pública, bem como aos loucos criminosos mesmo após a criação do HP II apresentava-se, para Teixeira Brandão, como uma prova irrefutável da necessidade urgente de se estabelecer um serviço de assistência pública aos alienados. Vale a pena acompanhar o desenvolvimento da argumentação central do alienista na defesa de seu ponto de vista:
... o Estado não despenderá assistindo-o como louco que é, mas como vagabundo, mendigo ou criminoso que parece ser. Além disso, sendo as moléstias mentais uma conseqüência obrigada da civilização e, portanto, incrementando-se à proporção que esta progride, é claro que se não se opuserem óbices aos estragos que ocasionam, em pouco tempo o número de indivíduos afetados atingirá um algarismo considerável. Ora, a assistência necessária à manutenção deles exigirá maior dispêndio do que o que seria empregado para curá-los em tempo oportuno; portanto é uma economia ilusória a que se executa deixando-os sem tratamento. (Brandão, 1886:16)
Em primeiro lugar, retomando mais uma vez as idéias defendidas pelos médicos na década de 30 do século XIX, em favor da criação de um hospício na cidade do Rio de Janeiro, tratava-se de diferenciar o louco do vagabundo, do mendigo e do criminoso, inserindo-o na categoria específica e especial de doente mental. Tarefa a ser desempenhada pelo olhar científico e especializado do alienista, único capaz de não cair nas armadilhas que confundem o que é com o que parece ser. Formulava-se, também, por caminhos um tanto tortuosos, uma espécie de política preventiva da propagação desenfreada das moléstias mentais, mediante o aprimoramento da instituição asilar, transformando-a de fato e prioritariamente num local de cura. Uma outra idéia contida no trecho citado merece ser assinalada: o crescimento das moléstias mentais é visto, de um lado, como favorecido pelo progresso da civilização, de outro, como produto do contágio.
A defesa da criação de leis que amparassem os alienados revelava, no entanto, uma crítica às possíveis arbitrariedades das internações de pessoas "abastadas" nos estabelecimentos particulares: "Quem quiser ver-se livre de um inoportuno é metê-lo em uma casa de saúde" (Brandão, 1886:25). Durante a segunda metade do século XIX, surgiriam algumas casas de saúde especificamente destinadas ao tratamento de alienados na cidade do Rio de Janeiro, tais como a Casa de Saúde Dr. Eiras, criada no começo dos anos 60 do século mencionado e a Casa de Saúde São Sebastião, pertencente aos Drs. Teixeira Brandão, Júlio de Moura, Lourenço da Cunha e Felício dos Santos, criada em 1881.221 Mas a prática de se internar alienados em casas de saúde não-especializadas parece ter sido corrente na época.222 Para o Dr. Teixeira Brandão, os alienados internados nesses estabelecimentos estavam submetidos a condições piores do que os internados no Hospício de Pedro II. Além de não se exigirem provas de idoneidade dos proprietários e do pessoal encarregado da guarda e da vigilância dos internos, as condições de edificação, de acomodação e de tratamento dos alienados não eram averiguadas. Apesar de afirmar que não tencionava "molestar a nenhum dos proprietários das casas de saúde existentes no Império", acreditando que eles não seriam "capazes de entrar em conchavos indecorosos e de atentar contra a liberdade de quem quer que seja", as denúncias do Dr. Teixeira Brandão explicitavam a disputa entre alienistas e generalistas pelo controle do tratamento da alienação mental, situada no próprio âmbito do saber e da prática médica. Como será visto posteriormente, os alienistas conquistariam importante vitória quanto a isso, com a lei da assistência médico-legal a alienados aprovada em 1903.
O Hospício de Pedro II também seria objeto de severas críticas do Dr. Teixeira Brandão. As suas instalações – apesar de elogiadas na comunicação feita à Sociedade Médico-Psicológica de Paris em 1883 – não se adequavam aos fins da instituição:
A suntuosidade do edifício pode ofuscar aos leigos os seus defeitos que são muitos, mas não os ocultará àqueles que nos estabelecimentos dessa ordem procurarem o que é útil aos doentes e não agradável somente à vista.
No intuito principal de levantar-se um palácio para os loucos, erigiu-se um monumento aparatoso com poucas acomodações ..., sem as divisões necessárias à separação dos doentes, seguindo os caracteres da moléstia, e sem os aparelhos indispensáveis à aplicação dos meios terapêuticos. (Brandão, 1886:25)
Inicialmente, é importante observar que o desejo do "doente" – revelando aquilo que seria mais "conveniente", mais "útil" e, portanto, melhor para si mesmo – só poderia ser apreendido pela sensibilidade do alienista. O caráter inapropriado da arquitetura do hospício vinha sendo objeto de crítica dos diretores do serviço clínico do Hospício há alguns anos. Em seu relatório de 1878, o Dr. Moura e Câmera, por exemplo, apontaria a necessidade de se reconhecer "as numerosas imperfeições que se notam no plano arquitetônico do Hospício de Pedro II", chegando mesmo a afirmar que "aí a arte esqueceu a ciência" (apud Machado et al., 1978:452).
Mais grave ainda, os defeitos da arquitetura não eram sanados – e nem mesmo abrandados – pela ocupação do espaço interior, mas agravados. Em primeiro lugar colocava-se o problema da superlotação. Segundo Azevedo (1877, V.I:393), as reclamações do Dr. Barbosa quanto a esse fato levariam à proibição, em 4 de julho de 1854, da "remessa de alienados das províncias sem prévia autorização do Ministro do Império, ouvida a provedoria da Santa Casa".223 Apesar de fixada originalmente em 350 alienados, a lotação do Hospício de Pedro II seria limitada em 300 alienados por Aviso do Ministério do Império de 10 de janeiro de 1859. Medida que não teria surtido o efeito esperado, pois segundo o Dr. Moura e Câmera, na prática, a instituição abrigava uma população que oscilava sempre entre 300 e 350 indivíduos internados. O aspecto quantitativo da superlotação contribuiria para agravar a precariedade da distribuição dos indivíduos internados de acordo com os diferentes "tipos" de alienação mental. Nesse sentido, para o Dr. Moura e Câmera, por exemplo, o Hospício de Pedro II caracterizar-se-ia pela presença de um verdadeiro "caos de concepções delirantes", já que a classificação da população internada era definida exclusivamente pelos critérios sexual, social e comportamental. Conforme observou-se anteriormente, trata-se de uma crítica recorrente nos relatórios dos diretores do serviço clínico desde os primeiros tempos de funcionamento da referida instituição. A questão assumia dimensões ainda mais sérias em virtude da presença de doentes crônicos num estabelecimento voltado prioritariamente – pelo menos teoricamente – para a recuperação e a cura dos indivíduos aí internados.
Para que tal objetivo pudesse ser alcançado com sucesso era preciso transformar o Hospício num asilo especialmente destinado a acolher os alienados que, tratados, apresentassem sinais evidentes de melhora ou até mesmo de cura. Desse modo, em seu primeiro relatório o Dr. Manoel Barbosa, além de combater, como já visto, as admissões indiscriminadas de "doentes moribundos" – que na sua avaliação seriam os principais responsáveis pelas altas taxas de mortalidade do Hospício – condenava a presença de "indigentes incuráveis", de "inquietos e turbulentos" e de "paralíticos, idiotas e epilépticos" (Barbosa, 1853).224 Assim, desde essa época, os alienistas brasileiros revelavam uma preocupação em sofisticar a especialização do espaço asilar, reivindicando, inclusive, a criação de instituições medicalizadas exclusivamente destinadas a abrigar os alienados crônicos ou incuráveis.225 Porém, na medida em que a criação de tais estabelecimentos não era sequer discutida no âmbito do governo monárquico, os diretores do serviço clínico passariam a solicitar que o prédio do Hospício de Pedro II fosse reformado, criando-se espaços especiais para os "agitados", os epilépticos, os idiotas etc. Desse modo, buscava-se assegurar uma separação efetiva entre curáveis e incuráveis, bem como o isolamento mais rígido dos alienados que manifestassem comportamentos perigosos.
No entanto, dada a inviabilidade da imediata criação de instituições especialmente destinadas aos incuráveis, apelava-se para se manter a responsabilidade das famílias no cuidado dos "crônicos inofensivos". Nesse sentido, o artigo 23 do Regimento Interno de 1858 estabelecia que os indivíduos encaminhados para a instituição que fossem
... reconhecidos como idiotas, imbecis, epilépticos ou paralíticos dementes, que se reputam incuráveis e podem viver inofensivos no seio das famílias, não devem ocupar no Hospício os lugares destinados principalmente aos enfermos curáveis ou que tenham probabilidade de recobrar a razão.
Apesar de tal determinação, no relatório relativo ao período de 1887 a 1888, o Dr. Teixeira Brandão – então diretor do serviço clínico do Hospício de Pedro II – reclamava que "... quase um terço dos alienados, recebidos no decurso do corrente ano, sofrem de moléstias incuráveis ou de estados constitucionais mórbidos e irremediáveis".
O alienista critica as disposições do Regimento que, "por serem por demais exclusivas", tornavam-se, na prática, inexeqüíveis. Argumentando que os epilépticos portadores de "perturbações mentais" eram "perigosíssimos", não podendo, portanto, "viver em liberdade" e que se alguns "idiotas e dementes" viviam "perfeitamente tranqüilos, outros, porém, agitam-se de tempos a tempos, tornando-se nessas ocasiões prejudiciais e difíceis de serem contidos", sugeria que não fossem admitidos "à matrícula os idiotas absolutamente incapazes, por impotência motora ou paralisias de qualquer natureza, de fazerem o mal" e que fossem admitidos os dementes, mas desde que reconhecidos inofensivos deveriam ser retirados do estabelecimento.226 As medidas propostas pelo Dr. Teixeira Brandão para evitar que o Hospício de Pedro II se transformasse em "asilo de incuráveis" revelam nítida preocupação no intuito de manter uma "suspeição generalizada" em torno dos doentes mentais, mesmo daqueles que pudessem parecer inofensivos, buscando-se assegurar exclusivamente ao alienista a capacidade de identificar os "falsos inofensivos" e, portanto, de estabelecer quem deveria ser tratado pela família e quem deveria ser internado no hospício – prerrogativa que não era tão claramente garantida pelas determinações do artigo 23 do Regimento Interno. Além disso, para alguns alienistas, muitas vezes, o foco central das origens ou do agravamento da doença mental poderia estar localizado no âmago da própria família. Nesses casos, o isolamento do alienado no hospício asseguraria a sua completa separação do meio familiar considerado pernicioso. Observe-se que tal concepção, amplamente aceita entre os especialistas em medicina mental, encontraria certa resistência, expressa, por exemplo, nas considerações feitas por Raimundo Teixeira Mendes acerca da loucura. Para este positivista ortodoxo, a convivência com as pessoas da família e com os amigos constituía "o meio mais seguro para chamar um homem à razão" (Mendes, 1885:28).227
A precariedade da medicalização do Hospício de Pedro II é vista, ainda pelo Dr. Teixeira Brandão, por meio da fragilidade do papel efetivo que os médicos possuíam no cotidiano da instituição. Quanto a isso, a ação dos médicos não poderia continuar restrita "à prescrição dos agentes terapêuticos", devendo ser ampliada de modo que a eles coubesse a organização e a direção dos elementos básicos do tratamento moral: os "exercícios metódicos", as "distrações" e o "trabalho". O número insuficiente de médicos no estabelecimento continuava sendo objeto de queixas. Em 1886 havia apenas cinco médicos (três facultativos clínicos e dois médicos internos) para 308 alienados internados, determinando que os contatos entre os primeiros e os segundos fossem extremamente superficiais. Teixeira Brandão reivindicava ainda que a autoridade do diretor do serviço clínico fosse ampliada, "tornando-o diretamente responsável por todas as ocorrências que se passarem no hospício" (Brandão, 1886:75).
Os aspectos denotadores da fragilidade da medicalização do Hospício de Pedro II, até aqui examinados, acabariam comprometendo profundamente a sua eficácia não apenas como sendo local de cura, mas também laboratório de observação e de produção do saber alienista. Depois de quatro décadas de funcionamento, essa instituição não teria "dado lugar à produção de um trabalho médico de valor" (Brandão, 1886:44).228 A transformação do Hospício em local privilegiado de produção de um conhecimento especializado, tal como sonharam os defensores de sua criação nos anos 30 do século XIX, era também obstaculizada pela ausência de informações precisas sobre o alienado internado. Em seus primeiros relatórios o Dr. Manoel Barbosa já se mostrava bastante preocupado com essa questão, referindo-se à "negligência" das autoridades e das famílias que não forneciam dados precisos sobre a "origem e época do aparecimento do delírio nos doentes remetidos para o Hospício de Pedro II", quesitos indispensáveis para o "devido esclarecimento da origem e natureza dos padecimentos dos doentes" (Barbosa, 1856:101). Entretanto, de acordo com o Dr. Teixeira Brandão, mesmo no interior do hospício, o acompanhamento dos alienados era extremamente precário, não havendo "uma estatística por onde se possa saber da influência da idade, do sexo, da profissão, de todas as causas enfim, que, ordinariamente, provocam o aparecimento das moléstias mentais; nem meio algum que demonstre qual o regime e o método de tratamento que melhores resultados hão produzido" (Brandão, 1886:45).
As 'vozes que se levantaram' durante os anos 80 do século XIX, dentre as quais se destacaram as dos Drs. Nuno de Andrade e Teixeira Brandão, retomavam, ampliavam e aprofundavam as queixas formuladas pelos diretores do serviço clínico do Hospício de Pedro II durante os primeiros 30 anos de sua existência, pressionando por reformas na instituição que assegurassem o cumprimento eficiente dos objetivos em torno dos quais havia sido criada, sintetizados na passagem do relatório do Dr. Ludovino da Silva, selecionada como epígrafe deste capítulo. Era preciso ampliar a capacidade do HP II e criar outras instituições similares em todo o Império, capazes de recolher "esses infelizes, que entregues à sua razão pervertida, e abandonados pelos seus, divagam desnorteados pelo nosso imenso território, servindo de ludíbrio à população". Além disso, estando a "progressão numérica dos alienados... na razão direta da propagação dos asilos", a edificação de "novos Hospícios" viabilizaria a identificação de todos os alienados existentes no País e a reclusão daqueles que, conhecidos, fossem diagnosticados como "perigosos".
De acordo com a avaliação de alguns alienistas das primeiras décadas do século XIX, os regimes republicanos ou representativos, "dando mais liberdade à expressão dos pensamentos, e pondo as paixões mais em jogo" seriam os "mais favoráveis" ao "desenvolvimento da loucura" (Peixoto, 1837:6). No Brasil, a Proclamação da República viabilizaria a implantação mais completa do projeto de medicalização da loucura. Consolidada como objeto exclusivo do saber e da prática alienista, a loucura seria efetivamente transformada em doença mental, o que implicaria, dentre outras coisas, a ampliação dos limites que definiam a insanidade mental, como visto no terceiro capítulo. Assim, as possibilidades de rotulação das mais variadas condutas como anormais tornavam-se ilimitadas, determinando concretamente, a partir da implantação do regime republicano, o aumento significativo dos indivíduos que, diagnosticados como doentes mentais, engrossavam dia após dia a população internada no Hospício Nacional de Alienados. Mas essa é uma outra história, abordada no próximo capítulo.