Juventude sem muita aspiração

O dia em que o cão morreu, primeiro romance de Daniel Galera, volta agora às livrarias, em nova edição impulsionada pelo lançamento do filme inspirado no texto. O livro se resume ao trabalho com o narrador, como se tornou hábito na literatura brasileira contemporânea. De fato, nossos melhores textos trazem o narrador para o primeiro pla­no, confirmando a tendência de certa pesquisa formal que só nos trará benefícios se continuar sendo aprimorada. No entanto, em O dia em que o cão morreu, a construção estilística tem contí­nuos e enormes problemas.

Até o penúltimo capítulo, o narrador é um rapaz que tenta passar a impressão de antisso­cial, meio misantropo, revolta­do, machista e com pouco ou ne­nhum interesse pelo mundo que o circunda. Acertadamente, o autor seleciona um vocabulário adequado a essa imagem, até que de repente o rapaz vai apa­nhar inesperados “acepipes” (sic) na geladeira. Ainda que cul­to, o narrador não economiza nas já tradicionais palavras de baixo calão, mas surge então um “istmo” (sic) de carne no seu cor­po. A confusão estilística que o descuido vocabular gera chega ao auge na página 55: o narrador acompanha a namorada em um jantar na casa do motoboy que a atropelara; a reunião será rega­da a cerveja, maconha e filme pornográfico, com o consequen­te vocabulário adequado; no en­tanto, o narrador sente certa repulsa ao “sabor repelente de glutamato monossódico” (sic). Con­venhamos que para quem se ser­ve de “uns restos de rango”, a precisão química do exemplo ci­tado é, no mínimo, estranha...

Esse é um dos traços que im­pedem o narrador de se fixar, dando a impressão de um texto sem acabamento. O livro ainda desliza em sucessivos clichês, cujo ponto alto está no discurso que faria entrever a famosa e ho­je esgotada solidão do homem moderno. Como se sabe, o senti­mento foi literariamente forma­lizado por Baudelaire e trabalha­do à exaustão pelos autores da modernidade heroica.

O clichê máximo do livro é a tentativa de compor certa juventude sem grandes aspirações, ela também um dado já ultrapassado — mas não, é verdade, na parte da literatura brasileira contemporânea que insiste em não enxergar o que de fato im­porta no mundo de hoje. Mesmo isso, porém, não funciona no livro, já que a depressão do narrador é bastante feliz e se traduz em largas doses de cerveja e passeios velozes na garupa do motoboy descabeçado. Assim é fácil demais ficar deprimido.

De fato não há muito a dizer sobre O dia em que o cão morreu. Não desaconselho a leitura do livro, de maneira nenhuma. Ao contrário, ele serve como uma espécie de amostra dos inú­meros problemas que abatem a nossa prosa nos últimos anos.

Em abstrato, o principal de­les é a repetição de questões históricas já superadas que in­sistem em retornar de manei­ra bastante diluída. O cansa­ço da modernidade, por exem­plo, que construiu obras de ar­te do porte do Ulisses, de Ja­mes Joyce, ou de O homem sem qualidades, de Robert Musil, retorna em versão bastan­te diminuída sem muita ceri­mônia, como se nada tivesse acontecido depois. Sobre a ju­ventude sem muita aspira­ção, J. D. Salinger e James Dean já deram conta. E entre o tempo deles e o nosso, mui­ta coisa mudou: basta lem­brarmos de Seattle.

Pode-se argumentar que há certa simplicidade em muitos de nossos escritores, o que é verdade. Mas tam­bém não posso deixar de no­tar que a tentativa de fixação de questões sem nenhum las­tro mais profundo tem um nome significativo: marke­ting. É esse o mal de parcela significativa da literatura brasileira contemporânea.