Outras arrebentações

UM

O narrador dos livros de Marcelo Mirisola não é radical. Nada aqui é levado às últimas consequências ou tratado a ferro e fogo. Mesmo suas obsessões, sem dúvida o motor da escrita, são muitas vezes reduzidas a pequenas diatribes que não chegam a constituir um desarranjo mais forte. Não é o caso de dizer que seus textos (estou tratando não apenas de Notas da arrebentação, mas de todos os livros) são mornos ou sem nenhuma inquietude. Um dos maiores achados de Mirisola é fazer com que, o tempo inteiro, a ten­são que o narrador anuncia seja frustrada por uma série de procedimentos algo surpreendentes. O principal deles é a capitulação. Depois de desdenhar e ridicularizar tudo, o nar­rador capitula e revela que deseja (ou aceita) o que diminuía. Se não tanto, ao menos nunca tem força para enfrentar seus fantasmas. Os hipotéticos revoltados que de início se identi­ficam com o narrador não sabem o tombo que vão levar.

O maior valor dessa prosa não está na invenção da tra­ma, na arquitetura das personagens ou no arranjo original dos temas. A grande arte dos livros que culminam em No­tas da arrebentação é a engenhosidade de um narrador que astutamente existe para nos dar uma ilusão de força e depois nos frustra com uma apoteótica capitulação.

Um dos melhores contos de Mirisola, que apanha com justeza todos os seus procedimentos, está no livro de estreia, Fátima fez os pés para mostrar na choperia. “Adeus Rua Butantã”, entre enumerações e laços afetivos reduzidos a mesquinharias, constrói-se a partir do atrito do narrador que, a princípio, recusaria todo tipo de banalidade (filho no carro indo para a praia, casa de praia com a família, família e amigos, amizades e certa cordialidade relaxante), mas que o tempo inteiro a aceita e, às vezes, se reduz perante ela: “Que minha crueldade é mais uma bobagem”. O narrador não consegue fazer frente ao que de fato critica até que, na última frase do livro, abre o jogo: “Quer dizer... pra mim tá legal”. Desistir perante tudo (ser vencido sempre e expor a própria covardia) é a mais marcante característica do narrador de Marcelo Mirisola. Não é à toa que ele continuamente põe fogo na casa e muitas vezes conversa com um filho que acabou não nascendo.

Estamos diante de um narrador que perdeu.

DOIS

O narrador de Marcelo Mirisola não é pornográfico nem erótico. Talvez seja obsceno, muito embora, no que diz respeito ao corpo e às relações afetivas, nem mesmo esse termo seja muito adequado.

O que há nos quatro livros anteriores e neste é a aparição obsessiva de um vocabulário que, se arranjado de outro modo, constituiria uma possível intenção pornográfica. Do jeito como as peças estão dispostas, porém, temos apenas a enumeração inconclusa de genitálias e alguns dados que transformam o que se anunciava como sexo em uma espécie de negociação falha e mesquinha entre dois corpos. O mesmo narrador que deseja o que não consegue criticar transforma o fato sexual em uma espécie de diálogo de ce­gos: quando um quer escândalo, o outro mergulha em um afeto primário. O caso mais sintomático disso é o aconteci­mento que abre a segunda parte de Bangalô: a obsessão con­tra o presumido homossexualismo de seu senhorio (cons­truído a partir de um vocabulário viciado) termina com o narrador se submetendo a algo que, segundo ele mesmo, seria tipicamente homossexual. Na verdade, nem o sexo nem qualquer tipo de preconceito (contra mulheres ou ho­mossexuais) chegam a se realizar. O narrador capitula antes.

Portanto, não é seguro — a despeito de qualquer pista falsa que o autor ou a mídia possam lançar — identificar a obra de Marcelo Mirisola à de Henry Miller ou aos escrito­res da geração “beat”. Para esses autores, o sexo funciona em muitos aspectos como um mecanismo de liberdade social ou de autoafirmação.

O narrador de Mirisola, por sua vez, enfileira o voca­bulário sexual para esvaziar-lhe completamente o significa­do. No lugar em que talvez surgisse o prazer, ou mesmo a perversão, está apenas o universo mesquinho da incapaci­dade de fazer frente aos inimigos. Não há a menor possi­bilidade de existência de algo próximo a sexo para um nar­rador como esse.

TRÊS

No entanto, o narrador de Marcelo Mirisola é, sem dúvida, cruel. Nos textos, há uma espécie de pequenina tortura (não poderia ser grande, é claro) para o leitor mal-acostumado a criar expectativas, a se identificar com o narrador ou a sentir repugnância. Como nada se confirma até a revelação de que ele não irá levar coisa alguma às úl­timas consequências e está disposto a entregar-se pelo que antes parecia valer muito pouco (ou frequentemente na­da), todo tipo de conclusão termina frustrada, a menos que o leitor, o que é muito improvável, perceba a mesqui­nharia que move o narrador. Mesmo assim, aliás, seu prin­cípio artístico estaria em pé: se for precoce, o desvendamento do narrador impede o jogo de tensões que sustenta cada um dos textos e, mais cedo ainda, frustra qualquer possível realização. A segurança artística da obra de Mar­celo Mirisola faz par à sua engenharia cruel e quase não encontra similar nos autores que estrearam nos últimos quinze ou vinte anos.

Tal grau de realização é derivado, ainda, de uma pertur­bação que atinge os diversos meios da literatura: há aqui, oculta nos tantos entraves toscos e obsessivos, uma espécie de ética da leitura. Criando expectativas ou posicionando-se com relação ao narrador, o leitor, como vimos, termina­rá frustrado. Se descobrir o jogo, mesmo assim não terá para onde fugir. A conclusão é simples: não se pode esperar algo do narrador.

Qual seria então o pacto adequado para se debruçar sobre os livros de Marcelo Mirisola? Não esperar nada de­les e, consequentemente, abandonar a leitura? Aí está uma possível identificação com a covardia do narrador.

Talvez não pactuar, o que não soluciona exatamente o problema: de um jeito ou de outro, o leitor terá que se aproximar desses livros para se constituir, justamente, como leitor. Se for assim mesmo, não há fuga para a mesquinharia e o artista, criador desse círculo vicioso, venceu.

QUATRO

Um dos fatores mais difíceis de estimar na prosa bra­sileira contemporânea é o grau de politização de seus nar­radores. A década de 80, que abrigou autores vindos dire­tamente da experiência da ditadura militar, sem dúvida fez aparecer um bom número de títulos em que a politização do narrador, às vezes indireta, mas sempre incontornável, era um aspecto decisivo na constituição do texto. A partir de então, algo curioso ocorreu: ainda que a questão não es­teja resolvida em seus diversos aspectos (no Brasil, até hoje não conseguimos sequer conhecer os arquivos da ditadura), a prosa simplesmente parece ter abandonado o passado re­cente e, sem maiores constrangimentos, voltou-se em gran­de parte dos lançamentos para uma espécie de reprodução pretensamente realista de seu próprio momento. Saltamos para fora da linha do tempo. Como efeito, nossa prosa aca­ba sendo muito distinta da dos outros países da América do Sul. Não é gratuito, e muito menos desligado dessa questão, que a Argentina tente levar seus torturadores à Justiça e o Chile assista a seu algoz, Augusto Pinochet, dançar entre uma liminar e outra.

Como não há nenhum tipo de tensão (seja de conti­nuidade ou de ruptura), é impossível que se estabeleça, em quaisquer termos, uma nova geração literária entre nós. O que existe é um curioso movimento de apropriação de al­gum espaço e muito vocabulário, anteriormente utilizados, sobretudo, pela crítica, por autores que, decididos a se render de vez ao mercado, desejam também manter certa pre­tensão de arte de vanguarda. Resulta daí uma notável banalização do vocabulário crítico.

Obviamente, o atual momento pós-política (aguarda­mos ansiosamente pelo nosso pós-modernismo...) favorece o aparecimento e a valorização de autores incapazes de alguma reflexão: ninguém abandona sem razão — e sem sofrer as consequências — o seu próprio passado.

CINCO

Trocando em miúdos, é fácil notar como boa parte da nossa prosa contemporânea, despida de possibilidades crí­ticas, termina banalizando o ato de refletir. Como é impos­sível construir qualquer indagação sem compreender as próprias estruturas, o que aparece na maior parte das ve­zes é ou a repetição de velhos modelos (caso, por exemplo, do que se convencionou chamar curiosamente de “violên­cia de Rubem Fonseca”), ou o pastiche da linguagem pretensamente oral, em alguns casos, e jornalística, em outros. De qualquer maneira, a tensão reflexiva que a melhor arte precisa causar termina arrefecida pela banalização de seus modelos e recursos.

Os escritores que não embarcaram nessa onda, se não se constituem como novidade, ao menos produzem textos relevantes. É o caso de Marcelo Mirisola, cujo narrador, a todo o momento, tenta descobrir o que aconteceu com os anos 70 e 80. O narrador d’O azul do filho morto foi obri­gado a “curtir o desbunde dos 70’s trancado numa Escola Experimental para filhos de nazistas endinheirados”.

De jeito nenhum, o papel da história recente nesses li­vros é o de explicar o presente. Pelo contrário, ela é o tempo inteiro a angústia de um narrador que não se compreende e muito menos se instala: “1983, por aí. A turminha da Júlia Lemmertz fodia e engravidava em Os Adolescentes. Eu que­ria morrer de vergonha. Um dia fumaram maconha dentro da mesma televisão em que eu via meus desenhos animados. Me recusei a ler o livro do Marcelo Rubens Paiva. Tam­bém não vi a peça, nem fui ao cinema”. Aqui, a desistência do narrador é um pouco mais sutil do que a mera covardia de alguns outros trechos: no caso, a recusa a — ou a impos­sibilidade de — procurar um lugar no tempo faz da histó­ria, em movimento contrário, o próprio espaço de recusa.

SEIS

Como dado de curiosidade, vale notar que muitas ve­zes esse narrador foi taxado de preconceituoso. Ora, é im­possível achar o menor traço de preconceito em um dos li­vros de Marcelo Mirisola. Evidentemente, não porque seu narrador esteja disposto a promover atitudes nobres. A ex­plicação é coerente: qualquer preconceito, para se constituir, precisa de uma conclusão torpe, mas linguisticamente orde­nada. O pior do preconceito é o arcabouço que o envolve e tenta justificá-lo. Não há espaço para arcabouços constituí­dos na obra de Marcelo Mirisola. De novo, cabe lembrar que tudo o que temos são anúncios que irão se frustrar. Aqui, o próprio preconceito se desintegra pelo medo que o narrador tem de se completar.

Por outro lado, cabe pensar se a banalização que iden­tificamos em parte da prosa brasileira não conduziria a al­gum tipo de preconceito. Como há uma pasteurização ideológica, decorrente do lugar que a repetição de modelos usurpou à reflexão, é impossível que esses livros consigam justificar algum novo conceito. O que surge, então, é o enfileirar exaustivo de alguns temas (cujo desvelamento é sim­ples e trágico: os pistoleiros são toscos e violentos, a juven­tude usa drogas, a classe alta está corrompida, o sexo virou item de agenda e somos todos canalhas) que terminam sempre aceitando a interpretação corrente sobre eles mes­mos. Ocorre, portanto, uma pré-conceitualização do obje­to que será matéria de arte.

A consequência mais destrutiva de certo tipo de prosa que se estabeleceu no Brasil nos últimos anos é a fi­xação de alguns preconceitos que ajudam a cristalizar a miséria brasileira. A prosa de Marcelo Mirisola é uma aposta contra essa arte banal.

SETE

Também banalizada, a forma na prosa brasileira con­temporânea tornou-se outro conceito cujo significado cor­rompeu-se pela incapacidade reflexiva dos autores que o adotaram como um bordão. Em momentos extremos, che­gou-se mesmo a cunhar, banalidade por excelência, a ex­pressão “transgressão formal”. Forma é um conceito que, por conta do empobrecimento de seu significado, precisa ser retrabalhado ou, na pior das hipóteses, colocado um pouco em descanso. Atualmente, cita-se a forma literária como se ela fosse uma espécie de material de laboratório: alguns autores, por exemplo, acreditando trabalhar com inovações formais, ajuntam cartas a contos, reúnem frag­mentos jornalísticos e às vezes redigem pastiches de diários. Com isso, aumentam as pistas de que não conhecem exata­mente a arte que estão tentando praticar: acreditam estar trabalhando com “forma”, quando simplesmente fazem cer­ta confusão de gênero literário. Enfim, este é um dos pon­tos de crise vivenciados atualmente.

É possível que muitos desses autores, apropriando-se de um vocabulário que não dominam para chegar ao mer­cado protegidos por uma carga semântica antes utilizada pela crítica, mas agora remodelada — e esvaziada de sentido —, estejam trabalhando conscientemente para instituir-se com esse enfileirar de palavras que já não significam nada. Mas isso importa muito pouco. O que realmente interessa é observar que essa falta de sentido cria um objeto com pre­tensão artística que apenas obedece a pressupostos publici­tários, mas que, efeito pernicioso, empobrece o diálogo e dilui a prática artística. E para uma sociedade de analfabe­tos como a nossa, cada palavra e cada nuance de significa­do deveriam valer ouro.

OITO

Por isso mesmo, um autor coerente torna-se funda­mental. Marcelo Mirisola sabe que já não pode dispor do sentido integral das palavras e tem consciência de que os significados estão enfraquecidos. Prova disso é a novela “Acaju (a gênese do ferro quente)”, em que o narrador assume sua falta de sequência para trazer luz ao universo mesquinho em que a maior parte das tensões da trama se instalam.

“Acaju”, portanto, não poderia constituir-se senão pelas constantes rupturas que sustentam a novela. Uma continui­dade a mais, ou mais bem articulada, e o nonsense do cotidia­no não conseguiria se instalar. Aqui, sem a menor dúvida, a “forma literária” não se viciou, já que serve justamente co­mo estruturação e veiculação do sentido da trama. Obvia­mente, a novela não poderia ser concluída com algo dife­rente de um crime — ato também banalizado na prosa bra­sileira contemporânea.

O crime, para Marcelo Mirisola, é justamente a confir­mação de um fracasso: é preciso barrar qualquer coisa antes que ela se complete. O desencanto afetivo, portanto, não se deixa completar totalmente por conta da mesquinharia do narrador, que age ainda uma última vez para encerrar o que tentava constituí-lo: o veículo de sua miséria sentimental.

NOVE

Apesar de ter inspirado uma verdadeira legião de imi­tações e se tornado uma espécie de ícone para todo tipo de atos que se autodefinem como de revolta, reação ou transgressão, o narrador de Marcelo Mirisola não se presta muito à imitação: trata-se de uma obra de arte terminal. Aliás, qualquer tentativa de continuidade, por mais bem copiada que seja, cai no erro de procurar uma extensão justamente para o que não pode se constituir. Se Marcelo Mirisola traz à tona uma mesquinharia que não se deixa completar, como se pode tentar continuá-lo?

A literatura mais ou menos conhecida como subjetivista, variante da prosa jornalística (já que é reportagem do próprio umbigo), em nada se aproxima do narrador de Marcelo Mirisola. Obviamente, o final do século XX e o início do XXI não se assustam muito com jovens drogados ou bêbados, ouvindo música e se sentindo abandonados pelas ruas escuras das grandes metrópoles. Outra banalização do desencanto. Para encontrar o narrador em questão é preciso compreender o sentido de sua ruptura e reconstruir os pedaços dessas incompletudes. A tradição em que Marcelo Mirisola se instala é aquela que remexe os sentidos artísticos para intervir no pacto de ficção. Não se trata, portanto, de coisa de bêbado ou de adolescente usando drogas para fazer tipo de rebelde.

DEZ

A obra de Marcelo Mirisola apresenta uma unidade notável: com exceção de uns poucos contos, todos os seus livros trazem o mesmo narrador. Desde a estreia, os proce­dimentos formais são os mesmos. Mirisola utiliza à exaus­tão as frases curtas, com pouca ou nenhuma subordinação, aliando-as às vezes ao recurso da enumeração e, outras, a flashes de memória ou fluxos verborrágicos de obsessões (como uma filha não nascida, a casa pegando fogo ou os bu­racos que o narrador vive cavando). Também são muitos os cortes e raciocínios que não se completam, os travessões que indicam diálogos que não chegam a ser travados. Pode-se falar em arte de interrupção.

Para o leitor que deseja sentir prazer, ódio ou tomar esses livros como manifestação de revolta, não há nada mais distante: sem completude, não pode haver possibilidade de redenção ou de alívio em um narrador como esse. Também não é possível sentir ódio dele. Qualquer sentimento forte — amor ou ódio, revolta ou passividade — descarta-se de imediato. Estamos no campo das mesquinharias, das desis­tências precoces e dos desejos incompletos. Ainda precisa­mos de radicalismo, mas nossa melhor arte já tem o contrá­rio dele.

ONZE

A unidade formal dos cinco primeiros livros de Marcelo Mirisola sem dúvida compõe um trabalho literário ambicioso. Tal­vez as pequeninas obsessões de cada um dos textos estejam a serviço de uma outra, maior e em nada covarde, cujo ob­jetivo pode ser o de criar um “exército” de capitulações. Logo que consegue, o narrador desiste de criticar as peque­nas ambições da classe média, os amores de conveniência e as relações sociais compostas de máscaras e fingimentos. Ele deseja tudo isso.

A ironia, para Marcelo Mirisola, não tem a menor im­portância. Nada em seus livros está dito para significar al­guma outra coisa. Nem poderia: se resolvesse ser irônico, o narrador exigiria do leitor uma operação a mais. Sua obses­são não pode abrigar esse tipo de recurso sob o risco de per­der a força.

Ou os entraves, ou a ironia. Marcelo Mirisola escolheu os primeiros, com toda a consciência de que não poderia exigir do leitor a procura por algo que não surja cristalinamente no texto.

Se quisermos ser coerentes (uma opção, mas de jeito nenhum uma obrigação!) com o narrador desses livros, não podemos interpretá-lo a partir de nenhum ponto que fuja de sua obsessão por desistir. A propósito, podemos pensar que esse desejo de capitulação — eu me repito para ser coe­rente — é justamente o combustível de movimento do nar­rador. Como uma viúva que se veste continuamente de pre­to para continuar vivendo seus dias de luto.

DOZE

O monólogo “Luto”, que compõe com “Rio pantográfico” os dois melhores textos de Notas da arrebentação, muito embora reúna diversas de suas características, não pode ser tomado como amostra fiel da obra de Marcelo Mirisola. Feito diretamente para o palco, “Luto” não abre espaço para o confronto do protagonista com o mundo. Pelo contrário, o monólogo já se inicia com a confissão direta da derrota, o que retira o atrito que causava boa parte da tensão narrativa. Equívoco comum em autores de pro­sa que se arriscam no teatro, Marcelo Mirisola não traz para o palco procedimentos formais que só funcionariam no conto ou no romance, o que seguramente é outra pista de sua altíssima consciência formal. “Luto”, assim, repre­sentaria bem apenas aquela segunda parte do edifício cria­do por Mirisola: o fosso.

O protagonista de “Luto” sente “uma saudade filha da puta das bobagens” da televisão. Se estivéssemos no domí­nio da prosa, certamente antes de admitir isso ele teria ten­tado ridicularizar todas essas bobagens. No monólogo não há espaço para nenhuma tentativa de crítica ou de ridi­cularização, até porque, como outra obsessão, o protago­nista não deixa de avisar ao público que sua morte está próxima. Nesses momentos de forte emotividade, aliás, o autor faz concessões ao afeto: no próprio enterro, ele ima­gina um amigo dando “dois socos cristãos na madeira” do caixão. É verdade que a imagem é clichê, mas funciona com perfeição, já que a peça inteira se sustenta através da saudade que o protagonista sente dos velhos clichês que enchem sua memória.

Não é à toa que perto do final Mirisola lance mão de outro lugar-comum: o soco de Pelé na Copa do México. Cheios de esperanças em 1970, perdemos feio e dentro de casa mesmo. Para essa literatura, perder é lugar-comum.

TREZE

O engenho literário de Marcelo Mirisola seria falho se tanto sua operação de desqualificação quanto o mote da saudade fossem levados às últimas consequências: haveria radicalismo, o que estragaria a constituição de uma literatura travada. É o afeto, mal colocado e cheio de timidez, que não permite o mergulho até o fundo. O narrador acaba se enternecendo com o que antes desqualificava. Daí, portan­to, o largo uso da figura infantil, muitas vezes tomada como única hipótese de salvação.

Do mesmo jeito, apesar dos fragmentos, das frases in­terrompidas e dos raciocínios abortados, o narrador aqui jamais permite que haja qualquer desarticulação (e nem um instante de incoerência) no discurso. Os lugares-comuns e o vocabulário muitas vezes tosco — “inhaca”, “treco” etc. — servem justamente para manter o discurso sob ameaça de desarranjo semântico. A desordem, porém, nun­ca chegará.

Não se pode falar, no caso, em redenção de significa­dos. Mas há certa ética cristã, baseada no valor da identifi­cação afetiva e simbolizada muito sutilmente pela imagem da criança. Talvez seja muito, também, pensar em esperan­ça. É possível que, como a redenção, ela não tenha muito espaço para esse narrador. Mas sem dúvida um motor pre­serva, muito precariamente, a ordem das coisas: é a força afetiva do narrador. Nesse ponto, inclusive, deve começar a procura por um possível lirismo que talvez esteja, em ger­me, na obra de Marcelo Mirisola.

QUATORZE

Qual seria a força de intervenção da literatura de Mar­celo Mirisola? A primeira delas, e talvez a mais notável, é a reabilitação da figura do narrador. Trabalhando constante­mente com os mesmos recursos formais, Mirisola de novo coloca na ordem do dia a carpintaria literária, um pouco abalada entre nós pelo boom da prosa de tom jornalístico — quase sempre tematizando a violência urbana — que explo­diu nos últimos anos. Não se pode falar, aqui, em qualquer tipo de neorrealismo: embora estejam por toda parte, as personagens de Mirisola não nos esperam na esquina com um revólver na mão. No caso, a miséria se apresenta como a covardia de não enfrentar o que parece pernicioso.

Resta em tudo isso uma ética mais abrangente do que aquela relacionada à leitura ou a que liga surpreendente­mente esses livros a algo de natureza cristã. Essa terceira éti­ca, que ultrapassa as outras duas, depende justamente do narrador que obsessivamente chama a atenção para si mes­mo e para a sua covardia: ela pretende que o texto tenha como principal referência o seu próprio centro. No entan­to, como não é possível, como vimos, qualquer espécie de pacto com o narrador, não adianta partir atrás desse centro. Ou melhor, adianta, mas ele nunca vai ser encontrado: a ética tem como consequência justamente essa eterna pro­cura por um significado que, mesmo estando no centro do texto, escapa dele.

Tal movimento cria uma reflexão. Aí está o que torna a literatura de Marcelo Mirisola uma obra de arte notável: diante dela o leitor precisa se mover para encontrar seus significados. É um discurso que, portanto, transforma o mundo.

QUINZE

“O narrador é a forma em que o Justo encontra a si mesmo.”

Walter Benjamin