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UM PROJETO ESPECIAL

A
reunião decorria há quase uma hora quando os dois homens finalmente chegaram. Do escritório, Pieter vira Kempka, o novo motorista, a estacionar em frente à porta, e correu rapidamente para o exterior, pronto a cumprimentar os oficiais que saíam do automóvel.

– Heil Hitler! – gritou, a plenos pulmões, pondo-se em sentido e fazendo a saudação.

Surpreendido, Herr Bischoff, o mais baixo e corpulento dos dois, levou a mão ao coração.

– Tens de gritar assim tão alto? – perguntou-lhe, voltando-se para o motorista, que lançou um olhar desdenhoso ao rapaz. – E quem é ele, já agora?

– O meu nome é Scharführer Fischer – declarou Pieter, dando uma palmadinha nas insígnias que lhe decoravam os ombros, dois relâmpagos brancos sobre um fundo preto. – Kempka, leva as malas para dentro.

– Com certeza, senhor – disse o motorista, obedecendo às palavras do rapaz sem qualquer hesitação.

O outro homem, segundo os galões que ostentava, um Obersturmbannführer, e cujo braço direito estava engessado, deu um passo em frente e examinou os emblemas de Pieter, antes de olhar o rapaz olhos nos olhos, sem pingo de simpatia ou cordialidade. Qualquer coisa no rosto dele era familiar a Pieter, mas ele não conseguia situá-lo. Tinha a certeza de que nunca o vira na Berghof, uma vez que mantinha um rigoroso registo de todos os oficiais mais graduados que vinham de visita, mas estava certo, algures na sua mente, de que os seus caminhos já se tinham cruzado.

– Scharführer Fischer – disse o homem em voz baixa. – É membro da Hitlerjugend?

– Sim, mein Obersturmbannführer.

– E que idade tem?

– Treze anos, mein Obersturmbannführer. O Führer promoveu-me ao meu posto um ano antes dos outros rapazes, recompensando um grande serviço que lhe prestei, a ele e à Pátria.

– Compreendo. Mas um líder de esquadrão necessita, certamente, de um esquadrão…

– Sim, mein Obersturmbannführer – respondeu Pieter, olhando em frente.

– E então, onde está ele?

– Como diz, mein Obersturmbannführer?

– O seu esquadrão. Quantos membros da Hitlerjugend estão sob a sua autoridade? Uma dúzia? Vinte? Cinquenta?

– Não há membros da Hitlerjugend em Obersalzberg – respondeu Pieter.

– Nem um?

– Não, mein Obersturmbannführer – disse Pieter, embaraçado.

Apesar do orgulho que tinha na sua designação, era uma fonte de vergonha, para ele, nunca ter treinado, vivido ou passado tempo com outros membros da organização; e, apesar de, ocasionalmente, o Führer lhe oferecer um novo título ou uma promoção, era óbvio que o fazia de forma, sobretudo, honorária.

– Um líder de esquadrão sem esquadrão – disse o homem, voltando-se para Herr Bischoff a sorrir. – Nunca tal tinha ouvido.

O rosto de Pieter corou e ele desejou pura e simplesmente não ter saído de casa. Tinham inveja dele, era o que era, disse para si mesmo. Um dia, quando tivesse poder a sério, fá-los-ia pagar por aquilo.

– Karl! Ralf! – exclamou o Führer, saindo de casa e descendo os degraus do alpendre para cumprimentar os dois homens. Estava com uma rara boa-disposição. – Até que enfim… O que é que vos atrasou?

– As minhas desculpas, mein Führer – disse Kempka, batendo secamente os calcanhares e fazendo a saudação. – O comboio entre Munique e Salzburgo atrasou-se.

– Então porque estás a pedir desculpa? – perguntou Hitler, que não tinha com este motorista a mesma relação amigável que tivera com o seu antecessor. Mas, certa noite, quando ele próprio mencionara isso, Eva comentara que Kempka, pelo menos, nunca tentara matá-lo. – Não foste tu que o atrasaste, pois não? Entrem, cavalheiros. O Heinrich já está lá dentro. Uns minutos e vou ter convosco. O Pieter indica-vos o caminho para o meu escritório.

Os dois oficiais seguiram Pieter pelo corredor e, quando ele abriu a porta da divisão onde Himmler aguardava, o Reichführer forçou um sorriso e apertou a mão aos recém-chegados. Pieter reparou que, apesar de ser amistoso com Bischoff, parecia um pouco mais hostil com o outro homem.

Deixando-os a sós e fazendo o caminho de volta pela casa, viu o Führer junto a uma das janelas, lendo uma carta.

– Mein Führer – disse, encaminhando-se para ele.

– O que foi, Pieter? Estou ocupado – respondeu, enfiando a carta no bolso e olhando para o rapaz.

– Espero ter conseguido provar-lhe o meu valor, mein Führer – disse Pieter, pondo-se em sentido.

– Claro que provaste. Porque perguntas?

– É por causa de uma coisa que o Obersturmbannführer disse. Sobre eu ter um posto sem as respetivas responsabilidades.

– Tu tens muitas responsabilidades, Pieter. És parte da vida de Obersalzberg. E tens os teus estudos, claro.

– Pensei que talvez pudesse ser-lhe mais útil na nossa luta.

– Útil, como?

– Gostaria de combater. Tenho força, tenho saúde, tenho…

– Treze anos – interrompeu o Führer, um meio sorriso nos lábios. – Pieter, tens apenas trezes anos. E o exército não é lugar para uma criança.

Pieter sentiu o rosto corado de frustração.

– Não sou uma criança, mein Führer – disse. – O meu pai lutou pela Pátria. Também quero lutar por ela. Para que o senhor possa ter orgulho em mim e eu possa reconquistar a honra do meu nome de família, que foi tão manchado.

O Führer respirou pesadamente pelo nariz, enquanto ponderava aquelas palavras.

– Alguma vez te perguntaste porque te tenho eu aqui?

Pieter acenou que não com a cabeça e perguntou:

– Como assim, mein Führer?

– Quando aquela mulher pérfida, cujo nome não pronunciarei, me perguntou se podias vir viver com ela para a Berghof, no início eu estava cético. Não tenho experiência com crianças. Como sabes, não tenho filhos. Não tinha a certeza de querer um fedelho a andar por aqui na correria e a tropeçar-me nos pés. Mas sempre fui um coração de manteiga e por isso consenti, e tu nunca me fizeste lamentar a minha decisão, porque provaste ser uma presença sossegada e estudiosa. Depois de os crimes terem sido descobertos, muitos disseram que eu devia mandar-te embora, ou até dar-te o mesmo destino que dei a ela.

Pieter esbulhou os olhos. Alguém sugerira que ele fosse fuzilado por causa dos erros de Beatrix e Ernst? Quem? Um dos soldados, talvez? Herta ou Ange? Emma? Todos odiavam a autoridade que ele tinha na Berghof. E queriam que morresse por isso?

– Mas eu disse que não – continuou o Führer, estalando os dedos quando Blondi ia a passar; a cadela aproximou-se e esfregou o focinho na mão do dono. – Disse que o Pieter era meu amigo, que o Pieter se preocupava com o meu bem-estar, que o Pieter nunca me deixaria ficar mal. Apesar da sua herança. Apesar da sua família desprezível. Apesar de tudo. Disse que te manteria aqui até seres um homem. Mas tu ainda não és um homem, pequeno Pieter.

O rapaz empalideceu ao ouvir o adjetivo, numa frustração crescente.

– Quando fores mais velho, talvez isso seja uma coisa que possamos fazer por ti. Mas, claro, nessa altura a guerra terá terminado há muito tempo. Alcançaremos a vitória no próximo ano, ou por aí, isso é óbvio. Entretanto, deves prosseguir os teus estudos… isso é o mais importante. E, daqui a uns anos, terás uma posição importante à tua espera, no Reich. Disso tenho a certeza.

Pieter anuiu, desapontado, mas sabia que não devia questionar o Führer, nem tentar convencê-lo a mudar de ideias. Já vira, em mais do que uma ocasião, quão rapidamente ele podia perder a paciência e mudar de afável para furioso. Bateu os calcanhares, fez a saudação tradicional e voltou para o exterior da casa, onde Kempka estava encostado ao carro, fumando um cigarro.

– Põe-te direito! – gritou. – Não te dês à preguiça.

E o motorista aprumou-se imediatamente.

E parou de se dar à preguiça.

Sozinho na cozinha, Pieter abriu latas de biscoitos e armários à procura de qualquer coisa para comer. Por aqueles dias, andava sempre cheio de fome e, comesse o que comesse, nunca parecia ficar satisfeito, o que, segundo Herta, era típico dos adolescentes. Levantando a tampa de um prato de bolo, sorriu ao ver uma esponjinha de chocolate acabada de fazer, à sua espera, e preparava-se para se servir quando Emma entrou.

– Se te atreves a tocar nesse bolo, Pieter Fischer, deito-te nos meus joelhos num abrir e fechar de olhos e dou-te com a colher de pau!

Pieter voltou-se e lançou-lhe um olhar frio; já fora insultado que chegasse para um dia só.

– Não te parece que estou um nadinha velho de mais para essas tuas ameaças? – perguntou.

– Não, não me parece – disse ela, empurrando-o para o lado e voltando a colocar a tampa de vidro sobre o bolo. – Quando estiveres na minha cozinha, jogas segundo as minhas regras. Não quero saber quão importante julgas que és. Se estás com fome, deve haver uns restos de frango no frigorífico. Podes fazer uma sanduíche.

Ele abriu o frigorífico e deu uma vista de olhos no seu interior. Lá estava um prato com frango, numa das prateleiras, uma tigela de recheio e outra de maionese.

– Perfeito – disse, batendo palmas alegremente. – Parece delicioso. Podes fazer-ma. Como uma coisa doce a seguir.

Sentou-se à mesa e Emma olhou para ele, de mãos nas ancas.

– Eu não sou tua criada – disse. – Se queres uma sanduíche, fá-la tu mesmo. Tens braços, não tens?

– A cozinheira és tu – respondeu em voz baixa. – E eu sou um Scharführer esfomeado. Vais fazer-me a sanduíche.

Emma não se mexeu, mas ele viu que ela não sabia bem o que responder.

– Já! – berrou, dando com o punho na mesa, e ela pôs-se em sentido, resmungando entre dentes enquanto tirava os ingredientes do frigorífico e abria a caixa do pão, para cortar duas fatias finas.

Quando ela terminou e pousou a sanduíche à frente dele, ele olhou para ela e sorriu.

– Obrigado, Emma – disse calmamente. – Parece deliciosa.

Ela aguentou o olhar dele um longo momento.

– Deve ser de família – disse. – A tua tia Beatrix também adorava uma boa sanduíche de frango. Mas sabia fazê-la sozinha.

Pieter apertou o maxilar e sentiu uma fúria crescente. Não tinha tia Beatrix nenhuma, disse para si mesmo. Esse era outro rapaz. Um rapaz chamado Pierrot.

– A propósito – disse ela, vasculhando o bolso do avental. – Isto chegou para ti, esta manhã.

A cozinheira entregou-lhe um envelope e, por um momento, Pieter contemplou a caligrafia familiar. Depois devolveu-lho, sem o abrir.

– Queima-a – disse. – E quaisquer outras como essa que possam chegar.

– É daquele teu velho amigo de Paris, não é? – perguntou ela, segurando-a contra a luz, como se pudesse ver as palavras escritas através do papel do envelope.

– Eu disse para a queimares – disparou. – Eu não tenho amigos em Paris. E ainda menos esse judeu, que insiste em escrever-me para me contar quão horrível a vida dele é agora. Devia agradecer pelo facto de Paris ter caído nas mãos dos alemães. Está cheio de sorte por ainda poder lá viver.

– Lembro-me de quando chegaste – disse Emma em voz baixa. – Sentaste-te ali, naquele banco, e contaste-me tudo sobre o pequeno Anshel, que ele tinha ficado a tomar conta do teu cão, que tinham uma linguagem especial com sinais que só tu e ele entendiam. Ele era a raposa e tu eras o cão, e…

Pieter não permitiu que ela terminasse a frase, levantando-se de um salto e arrancando-lhe o envelope das mãos com tanta força que ela escorregou para trás e caiu. Gritou, apesar de não poder ter ficado especialmente magoada.

– O que é que se passa contigo? – sibilou ele. – Porque é que tens sempre de me faltar ao respeito? Não sabes quem sou?

– Não – gritou ela, a voz embargada de emoção. – Não, não sei. Mas sei quem eras dantes.

Pieter sentiu as mãos fecharem-se, mas, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o Führer abriu a porta e espreitou.

– Pieter! – chamou. – Vem comigo, se fazes o favor. Preciso da tua ajuda.

O Senhor olhou para Emma, mas pareceu indiferente ao facto de ela estar estendida no chão da cozinha. Pieter lançou a carta para a lareira e olhou para a cozinheira.

– Não quero receber mais cartas destas, estás a entender? Se chegar mais alguma, deita-a fora. Se ma trouxeres, hei de fazer com que te arrependas. – Pegou na sanduíche, foi até ao balde do lixo e atirou-a para lá. – Mais tarde fazes-me outra – disse. – Quando a quiser, digo-te.

– Como podes ver, Pieter – disse o Führer ao entrar no escritório –, o Obersturmbannführer magoou-se. Um incidente com um ladrão na rua, que o atacou.

– Partiu-me o braço – disse o homem calmamente, como se aquilo não tivesse qualquer importância. – Por isso, parti-lhe o pescoço.

Himmler e Herr Bischoff levantaram os olhos da mesa no centro da sala, onde havia fotografias e muitas folhas com diagramas, e riram.

– Seja como for, neste momento não pode escrever, por isso precisa de alguém que tome notas. Senta-te, fica caladinho e escreve o que nós dissermos. Sem interrupções.

– Com certeza, mein Führer – disse Pieter, recordando-se de como ficara assustado, cinco anos antes, quando o Duque de Windsor se sentara naquela mesma sala e ele falara quando não devia.

Inicialmente, Pieter estava relutante em se sentar à secretária do Führer, mas os quatro homens estavam reunidos em redor da mesa, por isso, não tinha escolha. Sentou-se e pressionou as mãos abertas contra a madeira, tomado por uma enorme sensação de poder ao olhar em volta, para as bandeiras do Estado Alemão e do Partido Nazi, uma de cada lado. Não era difícil imaginar como seria estar ali sentado enquanto líder.

– Pieter, estás a prestar atenção? – disparou Hitler, voltando-se para ele, e o rapaz sentou-se muito direito, pegou num bloco, tirou a tampa da caneta pousada na secretária e começou a escrever o que se dizia.

– Este, evidentemente, é o local proposto – prosseguiu Herr Bischoff, apontando para uma série de esquemas. – Como sabe, mein Führer, os dezasseis edifícios que originalmente aqui estavam foram convertidos para nosso uso, mas, pura e simplesmente, não há espaço para o número de prisioneiros que nos estão a chegar.

– Quantos são, atualmente? – perguntou o Führer.

– Mais de dez mil – respondeu Himmler. – Na sua maioria, polacos.

– E aqui – continuou Herr Bischoff, indicando uma vasta área em redor do primeiro local – é aquilo a que eu chamo “zona de interesse”. Cerca de quarenta metros quadrados que seriam perfeitos para as nossas necessidades.

– E isto está tudo vazio, neste momento? – perguntou Hitler, percorrendo o mapa com o dedo.

– Não, mein Führer – respondeu Herr Bischoff, abanando a cabeça. – Está ocupado por proprietários e agricultores. Imagino que talvez tivéssemos de ponderar comprar-lhes a terra.

– Pode ser confiscada – disse o Obersturmbannführer com um encolher de ombros de indiferença. – A terra será requisitada para uso do Reich. Os residentes vão ter de compreender.

– Mas…

– Por favor, adiante, Herr Bischoff – disse o Führer. – O Ralf tem razão. A terra será confiscada.

– Com certeza – respondeu ele, e Pieter viu que o homem começava a transpirar abundantemente na cabeça calva. – Então, aqui estão as plantas que desenhei para o segundo campo.

– E que dimensão terá?

– Cerca de quatrocentos e vinte e cinco acres.

– Tão grande? – disse o Führer, erguendo o olhar, visivelmente impressionado.

– Eu próprio estive lá, mein Fuhrer – disse Himmler com uma expressão de orgulho no rosto. – Assim que o vi, percebi que responderia às nossas necessidades.

– Meu bom e leal Heinrich – disse Hitler com um sorriso, pousando a mão no ombro do homem por um momento, enquanto examinava as plantas.

Himmler estava radiante de prazer com o elogio.

– Concebi-o para albergar trezentos edifícios – continuou Herr Bischoff. – Será o maior campo deste género em toda a Europa. Como pode ver, usei um modelo relativamente convencional, mas tornará mais fácil aos guardas…

– Claro, claro – disse o Führer. – Mas quantos prisioneiros levam os trezentos edifícios? Não me parece que sejam muitos.

– Mas, mein Führer – disse Herr Bischoff abrindo os braços –, não são pequenos! Cada um poderá albergar entre seiscentas e setecentas pessoas.

Hitler olhou em frente e fechou um olho, enquanto fazia as contas.

– Isso daria…

– Duzentos mil – disse Pieter, de trás da secretária; uma vez mais, falara sem querer; mas, desta feita, o Führer lançava-lhe um olhar de agrado, não de fúria.

Voltando-se para os oficiais, acenou a cabeça de espanto.

– A conta estará certa? – perguntou.

– Sim, mein Führer – disse Himmler. – Aproximadamente.

– Extraordinário. Ralf, achas que podes supervisionar duzentos mil prisioneiros?

O Obersturmbannführer anuiu sem qualquer hesitação.

– Terei o maior orgulho em fazê-lo – disse.

– Isto é muito bom, meus senhores – disse o Führer, acenando em aprovação. – Muito bem. E quanto à segurança?

– Proponho que dividamos o campo em nove secções – disse Herr Bischoff. – Pode ver cada uma das áreas nas plantas. Aqui, por exemplo, são os pavilhões das mulheres. Aqui, os dos homens. Todos eles serão cercados por arame farpado…

Eletrificado – acrescentou Himmler. – Arame farpado eletrificado.

– Sim, mein Reichsführer, claro. Uma cerca de arame farpado eletrificado. Será impossível alguém escapar da sua secção específica. Mas, acaso o impossível aconteça, todo o campo estará rodeado por uma segunda cerca eletrificada. Tentar fugir será um suicídio. E, evidentemente, haverá torres de vigia por todo o lado, onde poderão ser colocados alguns soldados, prontos a disparar sobre quem tente fugir.

– E aqui? – perguntou o Führer, apontando para um local no topo do mapa. – O que é isto? Diz “sauna”.

– Proponho que aí sejam criadas câmaras de vapor – disse Herr Bischoff. – Para desinfetar as roupas dos prisioneiros. Quando chegarem, estarão pejados de piolhos e outras pragas. Não queremos que doenças se espalhem pelo campo. Temos de pensar nos nossos bravos soldados alemães.

– Compreendo – disse Hitler, os olhos passeando pelo intrincado design como se procurasse qualquer coisa em particular.

– Cada uma delas será concebida para parecer um complexo de chuveiros – disse Himmler. – Só que não haverá água a cair do teto.

Pieter levantou o olhar do bloco e franziu o sobrolho.

– Perdão, mein Reichsführer – disse.

– O que é, Pieter? – perguntou Hitler, virando-se com um suspiro.

– Peço desculpa, mas creio que ouvi mal – disse Pieter. – Disse que não haveria água a sair dos chuveiros?

Os quatro homens olharam para o rapaz e, por uns momentos, ninguém falou.

– Não quero mais interrupções, Pieter, por favor – disse o Führer em voz baixa, voltando costas.

– As minhas desculpas, mein Führer. Só não quero cometer nenhum erro na minha transcrição para o Obersturmbannführer.

– Não cometeste qualquer erro. Ora, Ralf, estavas a dizer… Qual é a capacidade?

– Para começar, cerca de mil e quinhentos por dia. Dentro de doze meses, poderemos duplicar o número.

– Muito bem. O importante é sermos consistentes na nossa rotação dos prisioneiros. Quando tivermos ganho a guerra, temos de ter a certeza de que o mundo que herdamos está purificado para os nossos propósitos. Criaste uma verdadeira beleza, Karl.

O arquiteto pareceu aliviado e fez uma pequena vénia.

– Obrigado, mein Führer.

– Resta apenas perguntar quando começará a construção.

– A uma ordem sua, mein Führer, poderemos começar esta semana – disse Himmler. – E se o Ralf for tão bom quanto nos dizem que é, o campo estará operacional em outubro.

– Com isso não precisas de te preocupar, Heinrich – disse o Obersturmbannführer com um sorriso amargo. – Se o campo não estiver pronto nessa altura, podes mandar-me também a mim lá para dentro, como castigo.

Pieter começou a sentir a mão cansada de toda aquela escrita, e qualquer coisa no tom do Obersturmbannführer despoletou uma memória na sua mente; ele ergueu o olhar, fixando o comandante do campo. Agora lembrava-se de onde o tinha visto antes. Fora há seis anos, quando corria em direção ao painel das partidas e chegadas, em Mannheim, à procura da plataforma do comboio de Munique. O homem da farda castanho-acinzentada que fora contra ele e que lhe calcara os dedos com a bota, enquanto ele jazia no chão. O homem que lhe teria partido a mão, não tivessem a mulher e os filhos chegado para o afastar.

– Isso é muito bom – respondeu o Führer, sorrindo e esfregando as mãos. – Um grande empreendimento, meus senhores; talvez o maior que o povo alemão alguma vez levou a cabo. Heinrich, a ordem está dada. Podes começar a trabalhar no campo imediatamente. Ralf, voltarás para lá imediatamente e supervisionarás a operação.

– Com certeza, mein Führer.

O Obersturmbannführer fez a saudação e caminhou até Pieter, parando à sua frente e olhando para ele.

– O que foi? – perguntou Pieter.

– As tuas notas – respondeu o Obersturmbannführer.

Pieter entregou-lhe o bloco onde rabiscara praticamente tudo o que os quatro homens haviam dito, e o Obersturmbannführer examinou-o por um momento, antes de virar costas, dizer adeus a todos e deixar o escritório.

– Também podes sair, Pieter – disse o Führer. – Vai lá para fora brincar, se quiseres.

– Irei para o meu quarto estudar, mein Führer – respondeu Pieter, a ferver por dentro com a forma como o Führer tinha falado.

Num momento, era o confidente que podia sentar-se na cadeira mais importante à face da Terra e tirar notas sobre o projeto especial do Führer; no outro, era tratado como uma criança. Bom, podia ser jovem, decidiu, mas pelo menos sabia que era completamente inútil construir um complexo de chuveiros sem água.