P
ierrot vivia na Berghof há quase um ano, quando o Führer lhe deu um presente.
Agora, tinha oito anos e apreciava a vida no cimo de Obersalzberg, incluindo as rígidas rotinas diárias que lhe eram impostas. Todas as manhãs, levantava-se às sete horas e corria até lá fora, até ao armazém, para pegar num saco de comida para as galinhas, uma mistura de grãos e sementes, e depois o espalhar, para o pequeno-almoço das aves. A seguir, ia até à cozinha, onde Emma lhe preparava uma taça de fruta e cereais, que ele comia antes de tomar um rápido banho com água fria.
Ernst levava-o até Berchtesgaden cinco manhãs por semana, para ir à escola. Porque era o recém-chegado e ainda falava com um ligeiro sotaque francês, algumas crianças gozavam-no; só a rapariga que se sentava ao seu lado, Katarina, nunca o tinha feito.
– Não deixes que eles te intimidem, Pieter – disse-lhe ela. – Não há nada que eu deteste mais que fanfarrões. Não passam de covardes, é o que é. Tens de lhes fazer frente sempre que possas.
– Mas eles estão por todo o lado – respondeu Pierrot, contando-lhe a história do rapaz parisiense que o tratava por “Le Petit”, e a da agressão de Hugo no orfanato das irmãs Durand.
– Então ri-te deles – insistiu Katarina. – Deixa que as suas palavras escorram por ti como água.
Pierrot esperou um momento para dar a sua opinião.
– Alguma vez pensaste – disse cautelosamente – que mais vale ser agressor que agredido? Assim pelo menos nunca ninguém te faz mal.
Katarina voltou-se espantada para ele.
– Não – disse com determinação, abanando a cabeça. – Não, Pieter, nunca pensei isso. Nem por um momento.
– Pois não – respondeu ele rapidamente, desviando o olhar. – Eu também não.
Nos fins de tarde, ele era livre de andar pela montanha, para alegria do seu coração; e como o tempo, àquela altitude, estava normalmente bom – claro e límpido, com o aroma fresco a agulhas de pinheiro –, raramente havia um dia em que ele não passasse algum tempo lá fora. Subia às árvores e ia até à floresta, aventurando-se até longe da casa, para depois descobrir o caminho de volta com o auxílio apenas do seu próprio rasto, do céu e do seu conhecimento da paisagem.
Não pensava tanto na Maman quanto pensara um dia, apesar de o pai aparecer, ocasionalmente, nos seus sonhos, sempre de farda e, normalmente, de espingarda ao ombro. Também se tornara menos diligente nas respostas a Anshel, que agora assinava sempre as suas cartas para a Berghof usando o símbolo que Pierrot sugerira – o sinal da raposa –, em vez do seu nome. A cada dia que passava sem ter respondido, Pierrot sentia-se mais culpado por desiludir o amigo, mas, quando lia as cartas de Anshel e ouvia falar das coisas que estavam a acontecer em Paris, descobria que, pura e simplesmente, não tinha nada para dizer.
O Führer não estava muitas vezes em Obersalzberg, mas, de cada vez que a sua chegada era esperada, havia grande pânico e muitas coisas a fazer. Uma noite, Ute desaparecera sem sequer dizer adeus, e fora substituída por Wilhelmina, uma rapariga tonta que ria constantemente e que, de cada vez que o Senhor se aproximava, corria para um quarto diferente. Pierrot viu que, ocasionalmente, Hitler a olhava fixamente, e Emma, que cozinhava na Berghof desde 1924, julgava saber porquê.
– Quando para cá vim, Pieter – contou-lhe ao pequeno-almoço, certa manhã, fechando a porta e falando em voz baixa –, esta casa não se chamava Berghof. Não, foi o Senhor que inventou esse nome. Originalmente chamava-se Haus Wachenfeld e era a casa de férias de um casal de Hamburgo, os Winter. Quando Herr Winter morreu, contudo, a sua viúva começou a arrendá-la para férias. Isso foi terrível para mim, porque, de cada vez que vinham pessoas novas, eu tinha de descobrir de que tipo de comida gostavam e como queriam que eu cozinhasse. Lembro-me da primeira vez que Herr Hitler veio para cá, em 1928, com a Angela e a Geli…
– Quem? – perguntou Pierrot.
– A irmã e a sobrinha dele. Em tempos, a Angela fez o trabalho que a tua tia faz agora. Vieram naquele verão e Herr Hitler – na altura ele era Herr Hitler, claro, não era o Führer – informou-me de que não comia carne. Eu nunca tinha ouvido tal coisa e achei aquilo terrivelmente estranho. Mas, com o tempo, aprendi a cozinhar os seus pratos preferidos; e, felizmente, ele nunca nos impediu de comermos o que gostávamos.
Logo a seguir, Pierrot ouviu o som de galinhas cacarejando no quintal, como se desejassem que o Führer impusesse os seus hábitos alimentares a toda a gente.
– A Angela era uma mulher de armas – disse Emma, sentando-se e olhando pela janela, ao mesmo tempo que, no seu espírito, recuava nove anos. – Ela e o Senhor passavam a vida a discutir, e parecia ser sempre por causa da Geli, a filha da Angela.
– Ela tinha a minha idade? – perguntou Pierrot, imaginando uma rapariguinha a correr pela montanha, todos os dias, como ele, e pensando que talvez fosse uma boa ideia convidar Katarina para uma visita, um dia.
– Não, era muito mais velha – disse Emma. – Andava pelos vinte anos, acho eu. Durante uns tempos, foi muito próxima do Senhor. Demasiado próxima, talvez.
– Que queres dizer com isso?
Emma hesitou um momento e depois abanou a cabeça.
– Não interessa – rematou. – Nem sequer devia estar a falar sobre estas coisas. Sobretudo contigo.
– Porque não? – perguntou Pierrot, agora mais interessado na conversa. – Por favor, Emma… Prometo que não conto a ninguém.
A cozinheira suspirou e Pierrot viu que ela estava desejosa de uma boa bisbilhotice.
– Está bem – disse Emma, finalmente. – Mas se sopras uma palavra do que te vou contar…
– Não o farei – respondeu ele, rápido.
– Acontece, Pieter, que naquela altura o Senhor já era o líder do Partido Nacional Socialista, que conquistava cada vez mais assentos no Reichstag. Estava a reunir um exército de apoiantes e a Geli gostava da atenção que ele lhe dedicava. Até que se fartou. E se é verdade que ela estava a perder o interesse no Senhor, já ele continuava a adorá-la e seguia-a para todo o lado. E então ela apaixonou-se pelo Emil – à época, motorista do Führer – e aquilo foi um enorme problema. O desgraçado do Emil foi despedido – e teve sorte em escapar com vida! –, a Geli ficou inconsolável e a Angela furiosa, mas o Führer não estava disposto a largar a sobrinha. Insistia que a Geli o acompanhasse para todo o lado, e ela, pobrezinha, tornou-se cada vez mais reservada e infeliz. A razão por que acho que o Führer olha tanto para a Wilhelmina é que ela lhe lembra a Geli. São parecidas. A cara redonda. Os mesmos olhos escuros e as covinhas nas bochechas. Ambas umas cabeças-ocas. A verdade é que no primeiro dia que a vi, Pieter, pensei que estava a ver um fantasma!
Emma voltou aos seus cozinhados e Pierrot ficou a pensar no que ouvira. Contudo, depois de lavar a sua tigela e a sua colher, e de as devolver ao armário, voltou-se para lhe fazer uma última pergunta.
– Um fantasma? Porquê, o que é que lhe aconteceu?
Emma suspirou e abanou a cabeça.
– Foi mandada para Munique – respondeu. – Ele levou-a para lá. Não abdicava de a ter debaixo de olho. E, um dia, tinha-a ele deixado sozinha no apartamento de Prinzregentenplatz, ela foi até ao quarto dele, tirou uma arma da gaveta e matou-se, com um tiro no coração.
Eva Braun acompanhava sempre o Führer quando ele ia à Berghof, e Pierrot tinha instruções rigorosas para a tratar sempre por Fräulein. Era uma senhora alta, com vinte e poucos anos, cabelo loiro e olhos azuis, sempre muito bem vestida. Pierrot nunca a tinha visto com a mesma roupa duas vezes.
– Podes livrar-te disto tudo – disse uma vez a Beatrix, quando estava de partida de Obersalzberg depois de uma estadia de fim de semana, abrindo os roupeiros e passando a mão por todas as blusas e vestidos ali pendurados. – São da estação passada. Os designers em Berlim prometeram mandar-me diretamente modelos das suas novas coleções.
– Dou-as aos pobres? – perguntou Beatrix, mas Eva acenou que não com a cabeça.
– Não seria apropriado – disse – que uma mulher alemã, rica ou pobre, usasse um vestido que antes tivesse tocado na minha pele. Não, atira-as para o incinerador das traseiras, com todo o outro lixo. Para mim já não servem. Deixa-as arder e pronto, Beatrix.
Eva não prestava muita atenção a Pierrot – nem de perto nem de longe a que lhe dedicava o próprio Führer –, mas, ocasionalmente, quando se cruzava com ele num corredor, despenteava-lhe o cabelo ou fazia-lhe cócegas debaixo do queixo, como se ele fosse um Spaniel, e dizia coisas do género “Pieter, meu queridinho”, ou “és mesmo angelical”, comentários que o envergonhavam.
Pierrot não gostava que lhe falassem de cima, e percebia que ela continuava sem saber muito bem se ele trabalhava para eles, se era um inquilino indesejável ou simplesmente um animal de estimação.
Na tarde em que recebeu o presente do Führer, Pierrot estava lá fora, no jardim, não muito longe da casa principal, atirando um pau a Blondi, a fêmea de pastor-alemão de Hitler.
– Pieter! – gritou Beatrix, saindo e acenando ao sobrinho. – Pieter, vem cá, por favor!
– Estou a brincar! – gritou Pierrot de volta, apanhando o pau que Blondi acabara de lhe devolver e lançando-o novamente.
– Já, Pieter! – insistiu Beatrix; e, a resmungar, o rapaz foi ao seu encontro. – Tu e aquela cadela. Sempre que precisar de ti, só tenho de seguir o som dos latidos!
– A Blondi adora isto – disse Pierrot com um risinho. – Achas que deva perguntar ao Führer se, a partir de agora, não quer deixá-la aqui sempre, em vez de a levar com ele para Berlim?
– Se fosse a ti, não perguntava – disse Beatrix, abanando a cabeça. – Bem sabes como ele é chegado à cadela.
– Mas a Blondi adora a montanha. E, pelo que ouvi, quando está nas instalações do partido, fica fechada em salas de reunião e nunca sai para brincar… Já viste como fica contente quando o carro chega e ela sai.
– Por favor, não lhe perguntes – disse Beatrix. – Nós não pedimos favores ao Führer.
– Mas não é por mim! – insistiu Pierrot. – É pela Blondi. O Führer não se vai importar. Acho que se for eu a dizer-lhe…
– Vocês tornaram-se bastante próximos, não é? – perguntou Beatrix, com uma nota de ansiedade no tom de voz.
– Eu e a Blondi?
– Tu e o Herr Hitler.
– Não devias tratá-lo por Führer? – perguntou Pierrot.
– Claro. Foi o que quis dizer. Mas é verdade, não é? Quando ele está cá, passas muito tempo com ele.
Pierrot ficou a pensar naquilo e arregalou muito os olhos quando percebeu porquê.
– Ele lembra-me o Papa – disse-lhe. – A maneira como fala da Alemanha. Sobre o seu destino e o seu passado. O orgulho que tem no seu povo. Era assim que o Papa também costumava falar.
– Mas ele não é o teu papá – disse Beatrix.
– Não, não é – admitiu Pierrot. – Afinal, não passa a noite inteira a pé, a beber. Em vez disso, gasta o seu tempo a trabalhar. Para o bem dos outros. Pelo futuro da Pátria.
Beatrix olhou-o fixamente e abanou a cabeça, antes de desviar o olhar em direção aos picos das montanhas, e Pierrot achou que ela teria sentido um súbito arrepio, porque, inesperadamente, estremeceu e aconchegou-se com os braços.
– Enfim – rematou ele, perguntando-se se agora já poderia voltar para junto de Blondi e brincar. – Precisavas de mim para alguma coisa?
– Não – respondeu Beatrix. – Ele é que precisa.
– O Führer?
– Sim.
– Ora, devias ter dito! – gritou Pierrot, passando por ela a correr em direção à casa, ansioso e com medo de poder estar em sarilhos. – Sabes muito bem que nunca devemos fazê-lo esperar!
Atravessou rapidamente o átrio rumo ao escritório do Senhor, quase indo contra Eva, que saía de um dos quartos. Os braços dela voaram e agarraram-no pelos ombros, cravando-lhes os dedos tão profundamente que Pierrot guinchou.
– Pieter – disparou ela –, já não te pedi que não corresses dentro de casa?
– O Führer quer ver-me – explicou rapidamente Pierrot, tentando libertar-se.
– Chamou por ti?
– Sim.
– Muito bem – disse ela, olhando de relance para o relógio na parede. – Mas não lhe roubes muito tempo, sim? O jantar não tarda a ser servido e eu quero pôr uns discos novos para ele ouvir antes de comermos. A música ajuda-o sempre a fazer a digestão.
Pierrot desviou-se dela e bateu à grande porta de carvalho, esperando até uma voz no interior o mandar entrar. Fechando a porta atrás de si, marchou diretamente até à secretária, bateu os calcanhares como já fizera milhares de vezes nos últimos doze meses e exibiu a saudação de braço estendido que o fazia sentir-se tão importante.
– Heil Hitler! – rugiu a plenos pulmões.
– Ah, cá estás tu, Pieter – disse o Führer, pondo a tampa na sua caneta e contornando a secretária, para o ver. – Até que enfim.
– Peço desculpa, mein Führer – disse Pierrot. – Atrasaram-me.
– Como assim?
Hesitou por um momento.
– Oh, nada de especial, foi uma pessoa que estava a falar comigo lá fora.
– Uma pessoa? Quem?
Pierrot abriu a boca. Tinha as palavras na ponta da língua, mas dizê-las deixava-o inquieto. Não queria arranjar problemas à tia, mas a verdade é que tinha sido culpa dela, disse para si próprio, que não lhe dera o recado mais depressa.
– Não faz mal – disse Hitler após um momento de silêncio. – Agora já estás aqui. Senta-te, por favor.
Pierrot sentou-se na ponta do sofá, muito direito, ao passo que o Führer se sentou à sua frente, num cadeirão. O som da porta a ser arranhada veio do lado de fora e Hitler olhou na sua direção.
– Podes deixá-la entrar – disse, e Pierrot levantou-se de um salto para abrir a porta; Blondi entrou a trotar, olhando em redor à procura do dono e deitando-se aos seus pés com um bocejo exausto. – Linda menina – continuou, baixando-se para a acariciar. – Vocês os dois estavam a divertir-se, lá fora? – perguntou.
– Sim, mein Führer – disse Pierrot.
– A que estavam a brincar?
– Ao “Vai buscar”, mein Führer.
– Tens muito jeito com ela, Pieter. Já eu pareço incapaz de a treinar. Não consigo impor-lhe disciplina, é o problema. Sou um coração mole.
– Ela é muito inteligente, por isso não é difícil – disse Pierrot.
– Pertence a uma raça muito inteligente – respondeu Hitler. – A mãe dela também era uma cadela muito esperta. Alguma vez tiveste um cão, Pieter?
– Sim, mein Führer – disse Pierrot. – Chamava-se D’Artagnan.
Hitler sorriu.
– Claro – disse. – Um dos três mosqueteiros do Dumas.
– Não, mein Führer – disse Pierrot.
– Não?
– Não, mein Führer – repetiu o rapaz. – Os três mosqueteiros eram o Athos, o Porthos e o Aramis. O D’Artagnan era apenas… Bem, era apenas um amigo deles. Apesar de ter o mesmo trabalho.
Hitler sorriu.
– E como é que sabes essas coisas todas? – perguntou.
– A minha mãe gostava muito desse livro – respondeu. – E foi ela que deu o nome ao nosso cão, quando ele ainda era um cachorrinho.
– E de que raça era?
– Não tenho a certeza – respondeu Pierrot, franzindo o sobrolho. – Um bocadinho de todas, acho eu.
O Führer fez um ar enojado e disse:
– Eu prefiro raças puras. Queres saber a melhor? – Quase riu do absurdo da ideia. – Um dia, um tipo de Berchtesgaden perguntou-me se eu permitiria que o rafeiro dele tivesse filhotes com a Blondi. O pedido dele era tão atrevido quanto repugnante. Eu nunca permitiria que uma cadela como a Blondi conspurcasse o seu sangue em brincadeiras com uma criatura inútil daquelas. Onde está o teu cão agora?
Pierrot abriu a boca para contar que D’Artagnan tinha ido viver com Mme. Bronstein e Anshel depois da morte da Maman, mas lembrou-se dos avisos de Beatrix e de Ernst, de que nunca deveria mencionar o nome do amigo na presença do Senhor.
– Morreu – respondeu Pierrot, olhando para o chão e esperando que a mentira que dizia não se lhe visse na cara.
Odiava a possibilidade de o Führer o apanhar a não ser verdadeiro e por isso perdesse a confiança nele.
– Eu adoro cães – continuou Hitler, não apresentando as suas condolências. – O meu preferido era um pequeno Jack Russel, preto e branco, que desertou do exército britânico durante a guerra e veio para o lado alemão.
Pierrot olhou para cima, uma expressão cética no rosto, mas o Führer sorriu, abanando o dedo.
– Tu achas que eu estou a brincar, Pieter, mas garanto-te que não estou! O meu pequeno Jack Russel, a quem chamei Fuchsl, ou Raposinha, era a mascote dos ingleses. Eles gostavam de ter cães pequenos nas trincheiras, sabes, mas isso é muito cruel. Alguns eram usados como mensageiros; outros, como detetores de morteiros, porque um cão consegue ouvir o som das munições disparadas muito mais depressa do que um humano. Os cães salvaram muitas vidas desta forma. Da mesma maneira que conseguem detetar o cheiro do cloro ou do gás mostarda e alertam os donos. Seja como for, uma noite, o pequeno Fuchsl correu para a terra de ninguém… isto deve ter sido… oh, deixa-me pensar… 1915, acho eu… e atravessou, são e salvo, o fogo da artilharia, antes de dar um salto como um acrobata e aterrar na trincheira onde eu estava estacionado. Queres acreditar? E, a partir do momento em que caiu nos meus braços, nunca mais saiu do meu lado, nos dois anos seguintes. Era mais leal e digno de confiança do que qualquer humano que conheci.
Pierrot tentou imaginar o cãozinho a correr pelo terreno, desviando-se de balas, as patas escorregando nos membros decepados e nos órgãos arrancados às tropas dos dois exércitos. Já tinha ouvido daquelas histórias antes, contadas pelo pai, e a ideia fê-lo sentir-se enjoado.
– E o que é que lhe aconteceu? – perguntou.
O rosto do Führer ficou sombrio.
– Foi-me tirado, num roubo desprezível – respondeu em voz baixa. – Em agosto de 1917, numa estação de comboio nos arredores de Leipzig, um trabalhador ferroviário ofereceu-me duzentos marcos pelo Fuchsl e eu disse que nunca o venderia, nem por uma quantia mil vezes maior. Mas fui ao quarto de banho antes de o comboio partir e, quando voltei ao meu lugar, o Fuchsl, a minha raposinha, tinha desaparecido. Roubaram-mo!
O Führer respirava ruidosamente pelo nariz, os lábios apertados, o tom de voz levantando-se com a fúria. Tinham passado vinte anos, mas era evidente que ele ainda estava enraivecido com o roubo.
– Sabes o que eu fazia, se alguma vez encontrasse o homem que me roubou o meu Fuchsl? – perguntou.
Pierrot acenou que não com a cabeça e o Führer inclinou-se para a frente, indicando ao rapaz que também devia inclinar-se. Quando o fez, Hitler levantou uma mão e murmurou-lhe ao ouvido três frases, todas bastante curtas e muito precisas. Quando terminou, reclinou-se novamente no cadeirão e qualquer coisa parecida com um sorriso atravessou-lhe o rosto. Pierrot também se sentou, mas não disse nada. Olhou para Blondi, que abriu um olho e olhou para cima, sem mexer um músculo. Por muito que Pierrot gostasse de passar tempo com o Führer, que sempre o fazia sentir-se tão importante, naquele momento não havia nada que mais desejasse do que ir com Blondi lá para fora outra vez, atirar um pau para a floresta, correr o mais depressa que podia. Só por diversão. Pelo pau. Pela sua vida.
– Mas chega desta conversa – disse o Führer, batendo na lateral do cadeirão três vezes, para dar sinal de que queria mudar de assunto. – Tenho um presente para ti.
– Obrigado, mein Führer – disse Pierrot, surpreendido.
– É uma coisa que todos os rapazes da tua idade deviam ter. – Apontou para uma mesa junto da sua secretária onde um embrulho em papel pardo estava pousado. – Vai buscar aquilo ali, Pieter, vais?
Ao ouvir “vai buscar”, Blondi levantou a cabeça e o Führer riu-se, fazendo-lhe festas no focinho e dizendo-lhe para ficar sossegada. Pierrot foi até à mesa e pegou no embrulho, que tinha algo macio dentro, e segurou-o cuidadosamente com ambas as mãos, para depois o entregar ao Senhor.
– Não, não – disse Hitler. – Eu já sei o que está aí dentro. É para ti, Pieter. Abre-o. Acho que vais gostar do que vais encontrar.
Os dedos de Pierrot começaram a desatar a fita que segurava o papel. Há já muito tempo que ele não recebia um presente e estava bastante entusiasmado.
– É muito gentil da sua parte – disse.
– Abre-o – respondeu o Führer.
A fita desenlaçou-se, o papel pardo abriu-se e Pierrot enfiou a mão, para tirar o que estava lá dentro. E lá dentro estavam uns calções pretos, uma camisa castanho-clara, um par de sapatos, um casaco azul-escuro, um lenço de pescoço preto e uma boina castanha macia. Um emblema com um relâmpago branco sobre um fundo preto estava cosido na manga esquerda da camisa.
Pierrot contemplava o conteúdo do embrulho com um misto de inquietação e desejo. Lembrou-se dos rapazes no comboio que usavam roupas semelhantes àquelas, com signos diferentes mas com igual autoridade; de como o tinham maltratado, e de como o Rottenführer Kotler lhe roubara as sanduíches. Não estava certo de que aquele fosse o tipo de pessoa que queria ser. Mas a verdade é que aqueles rapazes não tinham medo de nada e faziam parte de um algo, tal como os próprios mosqueteiros, pensou. Pierrot gostava bastante da ideia de não ter medo de nada. E também gostava da ideia de pertencer a qualquer coisa.
– Essas roupas são muito especiais – disse o Führer. – Certamente já ouviste falar da Hitlerjugend, não é verdade?
– Sim – respondeu Pierrot. – Quando apanhei o comboio para Obersalzberg, conheci alguns jovens na carruagem.
– Então sabes alguma coisa sobre eles – constatou Hitler. – O nosso Partido Nacional Socialista está a fazer grandes avanços na divulgação da causa pelo nosso país. O meu destino é conduzir a Alemanha na realização de grandes feitos mundiais, e estes, prometo-te, a seu tempo virão. Mas nunca é cedo de mais para nos juntarmos à causa. Fico sempre muito impressionado com a forma como os rapazes da tua idade e um pouco mais velhos se juntam a mim, em apoio às nossas políticas e à nossa determinação em corrigir os erros cometidos no passado. Presumo que saibas do que estou a falar.
– Um bocadinho – disse Pierrot. – O meu pai costumava falar dessas coisas.
– Ainda bem – disse o Führer. – É por isso que encorajamos a nossa juventude a juntar-se ao partido o mais cedo possível. Começamos pelo Deutsches Jungvolk. É verdade que és um pouco jovem de mais, mas, para ti, abrirei uma exceção. Depois, quando fores mais velho, tornar-te-ás membro da Hitlerjugend. Também há um ramo para raparigas, o Bund Deutscher Mädel, porque não subestimamos a importância das mulheres que serão as mães dos nossos futuros líderes. Veste o teu uniforme, Pieter. Deixa-me ver como te fica.
Pierrot pestanejou e olhou para as roupas.
– Agora, mein Führer?
– Sim, porque não? Vai até ao teu quarto e muda-te. E volta cá quando estiveres pronto.
Pierrot subiu ao seu quarto, onde descalçou os sapatos, despiu as calças, a camisola e a camisa, e substituiu-as pelas roupas que lhe tinham sido dadas. Serviam-lhe na perfeição. No fim, calçou os sapatos e bateu os calcanhares: fizeram um som muito mais impressionante do que os seus alguma vez tinham feito. Havia um espelho na parede e, quando Pierrot se voltou para ver o seu reflexo, qualquer inquietação que pudesse ter sentido antes desapareceu imediatamente. Nunca se sentira tão orgulhoso em toda a sua vida. Voltou a pensar em Kurt Kotler e compreendeu como seria maravilhoso ter aquela autoridade; poder tirar o que lhe apetecesse, quando lhe apetecesse, a quem quer que fosse, em vez de passar a vida a ser aquele a quem as coisas são tiradas.
Quando regressou ao escritório do Führer, tinha um sorriso rasgado no rosto.
– Muito obrigado, mein Führer – disse.
– Não tens nada que agradecer – respondeu Hitler. – Mas lembra-te: o rapaz que usar este uniforme tem de obedecer às nossas regras e não deve desejar mais nada na vida além do avanço do nosso partido e do nosso país. É para isso que estamos aqui, todos nós. Para tornar a Alemanha grande, outra vez. Só mais uma coisa. – Foi até à secretária e vasculhou por entre os papéis, até encontrar um cartão com algumas palavras escritas. – Vem para aqui – ordenou, apontando para a grande bandeira nazi que pendia da parede, um drapeado vermelho com o familiar círculo branco em cujo coração estava inscrita uma suástica. – E agora pega neste cartão e lê em voz alta o que aí diz.
Pierrot ocupou o lugar indicado e leu as palavras lentamente, primeiro para si mesmo, depois olhando nervosamente para o Führer. Por dentro, uma sensação muito curiosa. Queria dizer as palavras em voz alta, e contudo, ao mesmo tempo, não queria dizê-las em voz alta.
– Pieter… – disse Hitler em tom brando.
Pierrot clareou a garganta e endireitou-se.
– Na presença desta bandeira de sangue – começou –, que representa o nosso Führer, juro dedicar todas as minhas energias e a minha força ao salvador do nosso país, Adolf Hitler. Estou disposto e pronto a abdicar da minha vida por ele, com a ajuda de Deus.
O Führer sorriu e acenou com a cabeça em sinal de aprovação; voltou a pegar no cartão e, quando o fez, Pierrot desejou que ele não reparasse em como as suas mãozitas tremiam.
– Muito bem, Pieter – disse Hitler. – De hoje em diante, não te quero ver vestido com outra coisa que não este uniforme, compreendes? Encontrarás mais três conjuntos no teu roupeiro.
Pierrot assentiu e fez a saudação mais uma vez, antes de abandonar o escritório e descer o corredor, sentindo-se mais confiante e crescido, agora que usava uma farda. Era membro do Deutsches Jungvolk, disse para si mesmo. E nem sequer era um membro qualquer. Era dos importantes. Afinal, quantos outros rapazes teriam tido um uniforme oferecido pelo próprio Adolf Hitler?
“O Papa ficaria tão orgulhoso de mim”, pensou.
Dobrando o corredor, viu Beatrix e o motorista, Ernst, juntos, num recanto, falando em voz baixa. Só ouviu um bocadinho da conversa deles.
– Ainda não – dizia Ernst. – Mas em breve. Se as coisas forem longe de mais, prometo-te que entro em ação.
– E sabes o que vais fazer? – perguntou Beatrix.
– Sim – respondeu ele. – Já falei com o…
Mal viu o rapaz, calou-se.
– Pieter – disse depois.
– Olhem! – gritou Pierrot, abrindo os braços. – Olhem para mim!
Por um momento, Beatrix não disse nada, mas, finalmente, forçou-se a sorrir.
– Estás ótimo! – disse. – Um verdadeiro patriota. Um verdadeiro alemão.
Pierrot deu uma risadinha e voltou-se para Ernst, que não estava a sorrir.
– E eu a pensar que tu eras francês – disse Ernst, tocando na pala do chapéu e olhando para Beatrix, antes de avançar pela porta da frente e desaparecer no brilho do Sol da tarde, uma sombra dissolvendo-se na paisagem branca e verde.