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UM POUCO MENOS FRANCÊS, UM POUCO MAIS ALEMÃO
N
a manhã seguinte, Beatrix foi até ao quarto de Pierrot para lhe dizer que iam descer a montanha para comprarem roupas novas.
– As coisas que trouxeste contigo de Paris não eram adequadas para aqui – disse, olhando em redor e encaminhando-se para a porta, para a fechar. – O Senhor tem ideias muito rígidas sobre estas coisas. E, de qualquer maneira, será mais seguro para ti vestires roupas tradicionais alemãs. As tuas eram um bocadinho boémias de mais para o gosto dele.
– Mais seguro? – repetiu Pierrot, surpreendido com a escolha das palavras.
– Não foi fácil convencê-lo a deixar-te vir – explicou ela. – Não está acostumado com crianças. Tive de lhe prometer que tu não serias um problema.
– Não tem filhos dele?
Pierrot tinha a esperança de que houvesse outra criança da sua idade que chegaria quando o Senhor chegasse.
– Não. E é bom que não faças nada que o aborreça, não vá decidir mandar-te de volta para Orléans.
– O orfanato não era tão mau como eu pensei que ia ser – disse Pierrot. – A Simone e a Adèle foram muito gentis comigo.
– Foram, certamente. Mas o que importa é a família. E tu e eu somos família. A única família que resta a cada um de nós. Temos de nos amparar um ao outro, sempre.
Pierrot assentiu, mas havia uma coisa em que andava a pensar desde que a carta da tia chegara.
– Porque é que não nos conhecemos antes? – perguntou. – Porque é que nunca nos visitaste, ao Papa, à Maman e a mim, em Paris?
Beatrix abanou a cabeça e pôs-se de pé.
– Essa história não é para hoje – disse. – Mas falaremos sobre isso noutra altura, se quiseres. Agora vem, deves estar com fome.
Depois do pequeno-almoço, saíram e foram ter com Ernst, que estava descontraidamente encostado ao carro, lendo o jornal. Quando olhou para cima e os viu, sorriu e dobrou o jornal a meio, enfiando-o debaixo do braço e abrindo a porta de trás. Pierrot olhou para o uniforme que ele trazia – que elegante estava! – e perguntou a si mesmo se conseguiria convencer a tia a comprar-lhe uma coisa assim. Sempre gostara de uniformes. O pai guardava um, no roupeiro do apartamento de Paris – um casaco em tecido verde-maçã com um colarinho redondo e uma fila de seis botões no meio, e calças a condizer –, mas nunca o vestira. Uma vez, quando apanhou Pierrot a experimentar o casaco, o Papa gelara, à porta do quarto, incapaz de se mover, e a Maman repreendera o filho por andar a mexericar em coisas que não eram dele.
– Bom dia, Pierrot! – cumprimentou-o alegremente o motorista, despenteando-lhe o cabelo. – Dormiste bem?
– Muito bem, obrigado.
– Ontem sonhei que estava a jogar futebol pela Alemanha – disse Ernst. – Marquei o golo da vitória contra os ingleses e toda a gente gritou de entusiasmo, e depois fui levado em ombros para fora do campo pelos outros jogadores.
Pierrot só acenou que sim com a cabeça. Não gostava quando as pessoas contavam os sonhos que tinham tido. Tal como acontecia com algumas histórias mais complicadas de Anshel, nunca faziam qualquer sentido.
– Para onde, Fräulein Fischer? – perguntou Ernst, fazendo uma grande vénia perante Beatrix e tirando o chapéu num gesto dramático.
Ela riu-se e ocupou o banco de trás.
– Devo ter recebido uma promoção, Pierrot – disse. – O Ernst nunca se dirige a mim em termos tão respeitosos! Para a cidade, por favor. O Pierrot precisa de roupas novas.
– Não lhe dês ouvidos – disse Ernst, ocupando o seu lugar no assento do condutor e ligando a ignição. – A tua tia sabe muito bem o apreço que tenho por ela.
Pierrot voltou-se para olhar para Beatrix, cujos olhos se fixavam nos do motorista pelo espelho retrovisor, e reparou no meio sorriso que lhe iluminava o rosto e no ligeiro rubor que lhe aparecia nas faces.
Quando partiram, o rapaz olhou para trás, pela janela do carro, e ficou a ver a casa a afastar-se até desaparecer. Era muito bonita, o seu contorno de madeira dourada destacando-se na paisagem nevada e áspera, como um amuleto inesperado.
– Lembro-me da primeira vez que a vi – disse Beatrix, seguindo o olhar de Pierrot. – Não conseguia acreditar em quão tranquila era. Tive a certeza de que este seria um lugar de grande serenidade.
– E é – disse Ernst em voz muito baixa, mas suficientemente alta para Pierrot ouvir. – Quando ele não anda por aí.
– Há quanto tempo vives aqui? – perguntou Pierrot, voltando-se para a tia.
– Bem, eu tinha trinta e quatro quando cheguei, por isso deve ser… oh, há pouco mais que dois anos.
Pierrot observou-a cuidadosamente. Era muito bonita, isso era evidente, com o seu longo cabelo ruivo que encaracolava um pouco junto aos ombros e a pele pálida, imaculada.
– Então, tens trinta e seis? – perguntou um momento depois. – És muito velha!
– Ah! – exclamou Beatrix, desatando a rir.
– Pierrot, tu e eu temos de ter uma conversinha – disse Ernst. – Se alguma vez tiveres uma namorada, precisas de aprender a falar com ela. Nunca se deve dizer a uma mulher que ela parece velha. Diz sempre cinco anos menos do que te parecer.
– Eu não quero namoradas! – disse Pierrot muito depressa, escandalizado com a ideia.
– Isso é o que dizes agora. Vamos lá ver o que sentes daqui a uns anos.
Pierrot fez que não com a cabeça. Lembrava-se muito bem de quando Anshel tinha ficado apanhadinho pela nova rapariga da turma e lhe escrevia histórias e deixava flores na carteira. Tivera de ter uma conversa muito séria sobre aquilo com o amigo, mas não conseguira fazer nada que o levasse a mudar de ideias; Anshel estava completamente apanhado. Tudo aquilo parecera absolutamente ridículo a Pierrot.
– Que idade tens tu, Ernst? – perguntou Pierrot, inclinando-se para diante e encaixando-se entre o espaço que separava os dois bancos da frente, para ver melhor o motorista.
– Vinte e sete – disse Ernst, olhando para ele. – Eu sei, é impossível acreditar. Pareço um rapaz no resplendor da juventude.
– Olhos na estrada, Ernst – disse calmamente a tia Beatrix, mas num tom que traía o seu divertimento. – E tu encosta-te, Pierrot, é perigoso ires assim. Se houver um solavanco…
– Vais casar com a Herta? – perguntou Pierrot, interrompendo-a.
– A Herta? Qual Herta?
– A criada da casa.
– A Herta Theissen? – perguntou Ernst, elevando a voz de horror. – Deus me livre, não! Por que diabo haverias tu de pensar uma coisa dessas?
– Ela disse que tu eras atraente e divertido e atencioso.
Beatrix soltou uma gargalhada e tapou a boca com as mãos.
– Será verdade, Ernst? – perguntou depois, para arreliar o motorista. – Estará a graciosa Herta apaixonada por ti?
– As mulheres passam a vida a apaixonar-se por mim – disse Ernst com um encolher de ombros. – É uma cruz que tenho de carregar. Olham para mim uma vez e já está. Perdidamente apaixonadas para sempre. – Estalou os dedos ao dizer isto. – Não é fácil ser assim tão charmoso, sabes?
– Nem tão humilde! – acrescentou Beatrix.
– Talvez ela goste da tua farda – sugeriu Pierrot.
– Todas as raparigas adoram um homem de farda – disse Ernst.
– Todas as raparigas, talvez – comentou Beatrix –, mas não de todas as fardas.
– Sabes porque é que as pessoas usam fardas, não sabes, Pierrot? – continuou o motorista.
O rapaz acenou que não com a cabeça.
– Porque as pessoas que as usam acreditam que podem fazer tudo o que quiserem.
– Ernst – disse Beatriz em voz baixa.
– Que podem tratar os outros de uma maneira que nunca tratariam se estivessem vestidas com roupas normais. Colarinhos, camuflados ou botas de cano alto, as fardas autorizam-nos a exercer a nossa crueldade sem sentirmos culpa.
– Já chega, Ernst – insistiu Beatrix.
– Não achas que tenho razão?
– Sabes bem que sim – disse Beatrix –, mas não é momento para uma conversa destas.
Ernst não disse mais nada e conduziu em silêncio por um bocado, enquanto Pierrot pensava no que ele dissera e tentava compreender. Na verdade, não concordava com ele. Adorava fardas e desejava ter uma só sua.
– Aqui não há crianças com quem se possa brincar? – perguntou depois.
– Receio bem que não – respondeu Beatrix. – Na cidade, sim, há muitas. E, claro, em breve começarás a ir à escola, por isso, atrevo-me a dizer que farás alguns amigos por lá.
– E eles poderão ir ao cimo da montanha para brincar?
– Não, o Senhor não gostaria disso.
– A partir de agora, temos de tomar conta um do outro, Pierrot – disse Ernst, do banco da frente. – Preciso de outro homem por aqui. A maneira como as mulheres me maltratam é monstruosa.
– Mas tu és velho – disse Pierrot.
– Não sou assim tão velho!
– Quem tem vinte e sete anos é praticamente um ancião.
– Se ele é um ancião – perguntou Beatrix –, eu sou o quê?
Pierrot hesitou um instante.
– Pré-histórica – disse, dando uma risadinha.
Beatrix devolveu-lhe uma gargalhada.
– Oh, meu pequeno Pierrot – disse Ernst –, tens mesmo muito que aprender sobre as mulheres!
– Tinhas muitos amigos em Paris? – perguntou Beatrix.
Pierrot acenou que sim com a cabeça e disse:
– Alguns. E um inimigo mortal que me chamava “Le Petit”, por eu ser tão pequeno.
– Mas vais crescer – disse Beatrix.
– E fanfarrões há em todo o lado – disse Ernst, ao mesmo tempo.
– Mas o meu melhor amigo, o Anshel, vivia no andar de baixo, e é dele que eu sinto mais falta. Está a tomar conta do meu cão, o D’Artagnan, porque não me deixaram levá-lo para o orfanato. Fiquei com ele algumas semanas, quando a Maman morreu, mas a mãe dele não quis que eu ficasse a viver com eles.
– Porquê? – perguntou Ernst.
Pierrot pensou um momento e considerou a possibilidade de contar a conversa que tinha ouvido entre Mme. Bronstein e a amiga dela, naquele dia, na cozinha, mas decidiu não o fazer. Ainda se lembrava de como ela tinha ficado zangada quando o viu a usar o solidéu de Anshel, e de não querer que ele os acompanhasse nas idas à sinagoga.
– O Anshel e eu passávamos a maior parte do tempo juntos – disse, ignorando a pergunta de Ernst. – Quando ele não estava a escrever as suas histórias…
– As suas histórias? – perguntou Ernst.
– Quer ser escritor, quando for grande.
Beatrix sorriu por um momento e perguntou:
– É isso que também queres ser?
– Não – respondeu Pierrot. – Tentei algumas vezes, mas nunca consegui escrever nada de jeito. Eu costumava inventar coisas, ou falar sobre coisas engraçadas que tinham acontecido na escola, e então o Anshel desaparecia durante uma hora e, quando voltava, entregava-me as páginas escritas. Dizia sempre que, apesar de ter sido ele a escrever, a história era minha na mesma.
Enquanto Beatrix pensava naquilo, os seus dedos tamborilavam nos assentos de pele.
– Anshel… – disse pós uma pausa. – Foi a mãe dele que me escreveu, claro, e que me disse onde eu poderia encontrar-te. Recorda-me, Pierrot, qual era o apelido do teu amigo?
– Bronstein.
– Anshel Bronstein. Estou a ver.
Uma vez mais, Pierrot reparou num piscar de olho da tia para Ernst, pelo retrovisor; e, desta vez, o motorista fez um ligeiro aceno de cabeça. A sua expressão era, agora, muito séria.
– Isto aqui vai ser uma chatice – assumiu Pierrot, em tom de derrota.
– Haverá sempre muita coisa para fazer e para te manter ocupado, quando não estiveres na escola – disse Beatrix. – Tenho a certeza de que te arranjaremos um trabalho qualquer.
– Trabalho? – perguntou Pierrot, olhando-a surpreendido.
– Sim, claro. Toda a gente da casa no cimo da montanha tem de trabalhar. Até tu. O trabalho liberta, é o que o Senhor costuma dizer.
– Eu pensei que já era livre – disse Pierrot.
– Eu também – disse Ernst. – Acontece que estávamos errados, tu e eu.
– Para com isso, Ernst – disparou Beatrix.
– Que tipo de trabalho? – perguntou Pierrot.
– Ainda não tenho a certeza – respondeu ela. – O Senhor é capaz de ter alguma ideia sobre isso. Senão, estou certa de que a Herta inventará alguma coisa. Ou talvez possas ajudar a Emma na cozinha. Oh, não fiques com esse ar preocupado, Pierrot. Nos dias que correm, todos os alemães, jovens ou velhos, são obrigados a contribuir com alguma coisa para a Pátria.
– Mas eu não sou alemão – disse Pierrot. – Sou francês.
Beatrix voltou-se bruscamente para ele e o sorriso que tinha no rosto desvaneceu-se.
– Nasceste em França, isso é verdade – disse. – E a tua mãe era francesa. Mas o teu pai, o meu irmão mais velho, era alemão. E isso faz de ti alemão também, compreendes? A partir de agora, é melhor nem sequer dizeres de onde vieste.
– Mas… porquê?
– Porque é mais seguro assim – disse ela. – E há outra coisa sobre a qual quero conversar contigo. O teu nome.
– O meu nome? – inquiriu Pierrot, olhando para ela e franzindo o sobrolho.
– Sim. – Beatrix hesitou, como se quase não pudesse acreditar no que estava prestes a dizer. – Acho que devíamos deixar de te tratar por Pierrot.
A boca do rapaz abriu-se de espanto; não podia acreditar no que a tia dizia.
– Mas eu sempre me chamei Pierrot – afirmou. – É… ora, é o meu nome!
– Mas é um nome tão francês! Pensei que talvez pudéssemos tratar-te por Pieter. É o mesmo nome, só que na versão alemã. Não é assim tão diferente…
– Mas eu não sou um Pieter. Sou um Pierrot.
– Por favor, Pieter…
– Pierrot!
– Serás capaz de confiar em mim? No teu coração, podes continuar a ser Pierrot, claro. Mas, no cimo da montanha, quando outras pessoas estiverem presentes, quando especialmente o Senhor e a Senhora estiverem presentes, serás Pieter.
Pierrot suspirou.
– Mas eu não gosto – disse.
– Tens de compreender que, de coração, só estou a pensar no que é melhor para ti. Foi por isso que te trouxe para cá, para viveres comigo. Quero manter-te a salvo. E esta é a única maneira que tenho para o fazer. Preciso que sejas obediente, Pieter, mesmo que, por vezes, as coisas que eu te pedir para fazeres pareçam um bocadinho estranhas.
Então fez-se um longo silêncio, enquanto ainda desciam a montanha, e Pierrot perguntou a si mesmo que mais mudaria na sua vida antes de o ano acabar.
– Como se chama a cidade para onde estamos a ir? – perguntou finalmente.
– Berchtesgaden – respondeu Beatrix. – Agora já não falta muito. Mais alguns minutos e chegamos.
– Ainda estamos em Salzburgo? – perguntou Pierrot, porque aquele era o último nome de lugar que lhe tinham pregado no casaco.
– Não, estamos a cerca de trinta quilómetros de lá – respondeu ela. – As montanhas que vês à tua volta são os Alpes Bávaros. Ali – apontou na direção da janela esquerda – é a fronteira com a Áustria. E ali – apontou para a direita – é Munique. À vinda para cá, passaste por Munique, não foi?
– Sim – disse Pierrot. – E por Mannheim – acrescentou, recordando-se do soldado na estação que lhe calcara os dedos e que parecera ter prazer com a dor que estava a infligir-lhe. – Por isso, ali – acrescentou, pondo a mão de fora e apontando para longe –, depois das montanhas e no mundo invisível, além, deve ser Paris. Ali é a minha casa.
Beatrix abanou a cabeça e pôs a mão de Pierrot para baixo.
– Não, Pieter – disse, olhando para trás, para o cimo da montanha. – Ali é a tua casa. Em Obersalzberg. Agora, é ali que vives. Não podes pensar mais em Paris. É possível que não voltes lá durante muito tempo.
Pierrot sentiu que uma enorme tristeza crescia dentro de si e o rosto da Maman surgiu-lhe no pensamento; uma imagem formando-se, eram eles dois, sentados lado a lado em frente à lareira, à noite, ela fazendo o seu tricô, ele lendo um livro ou fazendo um desenho num caderno de esquiços. Pensou em D’Artagnan e em Mme. Bronstein, no andar de baixo; e, quando pensou em Anshel, os seus dedos fizeram o sinal da raposa e depois o sinal do cão.
“Quero ir para casa”, pensou para si mesmo, torcendo as mãos de uma maneira que só Anshel compreenderia.
– O que é que estás a fazer? – perguntou Beatrix.
– Nada – disse Pierrot, pousando novamente as mãos no assento e olhando pela janela.
Alguns minutos mais tarde, chegaram ao mercado da cidade de Berchtesgaden e Ernst estacionou o automóvel num local sossegado.
– Vão demorar? – perguntou, voltando-se para trás e olhando para Beatrix.
– Talvez um bocadinho – respondeu ela. – Ele precisa de roupas, precisa de sapatos. Um corte de cabelo também não ia mal, pois não? Temos de o tornar um pouco menos francês e um pouco mais alemão.
O motorista olhou para Pierrot um momento e acenou que sim com a cabeça.
– Sim, provavelmente – disse. – Quanto mais janota ficar, melhor para todos nós. Afinal, ele ainda pode mudar de ideias.
– Quem é que ainda pode mudar de ideias? – perguntou Pierrot.
– Talvez demoremos duas horas – disse a tia Beatrix, ignorando o sobrinho.
– Sim, tudo bem.
– A que horas é que tu…?
– Pelo meio-dia. A reunião só deve demorar uma hora, por aí.
– A que reunião é que vais? – perguntou Pierrot.
– Não vou a reunião nenhuma – respondeu Ernst.
– Mas acabaste de dizer…
– Caluda, Pieter! – disse Beatrix em tom irritado. – Nunca ninguém te disse que não devemos ouvir as conversas dos outros?
– Mas eu estou mesmo aqui! – protestou ele. – Como poderia não vos ouvir?
– Não faz mal – disse Ernst, voltando-se para o rapaz e sorrindo. – Gostaste do passeio?
– Acho que sim – respondeu Pierrot.
– Imagino que, um dia destes, gostasses de conduzir um carro como este, não?
Pierrot acenou afirmativamente.
– Gostava – disse. – Gosto de carros.
– Bem, se te portares bem, talvez eu te ensine. É um favor que te farei. Em troca, fazes-me tu um favor a mim?
Pierrot voltou-se para a tia, mas ela ficou em silêncio.
– Posso tentar – disse.
– Não, preciso que faças mais do que tentar – disse Ernst. – Preciso que prometas.
– Está bem, prometo – concordou Pierrot. – O que é?
– O teu amigo, o Anshel Bronstein.
– O que é que tem? – perguntou Pierrot, franzindo o sobrolho.
– Ernst… – disse Beatrix, nervosa, inclinando-se para a frente.
– Só um momento, Beatrix – disse o motorista no tom de voz mais sério que usara naquela manhã. – O favor que eu quero que faças é o seguinte: nunca menciones o nome deste rapaz enquanto estiveres na casa do cimo da montanha. Compreendes?
Pierrot olhou para ele fixamente, como se achasse que tinha enlouquecido.
– Mas… porque não? – perguntou. – É o meu melhor amigo. Conheço-o desde que nasci. É praticamente meu irmão!
– Não – disse o motorista em tom cortante. – Não é teu irmão. Não digas uma coisa dessas. Pensa, se precisares. Mas nunca o digas em voz alta.
– O Ernst tem razão – disse Beatrix. – Será melhor se, pura e simplesmente, não falares do teu passado. Guarda as memórias na tua cabeça, claro, mas não fales sobre elas.
– E não fales desse rapaz, o Anshel – insistiu Ernst.
– Não posso falar sobre os meus amigos, não posso usar o meu próprio nome… – disse Pierrot, sentindo-se frustrado. – Há mais alguma coisa que eu não possa fazer?
– Não, é só isso – disse Ernst, sorrindo para ele. – Se seguires estas regras, um dia ensino-te a conduzir.
– Está bem – disse Pierrot lentamente, pensando se o motorista não seria um bocadinho maluco, o que não era um bom atributo num homem que tinha de conduzir um automóvel montanha acima e montanha abaixo, por um caminho sinuoso e íngreme, várias vezes por dia.
– Até daqui a duas horas, então – disse Ernst assim que Pierrot e a tia saíram do carro.
Quando já se afastava, Pierrot olhou para trás e viu o motorista tocando afetuosamente no cotovelo da tia. Olhavam-se olhos nos olhos, não tanto como quem sorri, mas como quem partilha um momento de ansiedade.
O mercado da cidade estava bastante animado e, à medida que caminhavam, a tia Beatrix ia cumprimentando alguns conhecidos, apresentando-lhes Pierrot e contando-lhes que ele viera viver com ela. Havia muitos soldados, quatro dos quais sentados na esplanada de uma taberna, fumando e bebendo cerveja, apesar de ainda ser muito cedo; quando viram Beatrix a aproximar-se, deitaram fora os cigarros e puseram-se em sentido. Um tentou colocar o capacete à frente do seu copo de cerveja, mas o copo era alto de mais para ser escondido. Deliberadamente, a tia de Pierrot não olhou na direção deles, ao passar, mas o rapaz não conseguiu evitar ficar intrigado com a onda de agitação que a chegada dela tinha provocado.
– Conheces aqueles soldados? – perguntou-lhe.
– Não – disse Beatrix. – Mas eles conhecem-me a mim. Têm medo de que eu faça queixa deles por estarem a beber quando deviam estar em patrulha. Sempre que o Senhor não está, descuidam um pouco os seus deveres. Ora, cá estamos – disse, quando chegaram a uma loja de roupas. – Não te parecem bem?
As duas horas que se seguiram foram, talvez, as mais aborrecidas da vida de Pierrot. Beatrix insistia em que ele experimentasse trajes tradicionais alemães para rapaz – camisas brancas e calças em pele, seguras por suspensórios também em pele castanha, e meias pelo joelho, usadas por fora das calças. E depois foi levado a uma sapataria, onde lhe mediram os pés e o obrigaram a desfilar de um lado para o outro, na loja, enquanto toda a gente olhava para ele. Depois, regressaram à primeira loja, onde os arranjos necessários já tinham sido feitos, e Pierrot teve de experimentar tudo outra vez, peça a peça, e andar às voltas no meio da sala, enquanto a tia e o empregado lhe diziam que estava elegante.
Sentiu-se um idiota.
– Podemos ir, agora? – perguntou, enquanto a tia pagava a conta.
– Sim, claro – respondeu ela. – Estás com fome? Vamos almoçar qualquer coisa?
Pierrot não tinha de pensar muito. Estava sempre com fome e, quando disse isto à tia, Beatrix deu uma gargalhada.
– És tal e qual o teu pai – respondeu-lhe ela.
– Posso perguntar-te uma coisa? – questionou ele, quando entraram num café e pediram sopa e sanduíches, e a tia acenou que sim com a cabeça.
– Claro que sim.
– Porque é que nunca nos foste ver, quando eu era pequeno?
Beatrix pensou por um momento, mas esperou até a comida chegar para falar.
– O teu pai e eu nunca fomos muito próximos enquanto crianças – disse. – Ele era mais velho que eu e tínhamos pouco em comum. Mas quando ele foi lutar na Grande Guerra, senti muito a sua falta e passei a vida preocupada com ele. Ele escrevia cartas lá para casa, claro, e às vezes elas faziam sentido, mas outras pareciam bastante incoerentes. Ele ficou gravemente ferido, como sabes…
– Não – disse Pierrot, surpreendido. – Não, não sabia.
– Mas ficou. Pergunto-me por que razão nunca ninguém te contou. Uma noite, estava com os seus camaradas nas trincheiras quando um grupo de soldados ingleses atacou e os dominou. Mataram quase toda a gente, mas de algum modo o teu pai conseguiu escapar, apesar de ter sido atingido por uma bala num ombro, bala essa que o teria matado se o tivesse atingido uns centímetros mais à direita. Escondeu-se numa floresta próxima e viu os soldados arrastarem um infeliz rapazinho do seu esconderijo. Era o último soldado sobrevivente daquela trincheira e discutiam o que haviam de fazer com ele, até que um dos ingleses simplesmente lhe deu um tiro na cabeça. Não sei bem como, o Wilhelm conseguiu regressar às linhas alemãs, mas tinha perdido muito sangue e estava delirante. Conseguiram fazer-lhe um curativo e mandaram-no para o hospital algumas semanas, e ele podia ter lá ficado, mas não; mal ficou melhor, insistiu em regressar à frente de combate. – Beatrix olhou em redor, como para se certificar de que ninguém os ouvia, e baixou a voz, até dela restar apenas um murmúrio. – Acho que os ferimentos, combinados com o que vira naquela noite, provocaram grandes estragos na mente dele. Depois da guerra, nunca mais foi o mesmo. Ficou enraivecido, cheio de ódio por tudo e todos que ele achasse que tinham custado a vitória à Alemanha. Nós caíamos-lhe em cima: eu detestava vê-lo naquela cegueira, mas ele respondia que eu não fazia ideia do que estava a dizer, porque nunca tinha visto o que acontecera.
Pierrot franziu o sobrolho, tentado compreender o que ela dizia.
– Mas vocês não estavam do mesmo lado?
– Bem, de certo modo – respondeu. – Mas, Pieter, não é altura para uma conversa destas. Talvez eu consiga explicar-te tudo melhor quando fores mais crescido. Quando souberes um bocadinho mais sobre o mundo. Agora, temos de comer depressa e regressar. O Ernst já vai estar à nossa espera.
– Mas a reunião dele ainda não deve ter acabado.
Beatrix voltou-se e olhou fixamente para o rapaz.
– Ele não tinha reunião nenhuma, Pieter – disse, agora num tom de voz um pouco zangado, e era a primeira vez que Pierrot a ouvia falar assim. – Está à nossa espera no local onde o deixámos, e estará lá quando regressarmos. Estás a entender?
Pierrot acenou que sim com a cabeça, um pouco assustado.
– Está bem – disse, decidindo não voltar a falar no assunto, apesar de saber muito bem o que tinha ouvido e de não haver ninguém no mundo capaz de o convencer do contrário.