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A MEDALHA NO ESCRITÓRIO

N
ascidas com apenas um ano de diferença, nem Simone nem Adèle Durand tinham casado, e pareciam contentes na companhia uma da outra, apesar de, para irmãs, não serem nada parecidas.

Simone, a mais velha das duas, era surpreendentemente alta, mais alta que a maioria dos homens. Mulher muito bonita, de pele escura e profundos olhos castanhos, tinha uma alma artística e não havia nada de que mais gostasse que sentar-se ao piano, horas a fio, perdida na sua música. Adèle, por outro lado, era bastante baixa, tinha um rabo gordo e uma compleição pálida, e andava de um lado para o outro como um pato, uma ave com que ela se parecia bastante, aliás. Era ativa e, sem dúvida, a mais sociável das duas, mas não tinha uma única nota de música na cabeça.

As irmãs tinham crescido numa grande mansão situada cerca de cento e trinta quilómetros a sul de Paris, na cidade de Orléans, onde, quinhentos anos antes, Joana d’Arc ficara famosa por levantar o cerco da cidade. Quando eram muito jovens, acreditavam que pertenciam à maior família de França, porque havia cinquenta outras crianças, com idades entre as poucas semanas e os dezassete anos, vivendo nos quartos dos terceiro, quarto e quinto andares da sua casa. Algumas eram simpáticas, outras andavam sempre zangadas, algumas eram tímidas e outras não passavam de rufias, mas todas tinham uma coisa em comum: eram órfãs. As suas vozes e passos eram audíveis no piso habitado pela família, no primeiro andar, quando falavam antes de irem para a cama ou quando corriam, pela manhã, aos gritos, descalços, pelo chão de mármore frio. Mas, apesar de Simone e Adèle partilharem uma casa com elas, sentiam-se separadas das outras crianças de uma forma que só conseguiram compreender quando já eram mais velhinhas.

M. e Mme. Durand, os pais das raparigas, tinham montado o orfanato depois de se casarem e tinham-no gerido, até às suas mortes, de acordo com políticas bastante rígidas sobre quem podia e não podia ser admitido. Quando eles morreram, as irmãs assumiram o lugar dos pais, devotando-se inteiramente ao cuidado das crianças que tinham sido deixadas sozinhas no mundo; e mudando significativamente algumas daquelas políticas.

“Qualquer criança abandonada será bem-vinda”, declararam. “A cor, a raça ou o credo não têm, para nós, qualquer importância.”

Simone e Adèle eram excecionalmente próximas. Todos os dias percorriam juntas os jardins, examinando os canteiros de flores e dando instruções ao jardineiro. Além da aparência física, o que também distinguia as irmãs era que Adèle parecia não conseguir parar de falar desde o momento em que acordava até ao minuto em que adormecia, à noite, enquanto Simone raramente falava, e, quando o fazia, as frases eram breves, como se o ato de respirar lhe custasse uma energia que ela não podia dar-se ao luxo de gastar.

Pierrot conheceu as irmãs Durand quase um mês após a morte da mãe, quando embarcou num comboio na Gare d’Austerlitz, envergando as suas melhores roupas e um cachecol novo em folha que Mme. Bronstein lhe comprara nas Galerias Lafayette, na tarde anterior, como presente de despedida. Ela, Anshel e D’Artagnan tinham ido até à estação para lhe dizerem adeus; e, a cada passo, Pierrot sentia que o coração se afundava um pouco mais dentro do peito. Estava assustado e sozinho, imerso num enorme desgosto por causa da Maman, e desejava que ele e o cão pudessem mudar-se para casa do seu melhor amigo. Na verdade, ficara com Anshel nas semanas que se tinham seguido ao funeral e observara Mme. Bronstein e o filho irem juntos à sinagoga, no sabat, tendo até chegado a perguntar-lhes se poderia acompanhá-los; mas ela dissera-lhe que, naquele momento, não era boa ideia. Em vez disso, ele devia levar D’Artagnan a passear no Champ de Mars. Os dias passaram e, uma tarde, Mme. Bronstein regressou com uma das suas amigas. Pierrot ouviu a visitante dizer que tinha uma prima que adotara uma criança gentia e que ela rapidamente se tornara parte da família.

– O problema não é ele ser gentio, Ruth – disse Mme. Bronstein. – O problema é eu não ter dinheiro que chegue para o sustentar. A verdade é que tenho muito pouco. O Levi não me deixou quase nada. Oh, eu disfarço bem; ou, pelo menos, tento, mas as coisas não são fáceis para uma viúva. E do pouco que tenho, preciso para o Anshel.

– Tens de cuidar dos teus em primeiro lugar, claro – disse a senhora. – Mas não haverá ninguém que possa…?

– Já tentei. Acredita, já falei com toda a gente de que me lembrei. Imagino que tu…

– Não, desculpa. São tempos difíceis, como tu mesma disseste. E, além disso, a vida em Paris está cada vez mais difícil para os judeus, não achas? Talvez o rapaz ficasse melhor numa família mais parecida com a dele.

– Talvez tenhas razão. Desculpa, nem sequer devia ter-te perguntado.

– Claro que devias. Estás a fazer o melhor que podes pelo rapaz. És mesmo assim. Somos assim. Mas, quando não pode ser, não pode ser. Então, quando vais dizer-lhe?

– Hoje à noite, acho eu. Não vai ser fácil.

Intrigado com aquela conversa, Pierrot voltou para o quarto de Anshel e procurou a palavra “gentio” num dicionário, perguntando-se que tinha aquilo a ver, afinal, com o assunto. Ficou ali sentado muito tempo, atirando de uma mão para a outra o solidéu de Anshel, que antes jazia nas costas de uma cadeira; mais tarde, quando Mme. Bronstein foi falar com ele, tinha-o posto na cabeça.

– Tira isso! – disse ela em tom seco, arrancando-lho e colocando-o onde Pierrot o encontrara. Fora a primeira vez na vida que ela lhe falara em tom ríspido. – Isto não é para se brincar. Não é um brinquedo, é sagrado.

Pierrot não disse nada, mas sentiu um misto de embaraço e mal-estar. Não lhe era permitido ir à sinagoga, não lhe era permitido usar a boina do melhor amigo; para ele, era óbvio que não era desejado ali. E, quando Mme. Bronstein lhe disse para onde ia ser mandado, não restou qualquer dúvida.

– Tenho muita pena, Pierrot – disse ela, depois de lhe explicar tudo. – Mas só ouvi coisas boas acerca do orfanato. Tenho a certeza de que serás feliz lá. E talvez uma família maravilhosa te adote, em breve.

– E o D’Artagnan? – perguntou Pierrot, olhando para o cãozito, que dormitava no chão.

– Nós podemos tomar conta dele – disse Mme. Bronstein. – Ele gosta de ossos, não gosta?

– Adora ossos.

– Pois bem, os ossos não custam nada, graças ao M. Abrahams. Ele disse-me que me daria alguns, todos os dias, porque ele e a mulher gostavam muito da tua mãe.

Pierrot não disse nada; tinha a certeza de que, se as coisas fossem ao contrário, a Maman teria ficado com Anshel. Apesar do que Mme. Bronstein tinha dito, o facto de ele ser gentio parecia ter feito alguma diferença. Naquele momento, estava simplesmente assustado com a ideia de o deixarem sozinho no mundo e entristecia-o saber que Anshel e D’Artagnan se teriam um ao outro, enquanto ele não teria absolutamente ninguém.

Espero não me esquecer de como isto se faz, gesticulou Pierrot, naquela manhã, enquanto esperava com o amigo na estação que Mme. Bronstein lhe comprasse o bilhete só de ida.

Acabaste de dizer que esperas não te transformares numa águia, fez Anshel com as mãos, rindo e mostrando de seguida ao amigo os sinais corretos que ele devia ter feito.

Estás a ver?, gesticulou Pierrot, desejando poder atirar ao ar todos os sinais e formas, e que eles lhe caíssem novamente nos dedos pela ordem certa. Já me estou a esquecer.

Não estás nada. Ainda estás a aprender, é só isso.

És tão melhor do que eu nisto…

Anshel sorriu.

Tenho de ser.

Ao ouvir o som do vapor escapando das válvulas da locomotiva e o apito estridente do revisor, uma chamada furiosa à plataforma que lhe fazia o estômago revirar-se de ansiedade, Pierrot voltou-se. Metade de si, claro, estava algo entusiasmada com esta parte da sua jornada, porque ele nunca tinha visto um comboio antes; a outra metade desejava que a viagem nunca terminasse, porque receava o que podia estar à sua espera no fim da linha.

Devíamos escrever um ao outro, Anshel, fez Pierrot. Não podemos perder o contacto.

Todas as semanas.

Pierrot fez o sinal da raposa, Anshel fez o sinal do cão; e ambos levantaram os braços, elevando no ar aqueles dois símbolos, para representarem a sua eterna amizade. Queriam abraçar-se, mas havia tanta gente à volta que eles se sentiam um pouco embaraçados, e por isso apertaram as mãos. Foi quando Pierrot se despediu.

– Adeus, Pierrot – disse Mme. Bronstein, baixando-se para lhe dar um beijo.

Mas o ruído do comboio era tão forte e o alvoroço da multidão tão esmagador, que era quase impossível ouvi-la.

– É porque eu não sou judeu, não é? – quis saber Pierrot, olhando-a nos olhos. – Não gosta de gentios e não quer ter um a viver consigo.

– Como? – perguntou ela, endireitando-se muito e parecendo chocada. – Pierrot, quem te deu uma ideia dessas? Nunca tal me passou pela cabeça! Mas tu és um rapaz esperto, de certeza que já percebeste como a atitude para com os judeus, por aqui, está a mudar… os nomes que nos chamam, o ressentimento que as pessoas parecem ter em relação a nós.

– Mas se eu fosse judeu arranjava uma maneira de ficar comigo, tenho a certeza.

– Estás enganado, Pierrot. Estou apenas a pensar na tua segurança e…

– Todos a bordo! – gritou o revisor em voz forte. – Última chamada! Todos a bordo!

– Adeus, Anshel – disse Pierrot, voltando-lhe as costas e subindo o degrau da sua carruagem.

– Pierrot! – gritou Mme. Bronstein. – Volta, por favor! Deixa-me explicar… percebeste tudo mal!

Mas ele não voltou. O seu tempo em Paris tinha terminado, sabia disso. Fechou a porta atrás de si, respirou profundamente e deu um passo em frente, para começar a sua nova vida.

Uma hora e meia mais tarde, o revisor batia no ombro de Pierrot e apontava para os campanários das igrejas que começavam a aparecer na paisagem.

– Ora bem… – disse, apontando para o pedaço de papel que Mme. Bronstein lhe pregara na lapela e onde escrevera o nome dele, PIERROT FISCHER, e o seu destino, ORLÉANS, em grandes letras pretas. – Esta é a tua paragem.

Pierrot engoliu em seco, tirou a sua pequena mala de baixo do assento e dirigiu-se até à porta, mal o comboio se deteve. Saltou para a plataforma e esperou que o vapor dos motores se dissipasse, para ver se alguém o aguardava. Um pânico momentâneo invadiu-o quando pensou no que faria se ninguém aparecesse. Quem tomaria conta dele? Afinal, tinha apenas sete anos, e não tinha dinheiro para um bilhete de regresso a Paris. O que comeria? Onde dormiria? Que seria dele?

Sentiu que alguém lhe tocava no ombro e, quando se voltou, um homem de rosto corado baixou-se e arrancou-lhe o papel da lapela, aproximou-o dos olhos, amarfanhou-o e deitou-o fora.

– Vens comigo – disse, abrindo caminho até uma carruagem, puxada a cavalo, enquanto Pierrot o olhava fixamente, pregado ao chão. – Vamos lá! – acrescentou, virando-se para trás e devolvendo-lhe o olhar. – Se o teu tempo não é precioso, o meu é!

– Quem é o senhor? – perguntou Pierrot, recusando-se a segui-lo, não fosse dar-se o caso de estar simplesmente a ser levado como escravo por algum agricultor a precisar de mão de obra extra para as colheitas.

Uma vez, Anshel escrevera uma história assim e as coisas tinham acabado mal para toda a gente.

– Quem sou eu? – perguntou o homem, rindo da audaciosa pergunta do rapaz. – Sou o tipo que te vai deixar o rabo a arder se não o trouxeres já para aqui!

Os olhos de Pierrot esbugalharam-se. Estava há apenas uns minutos em Orléans e já o ameaçavam com violência. Negou com a cabeça, em desafio, e sentou-se na sua mala.

– Desculpe – disse –, ensinaram-me que não devo ir a lado nenhum com estranhos.

– Não te preocupes, não seremos estranhos por muito tempo – disse o homem, os traços do rosto suavizando-se um pouco com um sorriso.

Tinha cerca de cinquenta anos e até seria parecido com M. Abrahams, do restaurante, não fosse a barba que não fazia há vários dias e as roupas mal-arranjadas e velhas que trazia, sem se preocupar com o facto de nada estar a condizer.

– És o Pierrot Fischer, não és? Era o que estava escrito na tua lapela. As irmãs Durand mandaram-me buscar-te. O meu nome é Houper. De vez em quando, faço-lhes uns biscates. E de vez em quando venho buscar órfãos à estação. Os que viajam sozinhos. É só isso.

– Oh – disse Pierrot, pondo-se de pé –, pensei que seriam elas a vir buscar-me.

– E deixarem tudo por conta daqueles monstrinhos? Nada provável. Quando chegassem, aquilo ia estar feito em ruínas.

O homem deu um passo em frente e, quando pegou na mala de Pierrot, o seu tom de voz mudou.

– Olha, não precisas de ter medo de nada – disse. – É um bom lugar. Elas são muito gentis, as duas. E então, que é que dizes: vens comigo?

Pierrot olhou em redor. O comboio já voltara a partir e, de onde ele estava, não se via nada a não ser campos sem fim. Sabia que não tinha escolha.

– Está bem – respondeu.

Cerca de uma hora mais tarde, Pierrot deu consigo sentado num escritório muito limpo e arrumado, com duas enormes janelas que davam para um jardim bem cuidado. As irmãs Durand miravam-no de alto a baixo, como se ele fosse uma coisa que elas estavam a considerar comprar numa feira.

– Quantos anos tens? – perguntou Simone, pegando nos óculos para o examinar; depois deixou-os pender do pescoço.

– Sete – disse Pierrot.

– Não pode ser, és muito pequeno para sete anos.

– Sempre fui pequeno – respondeu Pierrot –, mas tenciono ficar maior, um dia destes.

– A sério? – perguntou Simone, divertida.

– Que idade bonita, sete anos – disse Adèle, batendo palmas e sorrindo. – As crianças são tão felizes, nessa idade, tão curiosas sobre o mundo.

– Minha querida – interrompeu Simone pousando uma mão no braço da irmã –, a mãe do rapaz acaba de morrer. Duvido que ele esteja a sentir-se especialmente jovial.

– Oh, claro, claro – disse Adèle, o rosto assumindo uma expressão séria. – Deves estar a sofrer. É uma coisa terrível, a perda de um ente querido. Uma coisa terrível. Eu e minha irmã sabemos isso melhor que ninguém. O que quis dizer foi que os rapazes da tua idade são encantadores, é o que eu acho. Vocês só começam a ficar horríveis quando chegam aos treze, catorze anos. Não que te vá acontecer a mesma coisa, tenho a certeza de que não. Arrisco mesmo dizer que vais ser um dos bonzinhos.

– Minha querida – repetiu Simone em voz baixa.

– Desculpa – respondeu Adèle. – Não paro de tagarelar, não é? Deixa-me só dizer isto, então. – Clareou a garganta, como se estivesse prestes a dirigir-se a uma assembleia de trabalhadores fabris indisciplinados. – Estamos muito contentes por te ter aqui connosco, Pierrot. Não tenho qualquer dúvida de que serás um extraordinário elemento daquela que gostamos de ver como sendo a nossa pequena família, aqui, no orfanato. E, Deus me valha, não é que és um rapazinho muito bonito?! Tens uns olhos azuis extraordinários. Tive um Spaniel com olhos tal e qual os teus. Não que te esteja a comparar com um cão, claro. Isso seria terrivelmente indelicado. Quis apenas dizer que me fazes lembrar dele, mais nada. Simone, não achas os olhos do Pierrot parecidos com os do Casper?

Simone levantou o sobrolho e olhou brevemente para o rapaz. Depois acenou com a cabeça e respondeu:

– Não.

– Ah, mas são! São mesmo! – declarou Adèle, com tanto prazer que Pierrot começou a perguntar-se se ela pensaria que o falecido cão voltara à vida sob forma humana. – Bom, mas vamos ao que importa. – E aqui a expressão dela ficou bastante séria. – Lamentamos o que sucedeu à tua querida mãe. Tão jovem, ganha-pão maravilhoso, foi o que nos disseram. E também que já tinha passado por muito. Parece terrivelmente cruel que uma pessoa ainda com tantas razões para viver te seja levada exatamente quando mais precisas dela. E atrevo-me a dizer que ela te amava muito. Não concordas, Simone? Não achas que a Mme. Fischer deve ter amado muito o Pierrot?

Simone levantou o olhar de um livro em que estava a registar pormenores sobre a altura e a condição física de Pierrot.

– Imagino que a maior parte das mães ame os seus filhos – disse. – Nem vale a pena comentar.

– E o teu pai? – continuou Adèle. – Também morreu há uns anos, não foi?

– Sim – disse Pierrot.

– E não tens mais família?

– Não. Quer dizer, o meu pai tinha uma irmã, acho eu, mas nunca a conheci. Nunca foi visitar-nos. Provavelmente, nem sequer sabe que estou vivo, ou que os meus pais morreram. Não tenho a morada dela.

– Oh, que pena!

– Quanto tempo terei de ficar aqui? – perguntou Pierrot, a sua atenção atraída pelos muitos quadros e fotografias em exposição.

Na secretária, reparou numa de um homem e uma mulher, sentados em duas cadeiras com um grande espaço entre si, e com umas expressões tão sérias que ele perguntou a si mesmo se teria sido tirada no meio de uma discussão; sabia, só de olhar para eles, que eram os pais das duas irmãs. Outra fotografia, no canto oposto da secretária, mostrava duas pequenitas de mão dada com um rapaz ligeiramente mais novo, no meio de ambas. Na parede, uma terceira fotografia, o retrato de um jovem com um bigodinho estilo lápis, envergando uma farda do exército francês. A fotografia fora tirada de perfil, por isso, da forma como estava pendurada, o rapaz olhava pela janela, para os jardins e além deles, com uma expressão de saudade no rosto.

– Muitos dos nossos órfãos acabam por ser postos em boas famílias um ou dois meses depois de nos terem chegado – disse Adèle, sentando-se no sofá e fazendo um gesto a Pierrot para que se sentasse ao seu lado. – Há tantos homens e mulheres maravilhosos que gostariam de começar uma família, mas que não foram abençoados com crianças suas; outros, por gentileza e caridade, querem simplesmente mais um pequenito ou pequenita nos seus lares. Nunca deves subestimar quão gentis as pessoas podem ser, Pierrot.

– Ou quão cruéis – murmurou Simone, atrás da secretária, e Pierrot olhou para ela, surpreendido; mas ela não olhou para ele.

– Tivemos algumas crianças que estiveram connosco apenas alguns dias ou semanas – continuou Adèle, ignorando o comentário da irmã. – E alguns ficaram um bocadinho mais, claro. Mas, uma vez, um rapazinho da tua idade foi-nos trazido de manhã e à hora do almoço já tinha ido embora. Quase não tivemos oportunidade de o conhecer, pois não, Simone?

– Não – respondeu Simone.

– Como é que ele se chamava?…

– Não me lembro.

– Bom, não importa – disse Adèle. – O que importa é que não conseguimos prever quando é que alguém encontrará uma família. Pode acontecer-te a ti o mesmo que aconteceu àquele outro rapazinho, Pierrot.

– São quase cinco horas – respondeu ele. – O dia está a acabar.

– O que eu quis dizer…

– E quantos é que não chegam nunca a ser adotados? – perguntou.

– Hm? Como dizes?

– Quantas crianças nunca chegam a ser adotadas? – repetiu ele. – Quantas ficam aqui a viver até serem grandes?

– Ah! – exclamou Adèle, o seu sorriso esmaecendo um pouco. – Bem, é difícil falar em números, claro. Acontece, ocasionalmente, claro que acontece, mas duvido muito que venha a acontecer-te a ti. Porquê? Ora, porque qualquer família ficaria encantada por te ter! Mas não nos preocupemos com isso agora. Seja a tua estadia aqui curta ou longa, tentaremos torná-la o mais agradável possível. Para já, o importante é que te instales, conheças os teus novos amigos e comeces a sentir-te em casa. Talvez tenhas ouvido algumas histórias sobre coisas más que acontecem em orfanatos, Pierrot, porque há umas pessoas horríveis que contam histórias terríveis, para não falar daquele horroroso senhor inglês, chamado Charles Dickens, que nos deu má fama com as suas histórias, mas podes ter a certeza de que nada de sinistro se passa no nosso estabelecimento. Gerimos uma casa feliz para todos os nossos rapazes e raparigas, e se em algum momento te sentires assustado ou sozinho, só tens de nos vir procurar, a mim ou à Simone, e nós teremos todo o gosto em te ajudar, não é, Simone?

– Normalmente, a Adèle é bastante mais fácil de encontrar – respondeu a irmã mais velha.

– Onde é que vou dormir? – perguntou Pierrot. – Tenho um quarto só para mim?

– Ah, não – disse Adèle. – Nem sequer eu e a Simone temos um quarto só nosso! Isto não é o Palácio de Versalhes, sabes?! Não, aqui temos dormitórios. Dormitórios separados para rapazes e para raparigas, claro, por isso, não precisas de te preocupar. Cada um deles tem dez camas. O quarto para onde vais agora está, de momento, um nadinha mais silencioso que o normal, porque vais ser apenas o sétimo habitante. Podes escolher qualquer uma das camas vagas. A única coisa que te pedimos é que, quando tiveres escolhido uma, fiques sempre nela. Torna tudo mais fácil no dia da lavandaria. Todas as quartas-feiras à noite tomarás um banho, embora – e aqui ela inclinou-se para a frente e farejou um pouco o ar – talvez fosse melhor também tomares um hoje, só para tirar o pó de Paris e o lixo do comboio. Estás um pouco cansado, querido. Nós levantamo-nos às seis e meia, depois há o pequeno-almoço, escola, almoço, mais um bocadinho de escola, depois brincadeira, jantar e cama. Vais adorar estar aqui, Pierrot, tenho a certeza. E nós faremos o nosso melhor para te arranjar uma família maravilhosa. É o que este trabalho tem de engraçado, estás a ver? Adoramos ver-vos chegar, mas ficamos ainda mais felizes quando vos vemos partir. Não é, Simone?

– Sim – concordou Simone.

Adèle pôs-se de pé e convidou Pierrot a segui-la, para poder mostrar-lhe o orfanato; mas, quando ele se encaminhava para a porta, reparou em qualquer coisa que brilhava dentro de um pequeno armário de vidro e dirigiu-se até lá, para ver. Encostou a cara ao vidro e, quando viu um círculo de bronze com uma figura no centro, pendurado por uma fita em tecido vermelho e branco, até trocou os olhos. Uma placa de bronze estava pregada na fita e tinha inscritas as palavras Engagé Volontaire. Na base do armário, havia uma pequena vela e outra fotografia, mais pequena, do homem com o bigodinho, sorrindo e acenando de um comboio que arrancava da estação. Pierrot reconheceu imediatamente a plataforma, porque era a mesma em que ele desembarcara vindo de Paris, naquele dia.

– O que é isto? – perguntou, apontando para a medalha. – E quem é este?

– Nada que te diga respeito – disse Simone, pondo-se de pé, e Pierrot desandou imediatamente, um tanto nervoso, ao ver a expressão séria no rosto dela. – Em nenhuma circunstância deves tocar nisso. Adèle, leva-o para o quarto dele. Já, se fizeres o favor.