O que se convencionou chamar de conflito com o “real” não é o aspecto mais importante dos livros de Bernardo Carvalho. No entanto, vale a pena estimar o que pode significar o termo “real” ou seu derivado mais comum, “realidade”, na discussão da obra do autor de Onze. Resistindo à tentação de escapar para o jocoso, mas enxergando a necessidade talvez urgente de fugir do banal, é preciso sublinhar que, se acaso Carvalho estiver “questionando a realidade”, é impossível não concluir que seus textos abrem espaço para um diálogo, de um jeito ou de outro, com ela. A consequência é simples: a “realidade” estaria ameaçada pela revelação de suas diversas incoerências — já que estamos falando do autor de Teatro. Quem aceita algo assim acredita que a “realidade” só poderia ser compreendida se trouxesse consigo coerência, clareza, ordem e previsibilidade. Não é possível considerar uma conclusão como essa. Se, por outro lado, tomarmos a palavra “real” por algum significado relacionado ao conceito de história, e acaso for intenção fazer um questionar o outro, teremos que aceitar uma espécie de purificação da linguagem, deixando de lado questões ideológicas e, mais ainda, meramente semânticas. Trabalhando em gêneros diferentes e falando para auditórios no mais das vezes distintos, literatura e história não estão em campos separados e muito menos devem ser contrapostas para refutar-se ou se desdizer. É provável, inclusive, que o termo “realidade” já não tenha, ao menos por enquanto, muito a dizer para esses dois campos do discurso. No caso do praticado por Carvalho, o que salta aos olhos é um notável trabalho com o narrador.
O discurso de Bernardo Carvalho é formado a partir do encadeamento de alguns blocos que vão criando camadas narrativas coerentes quando vistas separadamente, mas cuja junção abala o sentido imediato. Pode-se falar em justaposição de digressões. Para sustentá-las, Carvalho apresenta um narrador seguro, direto e muitas vezes convencido da verossimilhança de suas situações. Quando surge o bloco seguinte, a mesma estrutura narrativa está recoberta por novas seguranças e verossimilhanças que, se confrontadas com o trecho ou digressão anterior, entram em xeque. Não cabe aqui a imagem do jogo de xadrez: não há qualquer luta por espaço ou significado privilegiados entre os blocos. O que torna os textos de Carvalho notáveis é a naturalidade com que todas as verossimilhanças se juntam, uma questionando a outra, para compor um universo móvel. Pode-se pensar em pequenas placas tectônicas. O toque de arte, nesses textos, consiste no acúmulo das placas. Cada uma delas não representa perigo, já a justaposição sempre deixa o leitor de sobreaviso. Se não é o de xadrez, o jogo análogo aqui é um quebra-cabeça menos popular e de regras móveis: a torre de Hanói. Trata-se de um passatempo em que três hastes paralelas são unidas por uma base onde descansam cinco peças de pesos diferentes. O desafio é passar essas peças de uma haste à outra, até que uma nova torre se componha, sem nunca colocar um peso maior sobre outro menor. Descoberto o caminho, é costume buscar outras variações: pode-se jogar ao contrário, colocando um peso maior sobre um menor, empilhar dois intermediários ou fazer o mais pesado ser a base do mais leve. É possível pular de dois em dois, também. São inúmeras as combinações, e o jogo não pode existir sem elas. A arte de Carvalho consiste em unir fatores e pesos diferentes; o resultado depende sempre do número e da natureza das associações.
As personagens de Bernardo Carvalho estão sempre atravessando fronteiras. Além disso, não são raras as vezes em que a língua materna acaba substituída por outra. A movimentação ajuda a sedimentar o artifício da placa narrativa, muito embora nem sempre o cruzamento de uma divisa, ou a substituição de um idioma, corresponda a uma troca de perspectiva narrativa. O interesse do recurso é o de ressaltar o trânsito. Em Teatro, uma personagem empreende uma viagem de retorno à terra de onde seus pais teriam fugido algumas décadas antes e abandona o idioma a que estava habituado para compreender melhor certos acontecimentos que lhe perturbam. É como se apenas o movimento pudesse trazer alguma possibilidade de compreensão. Aparece com facilidade uma das razões da opção pelo empilhamento de verossímeis: o trânsito — e assim o acumular de narrativas — traz a possível coerência. Bernardo Carvalho é um bom escritor justamente porque cria um narrador que não pode existir através de nenhuma outra forma que não seja a que está nos seus livros.
Antes de continuar o exame de seu narrador, no entanto, pode ser produtivo especular por que este tipo de ocorrência (a única que cria a grande literatura) é tão rara entre nós. A princípio, é fácil observar que parte considerável de nossos autores, falando dos contemporâneos, é pouco dotada de capacidades reflexivas, o que lhes impossibilita uma forma adequada para seus narradores. A explicação, porém, é insuficiente: é preciso estimar até que ponto a banalização do conceito de forma resultou em uma espécie de narrador cego, aquele que tropeça em qualquer degrau. A resposta, que revela muito mais que a falta de reflexão de muitos de nossos escritores, está na rápida motivação que temos para afastar qualquer sinal de crise. Sem ela não há confronto com a ordem e nenhuma possibilidade de trabalho formal.
As personagens de Bernardo Carvalho estão sempre em crise: por isso movimentam-se tanto. Em Nove noites, o próprio motor da trama — a misteriosa morte do antropólogo Buell Quain — ocorre durante um deslocamento. Não necessariamente cada uma dessas movimentações conduz o leitor de uma placa narrativa à outra. Trata-se de mais um dos procedimentos formais utilizados pelo autor. Já estamos em condições de citá-los: o empilhamento de diferentes narradores em situações e questões distintas e nem sempre coerentes entre si e, assim, uma ilusória aproximação de contrários, a grande presença de personagens em crise, normalmente em desarranjo com o lugar onde estão ou a língua de determinado ambiente e, por fim, um inevitável hábito de movimento — estamos de fato diante de narradores móveis. Não é acaso que boa parte das frases de Carvalho está em ordem direta e se articula bem mais por coordenação do que por subordinação. Subordinações demais acabariam articulando os significados em um mesmo plano: o discurso se torna menos sujeito a crises. O encadear de coordenações ajuda a comprovar nossa hipótese de acúmulo de verossímeis.
Pode-se dizer que a crise das personagens de Bernardo Carvalho faz par com a dificuldade que alguns de seus blocos narrativos têm para se aproximar de outros. Ainda que os planos apareçam lado a lado no discurso, o salto de um para outro é difícil e arriscado. Os melhores livros de Carvalho trazem enormes fissuras. Em Nove noites o narrador que inicia o livro e que se distingue do resto do texto pelo itálico, no início deixa a impressão de ser testemunha preparando o olhar de alguém que, quem sabe, procuraria Quain, a personagem principal. É como se um segredo sofresse a inevitabilidade de, cedo ou tarde, revelar-se. Esse narrador chega a dizer que tivera contato com alguns índios pouquíssimo depois do momento em que eles teriam encontrado o corpo de Quain. A certa altura, algumas das placas desse narrador passam a enunciar um tipo de diálogo com um interlocutor que nunca se constitui: pode ser um dos outros narradores, um extrato de correspondência (já que parte da trama constitui-se por uma troca de cartas cujo conteúdo nunca saberemos), alguém que o estivesse ouvindo ou o próprio leitor. A segurança desses momentos é enorme: “Você quer saber o que o doutor Buell fez na aldeia”. As afirmativas confirmam o conhecimento da vontade dos outros narradores. No entanto, logo surge outra placa narrativa, que dilui a segurança anterior, sempre com muita verossimilhança e coerência: “O que eu sei é o que ele me contou e o que imaginei. Você sabe de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei saber. É só por isso que me dou o trabalho de contar o pouco que sei”. No final, na última vez que o narrador em itálico aparece, surge uma placa com nenhuma segurança. Trata-se de uma alusão ao movimento: “Somos todos cães de beira de estrada, pegos de surpresa, sem entender que é sempre o momento errado de atravessar”. Nas fissuras está a chave da obra de Bernardo Carvalho.
Morrer é fazer um movimento. São inúmeras as vezes em que o narrador de Carvalho confronta-se com a morte. Às vezes ela vem a partir de algum assassinato misterioso; outras, surge por meio de um massacre, como tiroteios ou até mesmo ataques a bomba e atentados; e algumas vezes, ainda, a morte é inexplicada e acompanha-se por um enigma. Entre tantas, uma das mortes mais curiosas é a que constrói o narrador do conto “Amigos e inimigos (ou nova quadrilha)”, publicado primeiro em jornal e depois em O mundo fora dos eixos. Escrito em óbvio tom jocoso, o conto apresenta-se como uma espécie de reprodução de nota à imprensa, em que um político comunica a morte de alguns presos durante uma rebelião. A alusão a Drummond explica o narrador do conto menos do que a escolha de alcunhas ridículas para nomear os marginais: Mário Coca-cola e Jonas da Baleia são dois dos que se matam entre si. O conto é rápido e entrelaça subordinações a coordenações, enquanto vai envolvendo o leitor — sempre a partir do vocabulário, e nunca através da situação, afinal de contas, banal — em um universo em que a morte é apenas uma piada: chegou a haver, para brecar a matança, até mesmo a intervenção de certa Igreja da Simetria Celestial. Carvalho ironiza a tendência jornalística de vários de nossos escritores, muito ligados à temática da violência nua e sem mediações. Não pode haver metáfora mais gasta, para o Brasil, do que um assassinato violento praticado por um pistoleiro boçal. A utilização, em outro tom, da morte amplia a questão: perdura aqui a opção pelo narrador verossímil que aproxima lugares comumente distintos: morte e humor.
Não resta nenhuma dúvida (e é até um pouco chato ter que dizer) que qualquer utilização de linguagem constitui um ato político. A mania que a maior parte dos autores brasileiros contemporâneos tem de ressaltar a independência estética de seus trabalhos artísticos diz mais respeito a certa ingenuidade intelectual, e também a uma possível, mas nem sempre consciente, opção política, do que às particularidades do ato literário. Não existe, sem nenhuma possibilidade de exceção, um narrador que seja apolítico e muito menos é possível colocar o tal “ato estético” à frente, ou atrás de qualquer outra questão. Para dizer com clareza: não existe estética que seja autônoma de uma enormidade de decorrências, sociais, históricas, políticas, retóricas e ainda muitas outras. Rende muito para o debate literário, por sua vez, estimar qual o papel político — e, portanto, estético — dos nossos narradores; o que não significa, evidentemente, dizer que eles refletem, esse e aquele, de um jeito e de outro, a nossa realidade. O que os narradores fazem, com tanta força quanto for a felicidade de sua concepção, é influir na organização das formas, transformando-as constantemente para, de maneira indireta, mas efetiva, influir na ordem dos discursos, na manutenção de algumas metáforas e no descarte de outras e, consequentemente, na alteração da maneira de agir e pensar o mundo. Ao criar uma forma organizada por placas, aproximando verossímeis distintos e alimentando enormes possibilidades de movimento, Bernardo Carvalho formalmente cria novas metáforas que adiantam o narrador brasileiro um passo além do fragmentarismo praticado durante a última ditadura militar e o momento de reabertura política. Já podemos transitar de um fragmento a outro: sem dúvida uma atitude formal decisiva para nossa anterior falta de perspectivas. É por isso, por fim, que, no seu caso, estamos diante de uma excelente obra de arte.