A dificuldade para resenhar o segundo livro de José Agrippino de Paula, Panamérica, cuja terceira edição sai agora pelo simpático selo Papagaio, não está exatamente na preocupação com o que deixar de fora do comentário, mas sim na consciência de que, quaisquer que sejam as opções tomadas pelo resenhista, o que faltar será tão importante quanto o que for discutido. O perigo é ainda maior quando se trata, como é indiscutivelmente o caso, de um autor que foi um dos ícones de uma geração e que agora é apresentado a outra.
Para não perder completamente o aspecto histórico, pode ser interessante registrar que o primeiro livro de Agrippino, Lugar público (a publicação também está prometida pela Papagaio), chegou às livrarias em 1965. E, ainda quando a população não tinha assimilado completamente o que significava o golpe do ano anterior, já trazia fortes críticas às políticas implementadas pelos militares. Dois anos depois Agrippino lançaria Panamérica, voltando a criticar, agora ainda mais enfaticamente, o regime instalado em 1964. É preciso, nem que for para fazer uma pequena homenagem ao autor, aplaudir sua coragem.
Panamérica constrói-se por uma série de blocos narrativos, aparentemente descontínuos, descritos por uma misteriosa primeira pessoa que nunca se revela por completo. Ao lado de tal narrador, indo e vindo conforme as situações se sucedem, aparecem nomes como Harpo Marx, But Lancaster, Joe di Maggio, Elisabeth Taylor e Marilyn Monroe, com quem, aliás, ele passa boas páginas na cama. Esses e outros nomes, contudo, não podem ser considerados personagens, ao menos no sentido tradicional do termo, já que servem apenas, e sempre muito de passagem, para dividir com o narrador as sucessões de aventuras que ele, sem qualquer espanto, vai protagonizando: ora é o soterramento de duas centenas de atores em um mar de gelatina e a guerra contra fetos cor-de-rosa que surgem do útero de Marilyn Monroe; ora é a luta pela sobrevivência em meio a uma tempestade de frango assado ou o voo em órgãos sexuais alados.
O leitor atento, contudo, não deixará de perceber o tom onírico — bem notado no prefácio do físico Mário Schenberg — que percorre as páginas do livro. As situações vão rapidamente se sobrepondo umas às outras, muitas vezes tendo como única identidade a primeira pessoa que se mantém em todas elas.
No transcorrer do sonho literário de Panamérica, o narrador dorme continuamente com Marilyn Monroe, tem contato com as principais estrelas do cinema de então, mas termina assistindo à explosão de Hollywood, deixando uma pequena pista de que talvez o considere dispensável, já que o substitui, depois de uma competição em que duas estrelas tentam superar-se e devorar centenas de bois assados, pela Cineccitá. Aliás, o narrador também mata, com um tiro bem dado, o adido militar norte-americano, encarregado de cuidar dos golpes de estado na América do Sul.
Aos poucos, seres agigantados, inclusive algumas estrelas de cinema, vão atacando a população e destruindo as cidades. Antes de mergulhar no enorme caos, o narrador aceita a insinuação de uma menina de dez anos e, sugestivamente prostituindo-a, acompanha-a até em casa, onde encontra a irmã da garotinha, um pouco mais velha, na companhia de Frank Sinatra, que nem sequer terminara de abotoar as calças. Por fim, nem Dom Quixote consegue dar conta do caos que se instala e o livro termina com a História e seus personagens perdidos e vagando no espaço, de onde podem ver a Terra.
Seria interessante tentar entender o que o livro Panamérica significou no final da década de 60, quando foi lançado. As pistas são inúmeras e claras: gigantes da cultura de massa envolvem-se em massacres, as estrelas do cinema hollywoodiano parecem tomar conta de tudo, funcionários do Dops perseguem o narrador e a guerrilha aparece em vários momentos. Mesmo consciente da importância de tal enquadramento histórico, parece-me irresistível ler o texto de Agrippino à luz da sociedade contemporânea, agora que Hollywood não foi mesmo soterrada e todos sabemos que os adidos militares fizeram muito bem o seu trabalho.
Para o leitor atual, os gigantes podem bem ser reconhecidos no que chamam de nova ordem, ou globalização, ou o que quer que se esteja discutindo em Seattle, Davos e Quebec. O caos já está muito bem instalado e ninguém mais se espanta com notícias de escravidão e prostituição infantil. Mesmo assim, mais ou menos do mesmo jeito que Agrippino fez algumas décadas atrás, grupos de anarquistas, de punks e de adolescentes com a roupa rasgada e o cabelo azul, todos sem uma identidade muito definida, reúnem-se para dizer que as coisas não estão no caminho certo. Panamérica serve perfeitamente como uma das armas para quem está cansado da ordem que arranjaram para o mundo e quer lutar por outra.