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UM NATAL FELIZ NA BERGHOF

A
guerra decorria há mais de um ano e a vida na Berghof mudara consideravelmente. O Führer passava cada vez menos tempo em Obserslazberg e, quando lá estava, normalmente fechava-se no escritório com os seus generais mais graduados, os líderes da Gestapo, da Schutzstaffel e da Wehrmacht. Apesar de, durante as suas visitas, Hitler ainda arranjar tempo para conversar com Pierrot, os oficiais que dirigiam aquelas divisões do Reich – Göring, Himmler, Goebbels e Heydrich – preferiam ignorá-lo completamente. Pierrot ansiava pelo dia em que ocuparia um posto tão elevado como o deles.

Já não dormia no quarto pequeno que fora dele desde que chegara à montanha. Quando ele fez onze anos, Hitler informou Beatrix de que o rapaz devia ocupar o quarto dela e que ela devia mudar as suas coisas para o mais pequeno – uma decisão que fez Emma abanar a cabeça e resmungar qualquer coisa sobre a falta de gratidão do rapaz em relação à tia.

Fora uma decisão do Führer, declarou Pierrot, não se dando sequer ao trabalho de olhar para ela enquanto falava. Tinha ficado mais alto – já ninguém o trataria por “Le Petit” – e o seu tronco começava a ficar musculado, graças ao exercício diário que fazia nos picos das montanhas.

– Ou queres pôr em causa as decisões dele? É isso, Emma? Porque, se for esse o caso, podemos sempre discutir isso com ele.

– O que é que se passa aqui? – perguntou Beatrix, entrando na cozinha e apercebendo-se de uma atmosfera tensa entre os dois.

– Parece que a Emma pensa que não devíamos ter trocado de quartos – disse Pierrot.

– Não foi nada disso que eu disse – afirmou Emma, entre dentes e virando costas.

– Mentirosa – atirou Pierrot às suas costas voltadas.

Depois virou-se e, quando reparou na expressão facial da tia, sentiu uma curiosa mistura de emoções. Queria um quarto maior, evidentemente, mas também queria que ela reconhecesse que ele tinha esse direito. Afinal, aquele quarto ficava mais próximo do quarto do próprio Führer.

– Não te importas, pois não? – perguntou.

– Porque me importaria? – perguntou Beatrix, encolhendo os ombros. – É apenas um local para dormir, nada mais. Não é importante.

– Não foi ideia minha, sabes?

– Não?… Não foi isso que ouvi.

– Não! A única coisa que eu disse ao Führer foi que gostava que o meu quarto tivesse uma parede suficientemente grande para pendurar um daqueles mapas europeus enormes, foi só isso. Como tem o teu. Assim, poderia seguir o avanço do nosso exército pelo continente, à medida que vamos derrotando os nossos inimigos.

Beatrix riu-se, mas não pareceu a Pierrot a gargalhada de alguém que se ri de uma coisa engraçada.

– Podemos voltar a trocar – disse ele em voz baixa, olhando para o chão.

– Deixa estar – disse Beatrix. – A mudança está feita. Seria uma perda de tempo, para ti e para mim, pôr tudo outra vez como estava.

– Muito bem – disse o rapaz, erguendo novamente o olhar e sorrindo. – Eu sabia que ias concordar. A Emma tem opiniões sobre tudo, não tem? Se queres saber, acho que os criados deviam era calar a boca e fazer o trabalho deles.

Certa tarde, Pierrot foi até à biblioteca, à procura de qualquer coisa para ler. Percorrendo com os dedos as lombadas dos livros perfilados nas estantes, examinou uma cronologia da Alemanha e outra do continente europeu, antes de se debruçar sobre um livro que descrevia todos os crimes cometidos pelo povo judeu ao longo da História. Ao lado desse, uma tese que denunciava o Tratado de Versalhes como um ato de injustiça criminoso contra a Pátria. Saltou o Mein Kampf, que já lera três vezes nos últimos dezoito meses e do qual conseguia citar muitos parágrafos importantes. Esmagado no extremo de uma prateleira estava um último livro; e Pierrot sorriu ao recordar quão jovem e inocente era quando Simone Durand o confiara às suas mãos, na estação de comboio de Orléans, quatro anos antes. Emil e os Detetives. Como arranjara ele um lugar ali, naquela estante cheia de livros tão importantes?, perguntou a si mesmo. Tirando-o da prateleira, olhou para Herta, que estava de joelhos a limpar a lareira. Ao abri-lo, um envelope caiu de entre as páginas e Pierrot pegou nele.

– De quem é isso? – perguntou a criada, levantando a cabeça.

– De um velho amigo meu – disse o rapaz, a voz denunciando a sua ansiedade ao ver a caligrafia familiar. – Bom, na verdade, apenas um vizinho – corrigiu-se. – Ninguém importante.

Era a última carta de Anshel que Pierrot se dera ao trabalho de guardar. Agora, contudo, abria-a outra vez e olhava para as primeiras linhas, parcas. Não havia qualquer saudação, nenhum “Caro Pierrot”; apenas o desenho de um cão e, depois, algumas frases aceleradas:

Estou a escrever-te à pressa porque há muito barulho lá fora, na rua, e a minha mãe diz que, finalmente, chegou o dia de partirmos. Empacotou alguns dos nossos pertences, apenas as coisas mais importantes, que estão há semanas enfiadas em malas pousadas à porta de casa. Não sei para onde iremos, mas a Maman diz que aqui já não estamos seguros. Não te preocupes, Pierrot, vamos levar o D’Artagnan connosco! E como estás tu? Porque não respondeste às duas últimas cartas? Em Paris está tudo mudado. Quem me dera que visses

Pierrot não leu mais. Simplesmente amarrotou a carta e atirou-a para a lareira, fazendo com que algumas cinzas da noite anterior salpicassem a cara de Herta.

– Pieter! – gritou ela, furiosa.

Pierrot ignorou-a. Perguntou-se se, em vez de atirar a carta para ali, não deveria tê-la queimado na lareira da cozinha, que rugia desde manhã cedo. Afinal, se o Führer a encontrasse, talvez ficasse zangado com ele, e Pierrot não conseguia imaginar nada pior que merecer a desaprovação dele. Gostara de Anshel, outrora, claro que gostara; mas, na altura, eram apenas crianças, e ele não compreendia o que significava ser amigo de um judeu. Cortar relações fora o melhor a fazer. Baixou-se e apanhou a carta, e aproveitou para estender o livro a Herta.

– Podes dar isto a uma criança qualquer de Berchtesgaden, com os meus cumprimentos – disse em tom imperioso. – Ou deita-o fora, simplesmente. O que for mais fácil.

– Oh, Erich Kästner – disse Herta, sorrindo, ao olhar para a capa empoeirada. – Lembro-me de ler este livro quando era mais jovem. É lindo, não é?

– É para crianças – disse Pierrot com um encolher de ombros, decidido a não concordar com ela. – Agora volta ao trabalho – acrescentou, afastando-se. – Quero isto tudo limpo antes de o Führer voltar.

Alguns dias antes do Natal, Pierrot acordou a meio da noite a precisar de ir ao quarto de banho e percorreu descalço e em silêncio o corredor. Ao regressar, ainda meio a dormir, cometeu o erro de se dirigir ao seu antigo quarto, só se apercebendo disso quando já procurava a maçaneta da porta. Preparava-se para virar costas quando, para sua surpresa, ouviu vozes no interior. A curiosidade levaria a melhor e ele encostou o ouvido à porta de madeira, à escuta.

– Mas eu tenho medo – dizia a tia Beatrix, lá dentro. – Por ti. Por mim. Por todos nós.

– Não há nada de que ter medo – disse a segunda voz, que Pierrot reconheceu como sendo a de Ernst, o motorista. – Tudo foi cuidadosamente planeado. Lembra-te, temos mais gente do nosso lado do que possas imaginar.

– Mas será este o local certo? Não seria melhor Berlim?

– Em Berlim há muita segurança, e nesta casa ele sente-se seguro. Confia em mim, querida, nada correrá mal. E, quando tudo acabar e cabeças mais sensatas assumirem o poder, poderemos traçar um rumo novo. Estamos a fazer o que é correto. Acreditas nisso, não acreditas?

– Sabes bem que sim – disse Beatrix, quase feroz. – De cada vez que olho para o Pierrot, sei que é o que tem de ser feito. Está um rapaz completamente diferente do que veio viver para cá. Já reparaste, certamente.

– Claro que reparei. Está a transformar-se num deles. Está mais parecido com eles a cada dia que passa. Até já começou a dar ordens a toda a gente. Há uns dias ralhei-lhe e ele disse que eu deveria apresentar as minhas reclamações junto do Führer, ou então que me calasse.

– Odeio pensar no que tipo de homem em que se tornará, se isto continuar – disse Beatrix. – Alguma coisa temos de fazer. Não apenas por ele, mas por todos os Pierrots que por aí andam. Se não for detido, o Führer destruirá o país inteiro. A Europa inteira. Diz que está a iluminar as mentes do povo alemão, mas não, ele é a própria escuridão no centro do mundo.

Durante uns momentos fez-se silêncio, e Pierrot conseguiu ouvir o som inconfundível da tia e do motorista a beijarem-se. Estava prestes a abrir a porta e a confrontá-los, mas, em vez disso, regressou ao seu quarto e estendeu-se na cama, de olhos abertos, fixando o teto, reproduzindo vezes sem conta a conversa deles na sua mente e tentando compreender o que poderia tudo aquilo significar.

No dia seguinte, na escola, ponderou se devia discutir com Katarina o que estava a acontecer na Berghof. Encontrou-a à hora de almoço, lendo um livro debaixo de um dos enormes carvalhos que havia no jardim. Nas aulas, já não se sentavam juntos; Katarina tinha pedido para se mudar para junto de Gretchen Baffril, a rapariga mais gira da escola, mas nunca dissera a Pierrot porque deixara de querer ficar ao seu lado.

– Não tens a tua gravata posta – disse Pierrot, pegando nela do chão, para onde Katarina a atirara.

Um ano antes, Katarina juntara-se à Bund Deutscher Mädel; e queixava-se constantemente por ser obrigada a usar uniforme.

– Põe-na tu, se isso significa assim tanto para ti – disse Katarina, não desviando o olhar do livro.

– Mas eu já estou com a minha – disse Pierrot. – Olha.

Ela olhou de relance para ele e depois pegou na sua gravata.

– Imagino que, se não puser isto, vás fazer queixa de mim – disse.

– Não vou nada – disse ele. – Porque faria isso? Desde que estejamos com elas postas quando o intervalo acabar e as aulas recomeçarem, não há problema nenhum.

– És tão equilibrado, Pieter – respondeu ela com um sorriso doce. – É uma das coisas de que gosto em ti.

Pierrot devolveu-lhe o sorriso, mas, para sua surpresa, ela limitou-se a revirar os olhos e a voltar ao seu livro. Pensou deixá-la sozinha, mas tinha uma pergunta para fazer e não se lembrava de mais ninguém a quem pudesse fazê-la. Parecia já não ter muitos amigos na escola.

– Conheces a minha tia Beatrix? – perguntou finalmente, sentando-se ao lado dela.

– Claro que conheço – disse Katarina. – Está sempre a ir à loja do meu pai, para comprar papel e tinta.

– E o Ernst, o motorista do Führer?

– Nunca falei com ele, mas vi-o a conduzir por Berchtesgaden. O que é que têm?

Pierrot expirou ruidosamente pelo nariz e depois abanou a cabeça.

– Nada – disse.

– Nada, como? Tu vieste falar neles!

– Achas que são bons alemães? – perguntou-lhe então. – Não, espera, esta pergunta não faz sentido. Imagino que a resposta dependeria do que entendêssemos por “bom”, não é?

– Por acaso, não – disse Katarina, colocando um marcador no meio do livro e olhando diretamente para Pierrot. – Não me parece que haja muitas maneiras de definir a palavra “bom”. Ou és bom ou não és.

– Acho que o que quis perguntar foi se consideras que eles são patriotas.

– Como queres que eu saiba? – perguntou Katarina, encolhendo os ombros. – E, ainda por cima, há várias maneiras de definir patriotismo, claro. Tu, por exemplo, podes ter uma perspetiva oposta à minha.

– A minha perspetiva é a perspetiva do Führer – disse Pierrot.

– Precisamente – disse Katarina, desviando o olhar para um grupo de crianças que jogavam à macaca num canto do recreio.

– Porque é que já não gostas de mim como gostavas? – perguntou Pierrot após um longo silêncio, e Katarina olhou novamente para ele, com uma expressão facial que indicava que ficara surpreendida com a pergunta.

– O que é que te leva a pensar que não gosto de ti, Pieter? – perguntou.

– Já não falas comigo como dantes. E trocaste de carteira, para ficares com a Gretchen Baffril, e nunca me disseste porquê.

– Bem, a Gretchen não tinha ninguém para se sentar com ela – disse Katarina –, desde que o Heinrich Furst deixou a escola. E eu não queria que ela ficasse sozinha.

Pierrot desviou o olhar e engoliu em seco, já arrependido de ter iniciado aquela conversa.

– Lembras-te do Heinrich, não te lembras, Pieter? – continuou ela. – Tão bom rapaz. Tão simpático. Lembras-te de que todos ficámos chocados quando ele nos contou as coisas que o pai dele dizia sobre o Führer? E lembras-te de que prometemos não dizer nada a ninguém?

Pierrot pôs-se de pé e sacudiu as calças.

– Está a ficar frio, aqui – disse. – Acho melhor voltar para dentro.

– Lembras-te de termos ouvido dizer que o pai dele foi arrancado da cama a meio da noite, arrastado para fora de Berchtesgaden, e que nunca mais ninguém teve notícias dele? E lembras-te de ouvir dizer que o Heinrich, a mãe e a irmãzinha mais nova se tinham mudado para Leipzig, ficando em casa de uma irmã da mãe, porque já não tinham dinheiro para sobreviver?

Uma campainha soou na entrada da escola e Pierrot olhou para o relógio.

– A tua gravata – disse, apontando. – São horas. Devias pô-la outra vez.

– Não te preocupes, porei – disse ela, enquanto ele se afastava. – Afinal, não quereríamos que, amanhã, a pobre Gretchen tivesse de ficar sozinha outra vez, pois não? Pois não, Pierrot? – gritou Katarina, mas Pierrot apenas acenava com a cabeça, fazendo de conta que não era com ele que ela falava.

E, de qualquer forma, ao entrar na sala já conseguira apagar a conversa da sua memória e colocá-la numa parte diferente da sua mente – precisamente a parte que armazenava as memórias da Maman e de Anshel; um lugar que já só muito raramente visitava.

O Führer e Eva chegaram à Berghof no dia anterior à véspera de Natal, estava Pierrot no jardim, praticando a marcha de espingarda às costas; e, depois de se terem instalado, mandaram-no chamar.

– Mais logo, vai haver uma festa em Berchtesgaden – explicou Eva. – Uma festa de Natal para as crianças. O Führer gostava que nos acompanhasses.

O coração de Pierrot bateu de entusiasmo. Nunca tinha ido a lado nenhum com o Führer e já conseguia imaginar a expressão de inveja no rosto de todos, na cidade, quando chegasse com o bem-amado líder. Seria quase como se fosse o filho de Hitler.

Vestiu uma farda lavada e deu instruções a Ange para lhe engraxar as botas até conseguir ver o seu reflexo nelas. Quando ela lhas levou, Pierrot mal olhou, mas disse logo que não estavam bem e mandou-a embora, para que as engraxasse outra vez.

– E não me obrigues a pedir a mesma coisa três vezes – disse, enquanto ela regressava ao quarto das criadas.

Quando, naquela tarde, pisou o cascalho ao lado de Hitler e Eva, sentiu-se mais orgulhoso do que alguma vez na vida se sentira. Os três sentaram-se juntos no banco de trás do automóvel. Enquanto desciam a montanha, Pierrot observou Ernst pelo retrovisor, tentando decifrar as suas intenções relativamente ao Führer; mas sempre que o motorista olhava para o espelho, verificando a estrada atrás de si, parecia alheio à presença do rapaz.

“Acha que eu não passo de uma criança”, pensou Pierrot. “Acha que não importo para nada.”

Quando chegaram a Berchtesgaden, havia multidões nas ruas, agitando as suas suásticas e saudando-os entusiasticamente. Apesar do tempo frio, Hitler dissera a Ernst que deixasse a capota descida, de maneira a que as pessoas pudessem vê-lo; e, à sua passagem, elas rugiam em aprovação. Ele saudava todos com uma expressão austera no rosto, enquanto Eva sorria e acenava. Quando Ernst estacionou em frente à Câmara, o presidente saiu para os cumprimentar, curvando-se cerimoniosamente enquanto o Führer lhe apertava a mão, depois saudando-o, depois curvando-se novamente, e depois ficando tão confuso que só quando Hitler lhe pousou uma mão no ombro, para o acalmar, conseguiu sair do caminho para os deixar entrar.

– Não vens, Ernst? – perguntou Pierrot, reparando que o motorista se deixava ficar para trás.

– Não, tenho de ficar junto do carro – disse. – Mas entra tu. Quando voltarem, cá estarei.

Pierrot anuiu e decidiu esperar até a restante multidão ter entrado; agradava-lhe ideia de caminhar pelo corredor na sua farda do Deutsches Jungvolk até se sentar ao lado do Führer, os olhos de todos pousados em si, mas, quando se preparava para entrar, reparou que as chaves de Ernst jaziam no chão, junto aos pés dele. No meio do mar de gente, o motorista devia tê-las deixado cair.

– Ernst – gritou, olhando para a estrada e para o local onde o carro estava estacionado.

Suspirou de frustração, olhando de relance para o salão, mas ainda havia tanta gente à procura de lugar que, pensou, teria tempo suficiente, e correu pela estrada, esperando ver o motorista a tatear os bolsos, à procura das chaves.

O carro estava lá, mas, para sua surpresa, não via Ernst em lado nenhum.

Pierrot franziu o sobrolho e olhou em redor. Não dissera Ernst que ficava junto ao carro? Começou a fazer o caminho de volta, olhando para um lado e para outro, para as ruas adjacentes; quando estava prestes a desistir e a regressar ao salão, vislumbrou o motorista, batendo à porta de uma casa mais acima.

– Ernst! – gritou, mas a sua voz não teve o alcance necessário.

Então, a porta da pequena casa sem estilo abriu-se e Ernst desapareceu no seu interior. Pierrot aguardou até a rua estar novamente tranquila. Depois, foi até à janela e encostou a cara ao vidro.

Não havia ninguém na sala da frente, cheia de livros e discos, mas, mais à frente, Pierrot viu Ernst, de pé, com um homem que nunca vira antes. Estavam totalmente absortos na conversa, e Pierrot viu o homem abrir um armário e pegar no que parecia ser um pequeno frasco de remédio e uma seringa. Furou a tampa com a agulha, extraiu algum líquido e injetou-o num bolo, pousado numa mesa ao lado dele, e depois abriu os braços, como quem diz: “É tão simples quanto isto”. Acenando que sim, Ernst pegou na garrafa e na seringa, e guardou-os no bolso do sobretudo, enquanto o homem pegou no bolo e o atirou para o caixote do lixo. Quando o motorista se voltou e se encaminhou para a porta, Pierrot correu a dobrar a esquina. E ficou ali, para ouvir o que quer que pudessem dizer.

– Boa sorte – disse o estranho.

– Boa sorte para todos nós – respondeu Ernst.

Pierrot encaminhou-se para o salão, parando apenas para deixar as chaves na ignição do automóvel, ao passar, e ocupou um lugar numa das filas da frente, a tempo de ouvir o final do discurso do Führer. Dizia que o ano seguinte, 1941, seria um ano grandioso para a Alemanha; que, à medida que a vitória se aproximasse, o mundo finalmente reconheceria a determinação do povo alemão. Apesar da atmosfera festiva, Hitler rugia aquelas frases como se admoestasse a audiência, e a audiência gritava de volta, em delírio, chicoteada até um estado de frenesim pelo entusiasmo quase maníaco do líder. Por várias vezes, Hitler bateu com o punho no púlpito, fazendo Eva fechar os olhos e saltar. E, quanto mais batia, mais a multidão o saudava e levantava os braços como se todos fossem um só, como se fossem um corpo único, ligado por uma mente única, gritando: Sieg Heil! Sieg Heil! Sieg Heil! Pierrot estava no centro de tudo, a sua voz tão alta, a sua paixão tão profunda, a sua crença tão forte quanto a de todos os outros.

Na véspera de Natal, o Führer ofereceu uma pequena festa aos empregados da Berhof, agradecendo os serviços prestados ao longo daquele último ano. Apesar de não ter oferecido lembranças a ninguém, perguntara a Pierrot, alguns dias antes, se havia alguma coisa que ele gostasse de receber, mas o rapaz, não querendo parecer uma criança entre os adultos, declinou a oferta.

Emma excedera-se com um festim que incluía peru, pato e ganso, cada um deles recheado com maçã, especiarias e mirtilos; três tipos de batata; chucrute e uma série de pratos vegetarianos para o Führer. O grupo partilhou alegremente a refeição, Hitler indo de pessoa em pessoa, falando sobre política; e, dissesse o que dissesse, toda a gente acenava com a cabeça e lhe dizia que tinha toda a razão. Poderia ter dito que a Lua era feita de queijo e todos teriam respondido: “Claro que é, mein Führer. De queijo Limburger!”

Pierrot observava a tia, que naquela noite dava a impressão de estar mais nervosa do que habitualmente, e prestava especial atenção a Ernst, que parecia invulgarmente calmo.

– Bebe qualquer coisa, Ernst – disse o Führer com voz forte, enchendo um copo de vinho ao motorista. – Hoje à noite os teus serviços não serão necessários. Afinal, é véspera de Natal. Diverte-te!

– Obrigado, mein Führer – disse o motorista, aceitando o copo e erguendo-o num brinde ao líder, que aceitou os aplausos com um educado aceno de cabeça e um raro sorriso.

– Oh, a sobremesa! – gritou Emma, quando os pratos na mesa já estavam quase vazios. – Quase me esquecia da sobremesa!

Pierrot observou-a regressando da cozinha com um belíssimo stollen, que pousou na mesa, os aromas a fruta, massapão e especiarias enchendo o ar. Emma dera o seu melhor para conferir ao bolo a forma da própria Berghof, espalhando sobre ele uma quantidade generosa de fino açúcar, para representar a neve, mas só um crítico generoso conseguiria felicitá-la pelos seus dotes escultóricos. Beatrix olhou para o doce com um rosto muito pálido, e depois voltou-se para Ernst, que ostensivamente não lhe devolveu o olhar. Pierrot, nervoso, viu Emma tirar uma faca do bolso do avental e começar a cortá-lo.

– Parece maravilhoso, Emma – disse Eva, radiante de alegria.

– A primeira fatia é para o Führer – disse Beatrix, com voz forte mas a tremer ligeiramente.

– Infelizmente, creio que não sou capaz de comer mais nada – declarou Hitler, dando uma pancadinha na zona do estômago. – Estou a rebentar.

– Oh, mas tem de provar, mein Führer! – gritou Ernst logo a seguir. – Perdão – acrescentou rapidamente, ao reparar no ar de surpresa de todos perante o seu entusiasmo. – O que queria dizer é que merece esta recompensa. Fez tanta coisa por nós, este ano. Uma fatia, por favor. Para celebrar esta época festiva. E depois todos comeremos um bocadinho.

Emma cortou uma porção generosa e colocou-a num prato com um pequeno garfo, que estendeu ao Führer. Este ficou a olhar por um momento, hesitante, e depois riu-se e aceitou-o.

– Tens toda a razão – disse. – Um Natal sem stollen não é Natal.

Usou o lado do garfo para cortar um pedaço de bolo e levou-o à boca.

– Espere! – gritou Pierrot, dando um salto para a frente. – Pare!

Todas as cabeças se voltaram com espanto, vendo o rapaz a correr para junto do Führer.

– O que foi, Pieter? – perguntou ele. – Queres ficar tu com a primeira fatia? Pensei que eras mais bem-educado.

– Pouse o bolo – disse Pierrot.

Por uns instantes, fez-se um silêncio perfeito.

– Perdão? – disse o Führer finalmente, em tom frio.

– Pouse o bolo, mein Führer – repetiu Pierrot. – Creio que não deve comê-lo.

Ninguém disse uma palavra enquanto Hitler olhava para o rapaz e para o bolo, e depois para Pierrot outra vez.

– E porque não? – perguntou, confuso.

– Acho que pode não estar em condições – disse, a voz tremendo tanto quanto a da tia, uns momentos antes.

Talvez estivesse enganado. Talvez estivesse a fazer figura de tonto e o Führer nunca lhe perdoasse aquele repente.

– O meu stollen não está em condições? – gritou Emma, quebrando o silêncio. – Ficas a saber, rapazinho, que faço este bolo há mais de vinte anos e nunca tive uma queixa!

– Pieter, estás cansado – disse Beatrix, dando um passo em frente e pousando as mãos nos seus ombros, tentando afastá-lo dali. – Peço desculpa, mein Führer. É a excitação do Natal. Sabe como são as crianças.

– Tira as mãos! – gritou Pierrot, afastando-a, e ela deu um passo atrás, uma mão tapando a boca, horrorizada. – Nunca mais voltes a pôr as mãos em cima de mim, ouviste? Traidora!

– Pieter – disse o Führer –, o que é que…

– Perguntou-me se eu gostaria de alguma coisa, este Natal – atirou Pierrot, interrompendo o Senhor.

– Sim, perguntei. E então?

– Bom, mudei de ideias. Afinal, quero uma coisa. Uma coisa muito simples.

O Führer olhou em volta, um meio sorriso no rosto, como se esperasse que alguém lhe explicasse tudo aquilo, e depressa.

– Muito bem – disse –, e o que é? Diz-me.

– Quero que o Ernst coma a primeira fatia – respondeu.

Ninguém falou. Ninguém se mexeu. Enquanto considerava o pedido de Pierrot, o Führer batia com o dedo no rebordo do prato, e depois, lentamente, muito lentamente, voltou-se para o seu motorista.

– Queres que o Ernst coma a primeira fatia – repetiu em voz baixa.

– Não, mein Führer – recusou o motorista, abando a cabeça, as palavras atropelando-se à medida que as dizia. – Não posso. Seria errado. A honra da primeira fatia é sua. O senhor fez… – As palavras derrapavam no seu medo. – Tanto… por todos…

– Mas é Natal – disse o Führer, caminhando na direção dele, e Herta e Ange abriram caminho para o deixar passar. – E os pequenos devem ter o que querem no Natal, se se tiverem portado bem. E o Pieter portou-se muito, muito bem.

Estendeu o prato, olhando Ernst diretamente nos olhos.

– Come – disse. – Come-o todo. Diz-me se está bom.

Deu um passo atrás e Ernst levantou o garfo à altura da boca, olhando para ele uns instantes, antes de subitamente atirar tudo ao Führer e sair a correr da sala, o prato caindo no chão e partindo-se, ao mesmo tempo que Eva dava um grito.

– Ernst! – gritou Beatrix, mas os guardas rapidamente o perseguiram, e Pierrot conseguia ouvir os gritos, lá fora, enquanto eles lutavam com ele e o subjugavam, no chão.

Ernst gritava-lhes que o deixassem, que o deixassem em paz, enquanto Beatrix, Emma e as criadas observavam, assustadas e em choque.

– O que é isto? – perguntou Eva, olhando em volta, confusa. – O que é que se passa? Porque é que ele não o comeu?

– Tentou envenenar-me – disse o Führer, em tom triste. – Que grande desilusão.

E com isto voltou-se e caminhou pelo corredor em direção ao escritório, fechando a porta. Um momento mais tarde, voltou a abri-la e berrou o nome de Pierrot.

Naquela noite, Pierrot levou muito tempo a adormecer, e não por estar excitado com a chegada da manhã de Natal. Interrogado pelo Führer durante mais de uma hora, revelara de boa vontade tudo o que vira e ouvira desde a sua chegada à Berghof: as suspeitas que alimentara em relação a Ernst e a sua grande desilusão com a tia, por ela ter traído a Pátria como traíra. Hitler permanecera em silêncio enquanto o rapaz falara, fazendo apenas uma ou outra pergunta, de vez em quando, inquirindo-o sobre se Emma, Herta, Ange ou qualquer um dos seus guardas poderiam estar envolvidos no plano, mas eles pareciam ignorar o que Ernst e Beatrix vinham planeando, tanto quanto o próprio Führer.

– E tu, Pieter? – perguntou, antes de o deixar ir. – Porque não pensaste em trazer-me as tuas preocupações antes?

– Não percebi o que estavam a fazer, até hoje – respondeu, o rosto corando-lhe de inquietação com a possibilidade de também ele ser implicado no que acontecera e mandado embora de Obersalzberg. – Nem sequer estava certo de que era do senhor que Ernst falava. Só compreendi no último momento, quando ele insistiu que comesse o stollen.

O Führer aceitou a explicação e mandou-o para a cama, onde ele se deitou, virou e revirou, até, de algum modo, o sono o vencer. Imagens inquietantes dos seus pais chegaram-lhe em sonho: o tabuleiro de xadrez no andar de baixo do restaurante de M. Abrahams; as ruas em redor da Avenue du Charles Floquet. Sonhou com D’Artagnan e Anshel, e com as histórias que o amigo costumava enviar-lhe. E depois, quando os seus sonhos se tornaram mais confusos, acordou num sobressalto, sentando-se na cama, o suor escorrendo-lhe do rosto.

Ficou ali, uma mão pressionando o peito, esforçando-se por encher os pulmões de ar, e ouviu o som de vozes falando baixo, lá fora, e de botas esmagando o cascalho. Saltando da cama, foi até à janela e abriu as cortinas, olhando para os jardins que se espraiavam nas traseiras da Berghof. Soldados haviam trazido dois carros – o de Ernst e outro –, e tinham-nos estacionado em lados opostos, os faróis ligados, projetando uma mancha de luz fantasmagórica para o centro do relvado. Três soldados estavam de costas para a casa, e Pierrot viu que mais dois conduziam Ernst até um ponto em que as luzes dos faróis se cruzavam, dando-lhe um aspeto bastante espectral. Tinham-lhe arrancado a camisa e agredido-o violentamente; um dos olhos estava fechado e sangue corria-lhe pela face, de um corte profundo na linha do cabelo. Uma nódoa negra formara-se no seu abdómen. Tinha as mãos atadas atrás das costas e, apesar de as pernas vacilarem, ali estava ele, muito direito e altivo, como um homem.

Um momento mais tarde, o próprio Führer apareceu, envergando o seu sobretudo e um chapéu, e colocou-se à direita dos soldados, não dizendo uma palavra e limitando-se a acenar com a cabeça, quando eles levantaram as espingardas.

– Morte aos Nazis! – gritou Ernst, no momento em que as balas foram disparadas, e Pierrot agarrou com força o peitoril da janela, horrorizado, ao ver o corpo do motorista tombar no chão; depois, um dos guardas que o tinha levado até ao lugar da morte marchou, tirou uma pistola do coldre e disparou uma única bala contra a cabeça do homem morto. Hitler voltou a anuir e dois soldados baixaram-se e começaram a arrastar o corpo de Ernst pelos pés.

Pierrot tapou a boca com uma mão, para se impedir de gritar, e deixou-se escorregar até ao chão, com as costas coladas à parede. Nunca antes tinha visto nada como aquilo; sentiu que ia vomitar.

Tu fizeste isto, dizia-lhe uma voz na sua cabeça. Mataste-o.

– Mas ele era um traidor! – respondeu ele em voz alta. – Traiu a Pátria! Traiu o próprio Führer!

Ficou onde estava, tentando recompor-se, ignorando o suor que lhe encharcava o pijama. E, finalmente, quando se sentiu com forças, pôs-se de pé e arriscou olhar para o exterior.

Ouviu imediatamente o som do cascalho a ser comprimido pelos passos dos guardas, e depois o som de vozes femininas, gritando histericamente. Ao olhar para baixo, viu que Emma e Herta tinham saído de casa e estavam ao lado do Führer, como que implorando, a primeira praticamente de joelhos, numa atitude de súplica, e Pierrot franziu o sobrolho, incapaz de compreender o que estava agora a acontecer. Afinal, Ernst já estava morto. Era tarde de mais para implorar pela vida dele.

E depois, viu-a.

A tia Beatrix sendo conduzida ao local onde Ernst tombara, alguns minutos antes.

Ao contrário do motorista, não tinha as mãos amarradas atrás das costas, mas o rosto também tinha sido esmurrado e a blusa rasgada a meio. Ela não falou, mas, por um momento, olhou para as duas mulheres com uma expressão grata, antes de lhes voltar as costas. O Führer deu um berro enorme à cozinheira e à criada, e então Eva apareceu, arrastando as mulheres chorosas para dentro de casa.

Pierrot olhou para a tia e o sangue gelou-lhe nas veias, ao ver que ela olhava para cima, para a janela, diretamente para ele. Os seus olhares encontraram-se e ele engoliu em seco, sem saber o que deveria fazer ou dizer. Mas, antes que pudesse decidir, os tiros soaram como um insulto à tranquilidade das montanhas, e o corpo dela tombou. Pierrot ficou a olhar, simplesmente, incapaz de se mexer. E depois, uma vez mais, o som de uma única bala cortou o silêncio da noite.

Mas tu estás a salvo, disse para si mesmo. E ela era uma traidora, tal como o Ernst. E os traidores têm de ser castigados.

Enquanto o corpo dela era arrastado, Pierrot fechou os olhos, e quando finalmente voltou a abri-los, esperando que a área estivesse novamente deserta, viu que um homem ficara no centro do jardim, olhando para ele, tal como Beatrix alguns momentos antes.

Pierrot ficou muito quieto quando os seus olhos encontraram os olhos de Adolf Hitler. Sabia o que tinha de fazer. Batendo os calcanhares, disparou o braço direito para a frente, as pontas dos dedos roçando no vidro, e fez a saudação que se tornara uma parte de si mesmo.

Tinha sido Pierrot a sair da cama naquela manhã, mas era Pieter que agora voltava a deitar-se nela, adormecendo profundamente.