Chegou às livrarias um livro fundamental para a compreensão do momento delicado que vive a cultura brasileira: Palavras-chave, do romancista e professor universitário Raymond Williams. A ideia do professor de Cambridge e autor de romances brilhantes como O povo dos montanhas negras (nas grandes universidades escrever ficção e lecionar não são atividades que se excluem) é ao mesmo tempo simples e engenhosa: Williams listou algumas palavras decisivas para o vocabulário da cultura e investigou a utilização delas em diversos momentos históricos diferentes.
O pano de fundo é a óbvia constatação de que o significado das palavras é manipulado conforme os interesses dominantes, muito embora isso seja quase imperceptível. A palavra “capital”, por exemplo, evoluiu de um termo técnico utilizado em todos os sistemas econômicos para a ordem economicamente dominadora. Williams não perde detalhes que passam distantes do senso comum: a palavra “classe”, por exemplo, viu seu significado modificar-se quando começou a ser utilizada também no plural. O livro, assim, é uma espécie de glossário ensaístico que os amantes dos dicionários poderão usar como fonte de etimologia histórico-ideológica. Por sua vez, os interessados em crítica cultural com certeza vão se inspirar na inteligência detalhista de Williams. Para esses últimos, recomendo o brilhante verbete “intelectual”, urgente para o Brasil.
No entanto, acho mais interessante e produtivo procurar entender por que muita gente vai, de imediato, recusar um livro brilhante como esse: Williams era marxista. Muito embora sejam bastante flexíveis, alguns dos verbetes deixam essa posição visível. A recusa aos principais estudiosos marxistas do século passado já está trazendo consequências graves para a cultura brasileira.
Como se sabe, a chamada New Left procurou, enquanto eram conhecidos os terríveis crimes do mundo socialista (os do capitalismo sempre foram mais claros...), encontrar novos caminhos tanto para a leitura de Marx quanto para a instalação do pensamento como um momento de crítica radical da sociedade. Para isso, tiveram coragem de enfrentar velhos paradigmas e reler diversos clássicos da filosofia. De novo, Palavras-chave pode servir de inspiração: Williams registra como ninguém o percurso desses diversos significados.
Infelizmente, no Brasil contemporâneo Marx continua sendo lido como era trinta anos atrás, o que causa no mínimo dois desastres: os conservadores, cada vez mais presentes no mundo cultural, ganham de presente diversos argumentos para tentar provar a falta de atualidade do filósofo — e ganha a selvageria contemporânea do capital; e, do mesmo jeito, nada de criativo, nem na universidade nem no debate mais amplo, aparece. Com Walter Benjamin, entre outros, infelizmente acontece a mesma coisa.
Obviamente, o capitalismo já deu um passo além da New Left, tornando necessária a reatualização de significados que não respondem mais à nova ordem. Ou fazemos isso, ou o conservadorismo vai de fato tomar conta da reflexão no Brasil. É imperativo, então, afirmar que a leitura antiquada de Marx que insistentemente vem sendo feita entre nós — e a consequente recusa das leituras novas — é conservadora. De novo o livro de Raymond Williams é decisivo: vivemos um momento de modificação paradigmática no Brasil que, por não estar sendo observado convenientemente, acaba causando situações até ridículas, como o vexame que diversos intelectuais têm protagonizado ultimamente sobre a violência brasileira.
Parte dessa mudança opera por meio da transformação do significado de algumas palavras, justamente o fenômeno observado em Palavras-chave. Alguns exemplos são pouco graves, como a transformação de sentido da expressão “literatura marginal”: antes o que era uma produção alheia ao mercado das editoras agora entrou nesse mercado como a produção cultural da periferia. Outras palavras, porém, sofreram alteração mais séria: no âmbito da literatura, ainda, modificou-se um tanto o sentido de “geração literária”.
Uma modificação decisiva operou-se no significado da palavra “esquerda”, que há mais de uma década vem sendo manipulada por profissionais da publicidade. A própria expressão “conquista social” mudou de sentido e hoje acabou apartada do verbo “lutar”, muito por responsabilidade dos próprios intelectuais brasileiros de “esquerda”, que não conseguiram, em grande parte, se atualizar, e, portanto, não entendem o sentido de outra expressão: “organização não governamental”.
Enfim, para voltar aos eixos e talvez observar melhor o mundo contemporâneo (e então conseguir intervir novamente), a reflexão brasileira talvez deva percorrer caminho análogo ao observado e realizado por Raymond Williams e se renovar. O primeiro passo pode ser a resistência ao conservadorismo. Vai ser difícil, claro: quem, por exemplo, aceitará pensar em outro Marx, outro Benjamin, talvez um novo Adorno? Enfim, quem, para além do marketing, está de fato interessado em mudar as leituras antigas para, com mais pretensão, mudar o mundo? O começo pode estar no exame das Palavras-chave.