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A FESTA DE EVA

K
atarina começara a trabalhar na papelaria do pai, em Berchtesgaden, logo a seguir ao seu décimo quinto aniversário. Decorria o ano de 1944. Quando Pieter desceu a montanha para a visitar, decidira, pela primeira vez, não usar a farda da Hitlerjugend em que tinha tanto orgulho, mas uns calções de couro, sapatos castanhos, camisa branca e gravata escura. Sabia que Katarina, por alguma razão inexplicável, não gostava de fardas, e ele não queria dar-lhe motivos para o censurar.

Deambulou quase uma hora, tentando ganhar coragem para entrar. É verdade que a via todos os dias, na escola, mas isto era diferente; naquele dia, tinha uma pergunta específica para lhe fazer, muito embora a ideia de a abordar o deixasse muito ansioso. Tinha pensado em fazer-lha num corredor da escola, no intervalo, mas havia sempre a possibilidade de um colega os interromper, pelo que decidira que era melhor assim.

Entrando na loja, viu-a a abastecer uma estante com blocos encadernados a pele. Quando ela se voltou, ele experimentou a habitual mistura entre o desejo e a angústia que o fazia sentir um nó no estômago. Queria desesperadamente que ela gostasse dele, mas receava não conseguir que isso algum dia acontecesse. No momento em que o viu, o sorriso dela esmoreceu e ela regressou silenciosamente ao trabalho.

– Boa tarde, Katarina – disse ele.

– Olá, Pieter – respondeu ela, sem se voltar.

– Está um belo dia – disse ele. – Berchtesgadan é linda nesta altura do ano, não achas? Mas tu és linda o ano inteiro. – Sentiu que gelava e abanou a cabeça, sentindo agora o sangue a subir do pescoço até às faces. – Quer dizer, a cidade é bonita o ano inteiro. É um belo lugar. Sempre que venho a Berchtesgaden, surpreendo-me sempre com a sua… a sua…

– Beleza? – sugeriu Katarina, colocando o último bloco na estante e voltando-se para o rapaz com uma certa indiferença.

– Sim – disse ele, desanimado.

Preparara-se tão arduamente para aquela conversa e estava tudo a correr horrivelmente mal.

– Querias alguma coisa, Pieter? – perguntou ela.

– Sim, preciso de alguns aparos e tinta, por favor.

– Que tipo de aparos? – perguntou Katarina, indo para trás do balcão e abrindo um dos armários em vidro.

– Os melhores que tiveres. É para serem usados pelo Führer em pessoa, Adolf Hitler!

– Claro – disse ela, com o ínfimo entusiasmo que conseguiu reunir. – Vives com o Führer na Berghof. Devias referir isso mais vezes, não vão as pessoas esquecer-se.

Pieter franziu o sobrolho. Surpreendia-o que ela dissesse tal coisa, pois achava que o fazia as vezes suficientes. Na verdade, até achava que não devia falar tanto naquilo.

– Seja como for, não me refiro à qualidade – continuou ela. – Refiro-me ao tipo de aparo. Fino, médio ou largo. Ou, se o nosso gosto for um nadinha mais refinado, talvez devamos experimentar o fino suave. Falcon. Ou Sutab. Ou Cors. Ou…

– Médio – disse Pieter, que não gostava que o fizessem sentir-se estúpido, mas presumindo que aquela seria a melhor opção.

Ela abriu uma caixa de madeira e olhou para ele.

– Quantos?

– Meia dúzia.

Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e começou a contar os aparos, enquanto Pieter se encostava ao balcão e tentava parecer descontraído.

– Importas-te de não pôr as mãos no vidro? – perguntou ela. – Acabei de o limpar, há uns minutos.

– Claro que não, as minhas desculpas – disse ele, endireitando-se. – Embora as minhas mãos estejam limpas. Afinal, sou um membro muito considerado da Hitlerjugend. E nós temos orgulho numa boa higiene.

– Espera – disse Katarina, deixando o que estava a fazer e encarando-o, como se ele tivesse acabado de fazer uma grande revelação. – És membro da Hitlerjugend? A sério?!

– Bem… sim – respondeu ele, confuso. – Uso a minha farda todos os dias, na escola.

– Oh, Pieter – disse ela, abanando a cabeça e suspirando.

– Sabes muito bem que sou membro da Hitlerjugend! – disse, frustrado.

– Pieter – disse ela, abrindo os braços sobre o vasto leque de canetas e tinteiros no balcão envidraçado à sua frente. – Falaste em tinta?

– Tinta?

– Sim, disseste que precisavas de tinta.

– Oh, sim, claro – disse Pieter. – Seis tinteiros, por favor.

– De que cor?

– Quatro pretos e dois vermelhos.

Ao ouvir a sineta da porta tocar, Pieter voltou-se para trás e viu um homem entrar, carregando três grandes caixas de material, cujo comprovativo de receção Katarina assinou, dirigindo-se a ele de um modo muito mais afável do que o que usara com o colega de turma.

– Mais canetas? – perguntou ele, quando voltaram a ficar sozinhos, esforçando-se por fazer conversa.

Aquela história de falar com raparigas era muito mais complicada do que ele antecipara.

– E papel. E outras coisas.

– Não tens ninguém para te ajudar? – perguntou, ao vê-la pegar nas caixas e levá-las para um canto, empilhando-as cuidadosamente.

– Dantes tinha – respondeu ela calmamente, olhando-o diretamente nos olhos. – Uma senhora muito simpática, chamada Ruth, trabalhava aqui. Fê-lo durante quase vinte anos, na verdade. Era quase uma segunda mãe para mim. Mas já não está cá.

– Oh, a sério? – perguntou Pieter, sentindo que ela lhe estendia uma armadilha. – Porquê? O que lhe aconteceu?

– Quem sabe? – atirou Katarina. – Foi levada. Assim como o marido. E os três filhos. E a mulher do filho. E os dois filhos de ambos. Desde então, nunca mais ouvimos falar deles. Ela preferia os aparos de ponta fina suave. Era uma pessoa sofisticada e de bom gosto. Ao contrário de certas pessoas.

Pieter olhou pela janela, sentindo a contrariedade de estar a ser tão desrespeitado face ao desejo ardente que sentia por ela. Havia um rapaz que se sentava à frente dele, na escola, de nome Franz, que começara recentemente uma relação de amizade com Gretchen Baffril; a escola inteira dizia que eles se tinham beijado na semana anterior, durante um intervalo. E outro rapaz, Martin Rensing, convidara Lenya Halle para o casamento da irmã mais velha, algumas semanas antes, e tinha circulado uma fotografia dos dois a dançarem juntos, de mãos dadas, nessa noite. Como tinham eles conseguido aquilo, quando Katarina lhe fazia a vida tão difícil? E mesmo agora, enquanto Pieter olhava pela janela, via um rapaz e uma rapariga, que não reconheceu mas que tinham mais ou menos a mesma idade que ele e Katarina, passeando, rindo sobre qualquer coisa. O rapaz estava agachado e imitava um macaco, para a divertir, e ela ria muito. Pareciam muito descontraídos na companhia um do outro. Pieter nem imaginava como seria sentir aquilo.

– Judeus, imagino – disse, voltando-se novamente para Katarina e cuspindo a palavra com frustração. – Essa criatura, a Ruth, e a família. Judeus, não?

– Sim – disse Katarina.

E, quando ela se debruçou, Pieter reparou que o botão da blusa quase se desapertara; e imaginou que podia ficar a observar aquele botão para sempre, com o mundo silencioso e quieto em seu redor, enquanto esperava pela brisa ligeira e bem-vinda que acabaria por abrir o decote um pouco mais.

– Alguma vez quiseste conhecer a Berghof? – perguntou após um momento de silêncio, tentando ignorar a rudeza dela quando voltou a encará-la.

Ela ficou surpreendida e perguntou

– O quê?

– Só estou a perguntar porque vai haver lá uma festa, neste fim de semana. A festa de aniversário da Fräulein Braun, que é amiga íntima do Führer. Vai estar presente muita gente importante. Quererás fazer um intervalo no tédio da tua vida e experimentar a excitação de uma ocasião tão importante?

Katarina levantou uma sobrancelha e deu uma risadinha.

– Não me parece – disse.

– Claro que o teu pai também pode ir, se for esse o problema – acrescentou. – Em nome do decoro.

– Não – disse ela, acenando que não com a cabeça. – Só não quero ir, mais nada. Mas obrigada pelo convite.

– O pai pode ir onde? – perguntou Herr Holzmann, vindo de um quarto nas traseiras, limpando as mãos a uma toalha e deixando nela uma mancha de tinta preta com a forma de Itália.

Quando reconheceu Pieter, deteve-se; poucas pessoas em Berchtesgaden não sabiam quem ele era.

– Boa tarde – disse Herr Holzmann, aprumando-se com altivez.

– Heil Hitler! – gritou Pieter, batendo os calcanhares e fazendo a habitual saudação.

Katarina saltou, surpreendida, levando uma mão ao coração. Herr Holzmann tentou retribuir a saudação, mas era muito menos profissional que a do rapaz.

– Aqui tens os teus aparos e a tua tinta – disse Katarina, entregando-lhe o embrulho enquanto ele pagava. – Adeus.

– O pai pode ir onde? – repetiu Herr Holzmann, agora junto da filha.

– O Oberscharführer Fischer – disse Katarina com um suspiro – convidou-me, ou melhor, convidou-nos para uma festa na Berghof, no sábado. Uma festa de aniversário.

– Do Führer? – perguntou o pai, os olhos muito abertos de surpresa.

– Não – disse Pieter –, da amiga dele. Fräulein Braun.

– Oh, teríamos muita honra! – exclamou Herr Holzmann.

Tu terias, claro – respondeu Katarina. – Já não pensas pela tua cabeça, pois não?

– Katarina! – repreendeu-a o pai, antes de se voltar novamente para Pieter. – Terá de perdoar a minha filha, Oberscharführer, ela fala primeiro e só pensa depois.

– Pelo menos penso – disse ela. – Ao contrário de ti. Quando foi a última vez que tiveste uma opinião própria, que não te fosse impingida pelo…?

– Katarina! – berrou, agora, o rosto tingindo-se de vermelho. – Não me faltas ao respeito, ou vais para o teu quarto. Desculpe, Oberscharführer, a minha filha está numa idade difícil.

– Ele tem a mesma idade que eu – murmurou ela, e Pieter reparou, com surpresa, que ela tremia.

– Iremos com todo o gosto – disse Herr Holzmann, baixando um pouco a cabeça, em jeito de agradecimento.

– Pai, não podemos. Temos de pensar na loja. Nos nossos clientes. E tu bem sabes o que penso sobre…

– Não te preocupes com a loja – disse o pai, levantando a voz. – Nem com os nossos clientes. Nem com coisa nenhuma. Katarina, isto é uma grande honra que o Oberscharführer nos concede. – Voltou-se para Pieter. – A que horas devemos chegar?

– Depois das quatro – disse Pieter, um pouco desapontado por o pai ir.

Teria preferido que Katarina fosse sozinha.

– Lá estaremos. E, por favor, aceite o seu dinheiro de volta. E diga ao Führer que é oferta minha.

– Obrigado – disse Pieter, sorrindo. – Então vemo-nos sábado. Mal posso esperar! Adeus, Katarina.

Ao sair, suspirou de alívio por o encontro ter terminado e meteu no bolso o dinheiro que Herr Holzmann lhe devolvera; afinal, ninguém precisava de ficar a saber que o material de papelaria tinha sido de graça.

No dia da festa, a Berghof recebia alguns dos mais importantes membros do Reich, a maioria dos quais parecia mais preocupada em desviar-se do caminho do Führer que em celebrar com Eva. Hitler passara quase toda a manhã fechado no seu escritório com o Reichführer Himmler e o Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, e, a avaliar pela gritaria que atravessava a porta, Pieter sabia que ele não estava contente. Sabia, pelos jornais, que a guerra não estava a correr bem. Itália trocara de lado. O Scharnhorst, um dos couraçados mais importantes da Kriegsmarine, fora a pique na Batalha de Cabo Norte. E, nas últimas semanas, os britânicos tinham bombardeado Berlim constantemente. Agora que a festa começava, os oficiais pareciam aliviados por poderem socializar, em vez de terem de se defender perante um Führer irado.

Himmler mirava os outros convidados através dos pequenos óculos redondos, depenicando a sua comida como um rato. Observava toda a gente, particularmente os que estivessem a falar com o Führer, convencido de que todas as conversas eram sobre ele. Goebbels estava numa espreguiçadeira na varanda, de óculos escuros e cabeça voltada para o Sol. A Pieter parecia um esqueleto com pele por cima. Herr Speer, que no passado fora à Berghof várias vezes, com desenhos de uma cidade de Berlim reconstruída no pós-guerra, tinha ar de querer estar em qualquer outro lugar que não ali. A atmosfera estava tensa e, sempre que Pieter olhava para Hitler, via um homem tremendo, à beira de perder a cabeça.

Enquanto isso, mantinha um olho atento à estrada que rasgava a montanha, esperando que Katarina aparecesse, conforme prometido; mas as quatro horas tinham chegado e passado e não havia sinal dela. Vestira uma farda lavada e pusera aftershave, que roubara do quarto de Kempka, esperando que aquilo fosse suficiente para a impressionar.

Eva andava de grupo em grupo, ansiosamente, aceitando cumprimentos e presentes, como sempre quase ignorando Pieter, que lhe oferecera um exemplar de A Montanha Mágica, comprado com as suas magras poupanças. “Que atencioso da tua parte”, dissera ela, pousando o livro numa mesa de apoio e desaparecendo, e Pieter imaginou que, mais tarde, provavelmente Herta pegaria nele e arrumá-lo-ia numa das estantes da biblioteca, por ler.

Entre olhar para o caminho da montanha e observar a festa, o que mais interesse suscitava em Pieter era uma mulher que por ali andava com uma máquina de filmar nas mãos, apontando-a na direção dos convidados e pedindo-lhes que dissessem algumas palavras. Contudo, por muito conversadores que antes estivessem uns com os outros, mal ela aparecia ficavam constrangidos e mostravam pouca vontade de serem filmados, voltando-lhe as costas ou cobrindo o rosto com as mãos. Ocasionalmente, filmava a casa ou a montanha, e Pieter ficou intrigado com ela.

A certa altura, viu-a aproximar-se de Goebbels e Himmler, e viu que eles pararam imediatamente de falar, olhando-a fixamente sem dizerem uma palavra; ela afastou-se na direção contrária. Ao ver o rapaz sozinho, olhando para o caminho da montanha, foi ter com ele.

– Não estás a pensar em saltar, pois não? – perguntou-lhe.

– Não, claro que não – disse ele. – Porque pensaria em tal coisa?

– Estava a brincar – respondeu. – Estás muito elegante, no teu disfarce.

– Não é um disfarce – disse, com irritação. – É uma farda.

– Metia-me contigo – disse ela. – Mas como te chamas, afinal?

– Pieter – disse ele. – E a senhora?

– Leni.

– O que é que está a fazer com isso? – perguntou, apontando para a máquina.

– Um filme.

– Para quem?

– Para quem o quiser ver.

– Imagino que não seja casada com nenhum deles – disse Pieter, apontando na direção dos oficiais.

– Oh, não – respondeu ela. – Nenhum deles se interessa por ninguém a não ser por si próprio.

Pieter franziu o sobrolho.

– Então onde está o seu marido? – perguntou.

– Não tenho marido. Porquê, estás a candidatar-te?

– Claro que não.

– De qualquer maneira, és um pouco jovem de mais para mim… Quantos anos tens, catorze?

– Quinze – disse Pieter em tom zangado. – E não estava a candidatar-me, estava apenas a fazer uma pergunta, mais nada.

– Por acaso, vou casar no fim deste mês.

Pieter não disse nada e desviou o olhar, novamente para o caminho da montanha.

– Mas o que há de tão interessante ali? – perguntou Leni, olhando também para o caminho da montanha. – Estás à espera de alguém?

– Não – respondeu. – De quem estaria eu à espera? Quem importa já cá está.

– Então deixas-me filmar-te?

Acenou que não.

– Sou um soldado – disse. – Não um ator.

– Bom, neste momento não és nem uma coisa nem outra – disse ela. – Apenas um garoto de farda. Mas és bonito, disso não há dúvida. Vais ficar bem, no filme.

Pieter mirou-a. Não estava habituado a que lhe falassem assim e não gostava que o fizessem. Não teria ela percebido quão importante ele era? Abriu a boca para falar, mas, quando o fez, reparou que um automóvel fazia a curva do cimo da estrada e se encaminhava na sua direção. Ficou a vê-lo e depois sorriu, ao ver quem nele vinha, antes de se obrigar a ficar sério outra vez.

– Agora já sei do que estavas à espera – disse Leni, levantando a máquina e filmando o carro, à medida que ele avançava. – Ou melhor, de quem estavas à espera.

Pieter sentiu uma enorme vontade de lhe arrancar a máquina das mãos e de a atirar dali abaixo, mas limitou-se a alisar o casaco, para garantir que estava bem aprumado, e avançou para cumprimentar os convidados.

– Herr Holzmann – disse, curvando-se educadamente perante ambos. – Katarina. Fico muito contente por terem conseguido vir. Bem-vindos à Berghof.

Mais tarde, quando Pieter se apercebeu de que não via Katarina há já algum tempo, entrou em casa e viu-a contemplando alguns quadros nas paredes. Até ver, aquela tarde não tinha corrido particularmente bem. Herr Holzmann esforçara-se imenso por conversar com os oficiais nazis, mas não era um homem sofisticado e Pieter sabia que eles se riam das suas tentativas de os conquistar. Parecia assustado, contudo, pela presença do Führer, e ficou o mais longe possível dele. Pieter desprezava-o, perguntando-se como podia um adulto ir a uma festa e portar-se como um rapazinho.

A sua conversa com Katarina fora ainda mais difícil. Ela recusara-se até a fazer de conta que se sentia feliz por ali estar, e era óbvio que queria ir embora o mais depressa que conseguisse. Ao ser apresentada ao Führer, comportara-se respeitosamente, mas sem sinais do deslumbramento que Pieter esperara.

– Então, és a namorada do nosso jovem Pieter? – perguntara Hitler, esboçando um sorriso enquanto a mirava de cima a baixo.

– Evidentemente que não – respondeu ela. – Andamos na mesma turma de escola, nada mais.

– Mas vê como ele está apaixonado – disse Eva, aproximando-se e juntando-se aos gracejos. – Nós nem sequer sabíamos que o Pieter já se interessava por raparigas.

– A Katarina é apenas uma amiga – disse Pieter, corando furiosamente.

– Nem sequer isso – disse ela, sorrindo com doçura.

– Ah, isso é o que dizes agora – disse o Führer –, mas eu consigo detetar aí uma faísca. Não tardará muito a inflamar-se. Futura Frau Fischer, talvez?…

Katarina não disse nada, mas parecia prestes a explodir de raiva. Quando o Führer e Eva se afastaram, Pieter tentou iniciar uma conversa sobre outros jovens que conheciam de Berchtesgaden, mas ela quase não abrira a boca, como se não quisesse que ele soubesse muito sobre o que pensava. Quando ele lhe perguntou de que batalha tinha gostado mais, até àquele momento, ela olhou para ele como se o julgasse louco.

– Aquela em que tiver morrido menos gente – respondeu.

E a tarde passara assim, com ele a fazer o que podia para a conquistar e ela, invariavelmente, a rejeitá-lo. Mas talvez fosse, disse Pieter para si mesmo, porque havia ali muita gente. Agora, que estavam sozinhos, esperava que ela fosse um pouco mais acessível.

– Gostaste da festa? – perguntou-lhe.

– Duvido que algum dos presentes esteja a divertir-se – disse ela.

Pieter ergueu o olhar para o quadro que ela estivera a admirar.

– Não sabia que te interessavas por arte – comentou ele.

– Pois – respondeu ela –, mas interesso-me.

– Então esta obra deve agradar-te muito.

Katarina fez que não com a cabeça.

– É pavorosa – respondeu, olhando depois em redor para as pinturas. – Todas elas o são. Pensava que um homem com o poder do Führer tivesse trazido coisas um bocadinho melhores dos museus.

Pieter esbugalhou os olhos, horrorizado com o que ouvia. Levantou um dedo e apontou para a assinatura do artista, no canto inferior direito do quadro.

– Oh! – exclamou ela, momentaneamente arrependida, talvez um pouco nervosa. – Bom, quem os pintou não interessa. Continuam a ser medonhos.

Ele agarrou-a bruscamente pelo braço e puxou-a pelo corredor até ao seu quarto, batendo a porta atrás de si.

– O que é que estás a fazer? – perguntou ela, libertando-se.

– A proteger-te – disse ele. – Aqui não podes dizer coisas daquelas, não percebes? Vais arranjar problemas.

– Eu não sabia que ele é que os tinha pintado – disse ela, abrindo os braços.

– Pronto, mas agora já sabes. Por isso, no futuro, fica de boca calada, Katarina, até perceberes do que estás a falar. E para de falar comigo dessa maneira arrogante. Eu convidei-te para vires cá, a um lugar que uma rapariga como tu, em circunstâncias normais, não conseguiria visitar. Já é tempo de mostrares algum respeito por mim.

Ela fixava-o e Pieter conseguia ver um medo crescente nos seus olhos, um medo que ela tentava, por tudo, controlar. Não tinha a certeza se gostava daquilo ou não.

– Não fales assim comigo – disse ela, em voz baixa.

– Desculpa – respondeu Pieter, aproximando-se um pouco. – É só porque gosto de ti, mais nada. Não quero que nenhum mal te aconteça.

– Nem sequer me conheces.

– Conheço-te há anos!

– Não me conheces nem um pouco.

Ele suspirou.

– Talvez não – disse. – Mas gostava que isso mudasse. Se me deixares.

Deu um passo em frente e percorreu-lhe a face com um dedo. Ela deu um passo atrás, em direção à parede.

– És tão, tão bonita – murmurou, surpreso consigo mesmo e com as palavras que lhe escapavam dos lábios.

– Para, Pieter – disse ela, virando a cara.

– Mas porquê? – perguntou ele, chegando-se a ela, até o perfume dela quase o esmagar. – É o que eu quero.

Com uma mão, voltou o rosto dela para si e inclinou-se para a beijar.

– Afasta-te de mim! – ordenou ela, usando as duas mãos para o afastar, e ele cambaleou para trás com uma expressão de surpresa no rosto, até tropeçar numa cadeira e cair no chão.

– O quê? – perguntou, assustado e confuso.

– Não me toques, estás a ouvir? – Ela abriu a porta mas não saiu imediatamente, ficando a observá-lo enquanto ele se levantava. – Nada neste mundo me faria querer beijar-te.

Ele abanou a cabeça, incrédulo.

– Mas não percebes a honra que seria para ti? – perguntou. – Não sabes que sou importante?

– Claro que sei – respondeu ela. – És o rapaz de calções que vai comprar tinta para as canetas do Führer. Como poderia eu subestimar o teu valor?

– Sou mais do que isso – rosnou ele, endireitando-se e caminhando na direção dela. – Só tens de me deixar mostrar-te alguma bondade, é só isso.

Agarrou-a novamente e, desta vez, ela deu-lhe um estalo com todas as forças que tinha; um anel que usava num dedo deixou-lhe uma marca vermelha no rosto. Ele gemeu e levou uma mão à cara, olhando para Katarina com raiva, e avançou de novo, desta vez empurrando-a contra a parede e impedindo-a de se mexer.

– Quem é que pensas que és? – perguntou, empurrando o seu rosto contra o rosto dela. – Pensas que me podes rejeitar? Raparigas em toda a Alemanha seriam capazes de matar para estar na tua posição.

Avançou novamente para a beijar, desta vez com o corpo tão colado ao dela que era impossível afastá-lo. Katarina debateu-se, tentando libertar-se, mas ele era demasiado forte para ela. Agora, Pieter percorria-lhe o corpo com a mão esquerda, apalpando-a, e apesar de ela tentar gritar por ajuda, a mão direita dele tapava-lhe a boca, silenciando-a. Ele sentia-a enfraquecer e sabia que ela não conseguiria resistir muito mais tempo; em breve, faria com ela o que quisesse. Uma vozinha dizia-lhe que parasse. Outra, mais forte, que fizesse o que queria.

Uma força vinda de nenhures atingiu Pieter, que tombou no chão; e, antes que compreendesse o que acontecera, deu consigo prostrado, enquanto alguém se sentava em cima dele, encostando-lhe à garganta o gume afiado de uma faca de trinchar. Tentou engolir a saliva, mas sentia a lâmina na pele e não queria arriscar ser cortado.

– Pões mais um dedo nesta pobre rapariga – murmurou Emma – e eu corto-te a garganta de orelha a orelha. Não quero saber do que possa acontecer-me a seguir. Estás a entender, Pieter? – Ele não disse nada, só os olhos dardejavam a mulher e a rapariga. – Diz-me que entendeste, Pieter… Diz agora, ou Deus me…

– Sim, entendi – sibilou ele, e ela pôs-se de pé, deixando-o estendido, a esfregar o pescoço, verificando se tinha sangue nos dedos.

Depois ele olhou para cima, humilhado, com o olhar inundado de ódio.

– Cometeste um erro enorme, Emma – disse em voz baixa.

– Não tenho a menor dúvida – disse ela. – Mas nem de longe nem de perto tão grande como o que cometeu a tua tia, quando decidiu trazer-te para cá. – Por um momento, o rosto dela suavizou-se ao fixar o do rapaz. – O que é que te aconteceu, Pierrot? – perguntou de seguida. – Eras tão querido, quando chegaste. É assim tão fácil corromper um inocente?

Pieter não disse nada. Queria insultá-la, descarregar nela – descarregar em ambas – a fúria que sentia, mas qualquer coisa na maneira como Emma o olhara, um misto de piedade e de desprezo no seu rosto, lhe trazia à memória a imagem de quem um dia tinha sido. Katarina chorava, e ele olhou para o lado, desejando que o deixassem sozinho. Não queria mais o olhar delas pousado nele.

Só quando ouviu os passos afastando-se pelo corredor e Katarina dizendo ao pai que era hora de irem embora, é que Pieter tentou pôr-se novamente de pé. Mas, em vez de regressar à festa, fechou a porta e estendeu-se na cama, tremendo ligeiramente; e então, sem saber bem porquê, começou a chorar.