Redescobrindo um ícone dos anos 60

A dificuldade para resenhar o segun­do livro de José Agrippino de Paula, Panamérica, cuja terceira edição sai agora pelo simpático selo Papagaio, não está exatamente na preocupação com o que deixar de fora do comentário, mas sim na consciência de que, quaisquer que se­jam as opções tomadas pelo resenhista, o que faltar será tão importante quanto o que for discutido. O perigo é ainda maior quando se trata, como é indiscuti­velmente o caso, de um autor que foi um dos ícones de uma geração e que agora é apresentado a outra.

Para não perder completamente o aspecto histórico, pode ser interessan­te registrar que o primeiro livro de Agrippino, Lugar público (a publica­ção também está prometida pela Papa­gaio), chegou às livrarias em 1965. E, ainda quando a população não tinha assimilado completamente o que significava o golpe do ano anterior, já trazia fortes críticas às políticas implementa­das pelos militares. Dois anos depois Agrippino lançaria Panamérica, vol­tando a criticar, agora ainda mais enfa­ticamente, o regime instalado em 1964. É preciso, nem que for para fazer uma pequena homenagem ao autor, aplau­dir sua coragem.

Panamérica constrói-se por uma sé­rie de blocos narrativos, aparentemen­te descontínuos, descritos por uma misteriosa primeira pessoa que nunca se revela por completo. Ao lado de tal narrador, indo e vindo conforme as si­tuações se sucedem, aparecem nomes como Harpo Marx, But Lancaster, Joe di Maggio, Elisabeth Taylor e Marilyn Monroe, com quem, aliás, ele passa boas páginas na cama. Esses e outros nomes, contudo, não podem ser consi­derados personagens, ao menos no sen­tido tradicional do termo, já que ser­vem apenas, e sempre muito de passa­gem, para dividir com o narrador as su­cessões de aventuras que ele, sem qual­quer espanto, vai protagonizando: ora é o soterramento de duas centenas de atores em um mar de gelatina e a guer­ra contra fetos cor-de-rosa que surgem do útero de Marilyn Monroe; ora é a lu­ta pela sobrevivência em meio a uma tempestade de frango assado ou o voo em órgãos sexuais alados.

O leitor atento, contudo, não deixará de perceber o tom onírico — bem notado no prefácio do físico Mário Schenberg — que percorre as páginas do livro. As si­tuações vão rapidamente se sobrepon­do umas às outras, muitas vezes tendo como única identidade a primeira pes­soa que se mantém em todas elas.

No transcorrer do sonho literário de Panamérica, o narrador dorme conti­nuamente com Marilyn Monroe, tem contato com as principais estrelas do ci­nema de então, mas termina assistindo à explosão de Hollywood, deixando uma pequena pista de que talvez o consi­dere dispensável, já que o substitui, de­pois de uma competição em que duas es­trelas tentam superar-se e devorar cen­tenas de bois assados, pela Cineccitá. Aliás, o narrador também mata, com um tiro bem dado, o adido militar norte-americano, encarregado de cuidar dos golpes de estado na América do Sul.

Aos poucos, seres agigantados, inclu­sive algumas estrelas de cinema, vão atacando a população e destruindo as ci­dades. Antes de mergulhar no enorme caos, o narrador aceita a insinuação de uma menina de dez anos e, sugestiva­mente prostituindo-a, acompanha-a até em casa, onde encontra a irmã da garotinha, um pouco mais velha, na compa­nhia de Frank Sinatra, que nem sequer terminara de abotoar as calças. Por fim, nem Dom Quixote consegue dar conta do caos que se instala e o livro termina com a História e seus personagens per­didos e vagando no espaço, de onde po­dem ver a Terra.

Seria interessante tentar entender o que o livro Panamérica significou no fi­nal da década de 60, quando foi lançado. As pistas são inúmeras e claras: gigan­tes da cultura de massa envolvem-se em massacres, as estrelas do cinema hollywoodiano parecem tomar conta de tudo, funcionários do Dops perse­guem o narrador e a guerrilha aparece em vários momentos. Mesmo conscien­te da importância de tal enquadramen­to histórico, parece-me irresistível ler o texto de Agrippino à luz da sociedade contemporânea, agora que Hollywood não foi mesmo soterrada e todos sabe­mos que os adidos militares fizeram muito bem o seu trabalho.

Para o leitor atual, os gigantes podem bem ser reconhecidos no que chamam de nova ordem, ou globalização, ou o que quer que se esteja discutindo em Seattle, Davos e Quebec. O caos já está muito bem instalado e ninguém mais se espanta com notícias de escravidão e prostituição infantil. Mesmo assim, mais ou menos do mesmo jeito que Agri­ppino fez algumas décadas atrás, gru­pos de anarquistas, de punks e de adoles­centes com a roupa rasgada e o cabelo azul, todos sem uma identidade muito definida, reúnem-se para dizer que as coisas não estão no caminho certo. Pa­namérica serve perfeitamente como uma das armas para quem está cansado da ordem que arranjaram para o mun­do e quer lutar por outra.