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UM SAPATEIRO, UM SOLDADO E UM REI

Q
uando Pierrot fez oito anos, o Führer já se tinha apegado a ele e mostrava interesse no que o rapaz lia, dando-lhe total acesso à sua biblioteca e recomendando-lhe autores e livros de que tinha gostado. Deu a Pierrot uma biografia de um rei prussiano do século dezoito – Frederico, o Grande – escrita por Thomas Carlyle; um volume tão grande e com uma letra tão pequena que Pierrot duvidou que conseguisse sequer passar do primeiro capítulo.

– Um grande guerreiro – explicou Hitler, batendo na capa com o dedo indicador. – Um visionário global. E um patrono das artes. A viagem perfeita: combatemos para alcançarmos os nossos objetivos, purificamos o mundo e depois tornamo-lo belo outra vez.

Pierrot já lera o livro do próprio Führer, Mein Kampf, que era um pouco mais fácil de perceber que o de Carlyle, mas ainda assim muito confuso. Estava particularmente interessado nas partes relacionadas com a Grande Guerra, porque tinha sido aí, claro, que o seu pai, Wilhelm, tinha sofrido muito. Um dia, quando passeava Blondi pela floresta que rodeava o refúgio da montanha, questionou o Führer sobre o seu próprio passado de soldado.

– Comecei por ser mensageiro na Frente Ocidental – contou-lhe ele –, passando missivas entre as tropas estacionadas nas fronteiras francesa e belga. Mas depois combati nas trincheiras, em Ypres, em Somme e em Passchendaele. Mais para o fim da guerra, quase fiquei cego por causa de um ataque com gás mostarda. Mais tarde, pensei algumas vezes que talvez tivesse sido melhor ficar cego, para não testemunhar as indignidades que o povo alemão foi obrigado a suportar após a capitulação.

– O meu pai combateu em Somme – disse Pierrot. – A minha mãe sempre disse que, apesar de ele não ter morrido na guerra, tinha sido a guerra a matá-lo.

O Führer afastou aquele comentário com um desdenhoso gesto de mão.

– A tua mãe parece ter sido uma pessoa ignorante – disse. – Toda a gente devia ter orgulho em morrer pela glória maior da nossa Pátria. A memória do teu pai, Pieter, é a memória que deves honrar.

– Mas quando voltou para casa – disse Pierrot – estava muito doente. E fez algumas coisas terríveis.

– Como por exemplo…?

Pierrot não gostava de se recordar do que o pai tinha feito, e quando começou a contar alguns dos piores momentos falava em voz baixa e olhava para o chão. O Führer ouviu sem alterar a sua expressão e, quando o pequeno terminou, limitou-se a abanar a cabeça, como se nada daquilo importasse.

– Recuperaremos o que é nosso – disse. – A nossa terra, a nossa dignidade e o nosso destino. A luta do povo alemão e a nossa suprema vitória serão a história que definirá a nossa geração.

Pierrot dizia que sim com a cabeça. Já deixara de pensar em si mesmo como sendo francês e, estando, finalmente, a ficar mais alto, e tendo recentemente recebido mais dois novos uniformes do Deutsches Jungvolk para acomodar esse crescimento, começara a identificar-se a si mesmo como alemão. De resto, como o Führer lhe dissera, um dia toda a Europa pertenceria à Alemanha, por isso, as identidades nacionais deixariam de ter importância.

– Seremos um só – continuou o Führer. – Unidos sob uma bandeira comum. – E com isto apontou para a braçadeira que usava, com a suástica. – Esta bandeira.

Durante aquela visita, o Führer deu a Pierrot mais um livro da sua biblioteca privada, antes de partir para Berlim. Pierrot leu cuidadosamente o título, em voz alta.

O Judeu Internacional – disse, articulando cuidadosamente cada sílaba. – O Principal Problema do Mundo. De Henry Ford.

– Um americano, como se vê – explicou Hitler. – Mas compreende a natureza do judeu, o modo como o judeu só se preocupa com a acumulação de riqueza pessoal. Na minha opinião, o senhor Ford devia parar de fabricar automóveis e candidatar-se a presidente. Eis um homem com quem a Alemanha poderia trabalhar. Com quem eu poderia trabalhar.

Pierrot pegou no livro e tentou não pensar no facto de Anshel ser judeu, apesar de não ter nenhuma das características que o Führer descrevera. De momento, guardá-lo-ia na gaveta da sua mesa de cabeceira e voltaria ao Emil e os Detetives, que tanto lhe recordava a sua casa.

Alguns meses mais tarde, quando a geada de outono começava a pousar nas montanhas e nas colinas de Obersalzberg, Ernst dirigiu até Salzburgo para apanhar Fräulein Braun, que chegava à Berghof para preparar as boas-vindas a alguns convidados muito importantes. A Emma foi dada uma lista dos pratos preferidos deles e ela abanou a cabeça, incrédula.

– Bem, não são nada esquisitos, pois não? – atirou com sarcasmo.

– Estão habituados a um certo nível – disse Eva, alvoroçada com o número de coisas que tinham de ser feitas; caminhava de um lado para o outro, estalando os dedos e incitando toda a gente a trabalhar mais depressa. – O Führer diz que eles têm de ser tratados como… bem, como realeza!

– Pensei que o nosso interesse pela realeza tinha terminado com o Kaiser Wilhelm – resmungou Emma entre dentes, antes de se sentar a escrever uma lista dos ingredientes que precisaria de encomendar às quintas nos arredores de Berchtesgaden.

– Ainda bem que hoje temos escola – disse Pierrot, num intervalo entre as aulas da manhã. – Está toda a gente tão atarefada lá em casa. A Herta e a Ange…

– Quem é a Ange? – perguntou Katarina, a quem o amigo fazia o relatório diário das atividades na Berghof.

– É a nova criada – explicou Pierrot.

– Outra criada? – perguntou, acenando que não com a cabeça. – Mas de quantas criadas precisa ele?

Pierrot franziu o sobrolho. Gostava muito de Katarina, mas não aprovava o modo como, ocasionalmente, ela fazia graças sobre o Führer.

– É uma substituta – explicou o rapaz. – A Fräulein Braun despachou a Wilhelmina.

– Então agora atrás de quem é que o Führer anda a correr?

– Hoje, a casa está toda num rebuliço – continuou Pierrot, ignorando aquele comentário. Arrependia-se de um dia lhe ter contado a história da sobrinha de Hitler e a teoria de Emma de que a criada na verdade o recordava da infeliz rapariga. – Todos os livros estão a ser tirados das prateleiras e limpos, todos os casquilhos polidos, cada lençol lavado, seco e passado até parecer novo em folha outra vez.

– Tanto drama – rematou Katarina – por causa de gente tão tonta.

O Führer chegou na véspera do dia em que se esperava os convidados e levou a cabo uma minuciosa inspeção à residência, felicitando todos pelo trabalho realizado, para grande alívio de Eva.

Na manhã seguinte, Beatrix chamou Pierrot ao quarto para verificar se a sua farda do Deutsches Jungvolk estaria suficientemente aprumada para o Führer.

– Perfeito – disse ela, olhando-o de cima a baixo com ar de aprovação. – Estás a ficar tão alto, receava que já te estivesse pequena outra vez.

Soou uma pancada na porta e Ange espreitou pela frincha aberta.

– Desculpe, menina – disse –, mas…

Pierrot voltou-se, estalou os dedos de forma seca, exatamente como vira Eva fazer, e apontou para o corredor.

– Sai daqui – disse. – Eu e a minha tia estamos a conversar.

Ange ficou boquiaberta e olhou-o por um momento, antes de recuar e fechar a porta silenciosamente.

– Não havia necessidade de falares com ela dessa maneira, Pieter – disse a tia Beatrix, que também tinha sido apanhada desprevenida pelo tom do sobrinho.

– Porque não? – perguntou ele. Ficara um pouco surpreendido por ter conseguido agir com tanta autoridade, mas estava a gostar bastante da sensação de importância que isso lhe dera. – Estamos a falar. Ela interrompeu.

– Mas é indelicado.

Pierrot acenou que não com a cabeça, recusando o comentário.

– Não passa de uma criada – disse. – E eu sou um membro do Deutsches Jungvolk. Olha para a minha farda, tia Beatrix! Ela tem de mostrar o mesmo respeito que mostraria a qualquer soldado ou oficial!

Beatrix pôs-se de pé e caminhou até à janela, como se tentasse reprimir uma explosão de mau génio.

– A partir de agora, talvez não devesses passar tanto tempo com o Führer – disse finalmente, voltando-se para trás e encarando o sobrinho.

– Porquê?

– Porque ele é um homem muito ocupado.

– Um homem muito ocupado que vê em mim alguém cheio de potencial – disse Pierrot com orgulho. – Além do mais, falamos sobre coisas interessantes. E ele ouve o que eu digo.

– Eu também te ouço, Pieter – disse Beatrix.

– É diferente.

– Porquê?

– Porque és mulher. Necessária ao Reich, naturalmente, mas o que diz respeito à Alemanha fica mais bem entregue a homens como o Führer e eu.

Beatrix permitiu-se esboçar um sorriso amargo.

– E chegaste a essa conclusão sozinho, foi?

– Não – disse Pierrot, com um aceno hesitante. Agora que dissera aquelas palavras em voz alta, não lhe tinham soado muito bem. Afinal, a Maman era uma mulher que sempre soubera o que era melhor para ele. – Foi o Führer que me disse.

– E agora já és um homem, não é? – perguntou. – Com apenas oito anos de idade?

– Farei nove dentro de algumas semanas – disse ele, pondo-se de pé, muito direito. – E tu mesma acabaste de dizer que estou cada dia mais alto.

Beatrix sentou-se na cama e deu duas pancadinhas no colchão, convidando o sobrinho a sentar-se ao seu lado.

– Sobre que tipo de coisas conversa o Führer contigo? – perguntou.

– É bastante complicado – respondeu ele. – Tem a ver com história e política, e o Führer diz que o cérebro das mulheres…

– Põe-me lá à prova. Farei o melhor que puder para seguir o teu raciocínio.

– Falamos sobre como nós fomos roubados… – explicou Pierrot.

Nós? Nós… quem? Tu e eu? Tu e ele?

– Todos nós. O povo alemão.

– Claro. Agora és alemão. Tinha-me esquecido.

– O direito à nacionalidade do meu pai também é meu – respondeu, na defensiva.

– E o que é que nos roubaram, exatamente?

– A nossa terra. O nosso orgulho. Os Judeus roubaram-nos tudo isso. Estão a conquistar o mundo, compreendes? Depois da Grande Guerra…

– Mas, Pieter – interrompeu ela –, não te podes esquecer de que nós perdemos a Grande Guerra.

– Por favor, não me interrompas quando estou a falar, tia Beatrix – disse Pierrot com um suspiro. – Só demonstra falta de respeito da tua parte. Claro que não me esqueço, mas, em contrapartida, tens de concordar que, depois, sofremos indignidades que foram concebidas apenas para nos humilhar. Os Aliados não ficaram contentes com a vitória, como retribuição queriam ver o povo alemão completamente de joelhos. O nosso país estava cheio de covardes que cederam ao inimigo com demasiada facilidade. Não cometeremos esse erro outra vez.

– E o teu pai? – perguntou Beatrix, olhando-o diretamente nos olhos. – Era um desses covardes?

– O pior de todos eles. Porque permitiu que a fraqueza lhe vergasse o espírito. Mas eu não sou como ele. Eu sou forte. Eu devolverei o orgulho ao nome Fischer. – Calou-se, olhando para a tia. – Que foi? – perguntou. – Porque estás a chorar?

– Não estou a chorar.

– Estás, sim senhor.

– Oh, não sei, Pieter – disse, desviando o olhar. – Estou apenas cansada, é só isso. Os preparativos para a chegada dos nossos convidados têm sido uma loucura. E, às vezes, penso…

Hesitou, como se terminar aquela frase a deixasse apreensiva.

– Pensas o quê?

– Que cometi um erro terrível ao trazer-te para cá. Pensei que estava a fazer o que era certo. Pensei que, mantendo-te perto de mim, poderia proteger-te. Mas a cada dia que passa…

Outra pancada na porta. Quando se abriu, Pierrot voltou-se numa fúria, mas, desta vez, não estalou os dedos, porque era Fräulein Braun quem estava à sua frente. Deu um salto da cama e pôs-se em sentido, enquanto a tia Beatrix se deixou estar exatamente onde estava.

– Chegaram! – disse Fräulein Braun em tom excitado.

– Como é que os trato? – murmurou Pierrot, cheio de ansiedade e entusiasmo, ao ocupar o seu lugar ao lado da tia, na fila de boas-vindas.

– Sua Alteza Real – respondeu ela. – Quer a um, quer a outro. Quer ao Duque, quer à Duquesa. Mas não fales a não ser que eles falem contigo primeiro.

Alguns momentos mais tarde, um automóvel fez a curva no cimo do caminho e, quase em simultâneo, o Führer apareceu por trás de Pierrot; e todos os empregados se puseram rigidamente em sentido, olhando em frente. Quando Ernst estacionou e desligou a ignição, foi rapidamente abrir a porta de trás do carro. Um homem baixo, envergando um fato que parecia ficar-lhe um pouco justo, saiu de chapéu na mão. Olhou em redor e a sua expressão mostrava um misto de confusão e desapontamento, por não ter uma fanfarra à sua espera.

– Estamos habituados a ter sempre uma banda de música de algum tipo – murmurou, mais para si mesmo do que para alguém em particular, antes de fazer uma bem ensaiada saudação nazi, o braço disparando orgulhosamente para o ar, como se tivesse estado especialmente ansioso por aquele momento. – Herr Hitler – disse, em voz refinada, mudando do inglês para o alemão sem qualquer esforço. – Quanto prazer em conhecê-lo, finalmente.

– Sua Alteza Real – respondeu o Führer, sorrindo. – Fala um alemão magnífico.

– Sim – murmurou, fazendo a banda do chapéu rodar entre os dedos. – A nossa família, como sabe…

Deteve-se, como se não estivesse certo de como deveria terminar a frase.

– David, não vai apresentar-me? – perguntou uma mulher que saíra do carro atrás dele.

Estava totalmente vestida de preto, como se fosse a um funeral. O seu acentuado sotaque americano sentiu-se mal ela trocou o idioma da conversa do alemão para o inglês.

– Oh, certamente. Herr Hitler, apresento-lhe Sua Alteza Real, a Duquesa de Windsor.

A Duquesa disse-se encantada, assim como o Führer, que também a felicitou pelo seu alemão.

– Não é tão bom quanto o do Duque – disse ela, sorrindo. – Mas faço-me entender.

Eva deu um passo em frente para ser apresentada, mantendo-se muito direita e firme enquanto dava apertos de mão, aparentemente preocupada em mostrar que não fazia nada que pudesse confundir-se com uma vénia. Os dois casais conversaram um pouco, falando do clima, da vista a partir da Berghof e do trajeto pela montanha.

– Uma vez ou outra, pensei que talvez fôssemos cair pelas ribanceiras – comentou o Duque. – Não é passeio para quem tem vertigens, verdade?

– O Ernst nunca permitiria que algum mal lhe acontecesse – respondeu o Führer, olhando de relance para o motorista. – Ele sabe quão importante o senhor é para nós.

– Hmm? – fez o Duque, olhando para o Führer, como se subitamente se apercebesse de que estava no meio de uma conversa. – Como diz?

– Entremos – respondeu o Führer. – Aprecia um chá a esta hora, não é assim?

– Um pouco de whisky, se tiver – disse o Duque. – Por causa da altitude, compreende? Baixa-nos a tensão. Vem, Wallis?

– Sim, David. Estava apenas a admirar a casa. Não é linda?

– Eu e a minha irmã fundámo-la em 1928 – disse Hitler. – Certa vez, viemos passar aqui umas férias, e eu gostei tanto dela que, mal me foi possível, comprei-a. Agora, venho para cá sempre que posso.

– É importante que homens na nossa posição tenham um lugar só seu – disse o Duque, puxando os punhos da camisa. – Um lugar onde o mundo nos deixe em paz.

– Homens na nossa posição? – perguntou o Führer, levantando uma sobrancelha.

– Homens importantes – esclareceu o Duque. – Em Inglaterra, também tinha um sítio assim, sabe? Quando era Príncipe de Gales. Fort Belvedere. Um refúgio magnífico. Naqueles tempos, demos algumas festas extraordinárias, não demos, Wallis? Tentei fechar-me lá dentro e deitar a chave fora, mas o Primeiro-ministro arranjava sempre uma forma de entrar.

– Talvez arranjemos uma maneira de o senhor lhe devolver o favor – disse o Führer, com um sorriso rasgado. – Venha, vamos lá tratar da sua bebida.

– Mas quem é este rapazinho? – perguntou a Duquesa ao passar por Pierrot. – E que bem vestido, não está, David? Parece um maravilhoso brinquedinho nazi. Oh, quem me dera levá-lo comigo e pô-lo numa prateleira, de tão riquinho que é! Como te chamas, meu raio de sol?

Pierrot olhou para o Führer, que assentiu com a cabeça.

– Pieter, Sua Alteza Real – disse Pierrot.

– É sobrinho da nossa governanta – explicou Hitler. – O pobre rapaz ficou órfão, pelo que eu concordei que viesse viver para cá.

– Está a ver, David? – disse Wallis, voltando-se para o marido. – Eis aquilo a que eu chamo verdadeira, genuína caridade cristã. É isto que as pessoas não compreendem a seu respeito, Adolf. Posso tratá-lo por Adolf, não posso? E você tem de me tratar por Wallis. Não parecem compreender que, sob essa farda e todo esse barroquismo militar há um coração e uma alma de um verdadeiro cavalheiro. Quanto a si, Ernie – disse, voltando-se para o motorista e agitando um dedo na sua direção –, espero agora que compreenda que…

– Mein Führer – disse Beatrix, dando um passo rápido em frente, o tom de voz surpreendentemente alto, interrompendo a Duquesa. – Desejará que eu prepare as bebidas para os convidados?

Hitler olhou-a surpreendido, mas, divertido com o que a Duquesa dizia, limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça.

– Claro que sim – disse. – Mas lá dentro, creio. Está a ficar frio cá fora.

– Sim, estávamos a dizer qualquer coisa sobre um whisky, não era? – comentou o Duque, entrando na casa.

E, logo que as hostes de empregados o seguiram, Pierrot olhou em redor e viu, surpreendido, que Ernst estava encostado ao carro, e o seu rosto estava muito pálido, mais pálido do que alguma vez o vira.

– Estás muito branco – disse Pierrot, imitando, depois, o sotaque do Duque: – Por causa da altitude, compreende. Baixa-nos a tensão, não é, Ernst?

Naquela noite, Emma passou a Pierrot um tabuleiro com doces e pediu-lhe que o levasse para o escritório, onde o Führer e o Duque conversaram longamente.

– Ah, Pieter – disse o Führer quando ele entrou, batendo na mesa entre os dois cadeirões. – Podes deixar o tabuleiro aqui.

– Posso trazer-lhe mais alguma coisa, mein Führer? Sua Alteza Real? – perguntou, mas estava tão nervoso que tratou cada um dos homens pelo título do outro, o que fez ambos rirem-se muito.

– Isso é que era! – disse o Duque – Eu vir para cá governar a Alemanha!

– Ou eu invadir a Inglaterra – respondeu o Führer.

A estas palavras, o sorriso do Duque esmoreceu e ele brincou com a aliança de casamento, pondo-a e tirando-a nervosamente.

– Tem sempre um rapazinho a fazer estes serviços, Herr Hitler? – perguntou. – Não tem um criado particular?

– Não – disse o Führer. – Acha que preciso de um?

– Qualquer cavalheiro precisa. Ou, pelo menos, um criado de libré, no canto da sala, para o caso de precisar de alguma coisa.

Hitler ficou pensativo e acenou com a cabeça, como se não compreendesse muito bem o sentido de protocolo do outro homem.

– Pieter – disse, apontando para o canto. – Põe-te ali, no canto. Podes ser o criado de libré honorário enquanto o Duque está de visita.

– Sim, mein Führer – disse Pierrot com orgulho, colocando-se ao lado da porta e dando o seu melhor para respirar o mais silenciosamente possível.

– Herr Hitler tem sido imensamente bom para nós – continuou o Duque, acendendo um cigarro. – Em todos os lugares a que fomos, toda a gente nos tratou com verdadeira generosidade de espírito. Estamos tremendamente agradados. – Inclinou-se para diante. – A Wallis tem razão… Creio verdadeiramente que, se o povo inglês pudesse conhecê-lo um pouco melhor, veria o tipo realmente decente que você é. Tem imenso em comum connosco, sabe?

– Deveras?

– Sim, partilhamos o sentido do desígnio e a crença na importância do destino do nosso povo.

O Führer não disse nada, inclinou-se para servir outra bebida ao seu convidado.

– Tal como vejo as coisas – continuou o Duque –, os nossos dois países ganham muito mais trabalhando juntos do que separados. Não me refiro a uma aliança formal, naturalmente, mas sim a uma espécie de entente cordiale, tal como a que temos com os franceses, embora não se possa confiar muito, no que diz respeito a eles. Ninguém quer repetir a loucura de há vinte anos. Muitos jovens inocentes perderam as suas vidas no conflito. De ambos os lados.

– Sim – respondeu o Führer em voz baixa. – Eu estava lá.

– Também eu.

– Estava?

– Bom, não nas trincheiras, evidentemente. Na altura, era o herdeiro do trono. Tinha estatuto. Ainda tenho, como sabe.

– Mas não aquele para que nasceu – disse o Führer. – Embora, creio, talvez isso possa mudar. Com o tempo.

O Duque olhou em redor, como se estivesse preocupado com a possibilidade de haver espiões atrás das cortinas. Os seus olhos não pousaram em Pierrot uma única vez; a avaliar o interesse que mostrava por ele, bem podia ser uma estátua.

– Sabe que o governo britânico não queria que eu viesse cá – disse, em tom de confidência. – E o meu irmão Bertie concordava com eles. Provoquei uma confusão terrível. O Baldwin, o Churchill, todos eles brandindo os seus sabres.

– Mas porque lhes dá ouvidos? – perguntou Hitler. – Já não é rei. É um homem livre. Pode fazer o que quiser.

– Nunca serei livre – disse o Duque, como num lamento. – E, seja como for, há a questão dos recursos, se é que me entende. Não podemos simplesmente procurar um emprego.

– Ora, porque não?

– E fazia o quê? Atendia ao balcão da secção de cavalheiros do Harrods? Abria uma loja de miudezas? Candidatava-me a criado de libré, como o seu jovem amigo ali no canto?

Apontou para Pierrot e riu.

– Tudo trabalhos honestos – disse o Führer em voz baixa. – Porventura abaixo do seu estatuto, enquanto ex-rei. Talvez haja outras… possibilidades.

O Duque abanou a cabeça, ignorando completamente a questão, e o Führer sorriu.

– Alguma vez lamentou a decisão de ter abdicado do trono?

– Nem por um momento – respondeu o Duque, e até Pierrot conseguiu sentir-lhe a troça na voz. – Não podia fazer aquilo, compreende. Não sem o auxílio e o apoio da mulher que amo. Foi o que disse no meu discurso de despedida. Eles nunca permitiriam que ela fosse rainha.

– E acha que essa é a única razão pela qual eles se livraram de si? – perguntou o Führer.

– Não acha?

– Acho que têm medo de si – afirmou. – Tal como têm medo de mim. Eles sabiam quão próximos o senhor achava que os nossos dois países deviam ser. Porquê? Porque a sua própria avó, a rainha Vitória, era avó do nosso último Kaiser! E o seu avô, o príncipe Alberto, era de Coburgo! O seu país está tão envolvido com o meu quanto o meu com o seu. Somos como dois grandes carvalhos, plantados lado a lado. As nossas raízes estão entrelaçadas debaixo do solo. Corte um deles, e o outro sofrerá. Permita que um floresça, e ambos florescerão.

O Duque considerou as palavras do Führer por um momento, antes de responder:

– Talvez tenha razão.

– Roubaram-lhe o que era seu por direito – continuou o Führer, o tom de voz subindo de ira. – Como pode tolerá-lo?

– Não há nada que possa fazer – disse o Duque. – Tudo está feito e acabado.

– Mas quem sabe o que o futuro poderá reservar?

– Que quer dizer com isso?

– Nos próximos anos, a Alemanha mudará. Seremos fortes de novo. Estamos a redefinir o nosso lugar no mundo. E talvez a Inglaterra vá mudar também. O senhor é um progressista, segundo julgo saber. Não acha que a Duquesa e o senhor poderiam fazer mais pelo vosso povo se fossem reinstalados como rei e rainha?

O Duque mordeu o lábio e franziu o sobrolho.

– Isso é impossível – disse, após um instante. – Já tive a minha oportunidade.

– Tudo é possível. Olhe para mim: sou o líder de um povo alemão unificado e vim do nada. O meu pai era sapateiro.

– O meu era rei.

– O meu era soldado – disse Pierrot, do canto da sala, as palavras escapando-lhe por entre os lábios, sem que conseguisse segurá-las, e os dois homens voltaram-se para ele, como se já nem se lembrassem de que ele estava presente.

O Führer lançou ao rapaz um tal olhar de fúria, que ele sentiu como um murro no estômago e pensou que poderia vomitar.

– Tudo é possível – continuou o Führer logo depois, quando os dois homens voltaram a olhar um para o outro. – Sendo possível, aceitaria o seu trono de volta?

O Duque olhou em redor com ansiedade e mordeu as unhas, examinando uma de cada vez, antes de limpar a mão à perneira das calças.

– Bom, é verdade que temos de levar em consideração os nossos deveres – respondeu. – E o que for o melhor para o nosso país. O que quer que pudéssemos fazer para o servir, naturalmente fá-lo-íamos… fá-lo-íamos…

Ergueu o olhar, como um cachorro que espera ser adotado por um dono benevolente, e o Führer sorriu e disse:

– Creio que nos entendemos um ao outro, David. Não se importa que o trate por David, pois não?

– Bem… é que mais ninguém o faz, compreende. Ninguém além da Wallis. E da minha família. Embora já não me tratem por coisa nenhuma. Nunca tenho notícias deles. Telefono ao Bertie quatro ou cinco vezes por dia e ele não atende as minhas chamadas.

O Führer levantou as mãos.

– Perdoe-me – disse. – Respeitaremos as formalidades. Sua Alteza Real. – Acenou com a cabeça em sinal de aprovação. – Ou talvez, um dia, uma vez mais, Sua Majestade.

Pierrot acordou lentamente de um sonho, sentindo como se tivesse dormido apenas um par de horas. Os seus olhos semiabertos registaram a escuridão do quarto e o som de uma respiração. Alguém se debruçava sobre ele, observando-o, enquanto dormia. Abriu os olhos completamente, para ver o rosto do Führer, Adolf Hitler, e o seu coração sobressaltou-se. Tentou sentar-se para o saudar, mas, quando o fez, sentiu-se novamente empurrado para a cama. Nunca antes tinha visto o Senhor com uma tal expressão no rosto. Era ainda mais assustadora do que a que tinha visto anteriormente, quando interrompera a conversa dele com o Duque.

– Com que então o teu pai era soldado, não é verdade? – sibilou o Führer. – Melhor que o meu? Melhor que o do Duque? Achas que, porque está morto, é melhor que eu?

– Não, mein Führer – disse Pierrot, sem fôlego, as palavras entaladas na garganta.

Sentia a boca terrivelmente seca e o coração batia-lhe violentamente no peito.

– Não posso confiar em ti, pois não, Pieter? – perguntou o Führer, debruçando-se de tal modo sobre ele que os pelos do bigode quase roçavam o lábio superior do rapaz. – Alguma vez me darás uma razão para me arrepender de te ter deixado vir viver para cá?

– Não, mein Führer. Nunca, prometo.

– É melhor que não – sibilou. – Porque não há infidelidade que escape sem castigo.

Antes de sair do quarto, fechando a porta, deu-lhe duas sapatadas leves nas bochechas.

Pierrot levantou os lençóis e olhou para o pijama. Apeteceu-lhe chorar; fizera uma coisa que não fazia desde que era pequenino e não sabia como conseguiria explicar aquilo aos outros. Mas jurou uma coisa a si mesmo: nunca mais desiludiria o Führer.