Como a resistência se fez pela literatura

Os grandes autores dos países afri­canos de língua portuguesa ofe­recem, sem dúvida nem exagero, um dos melhores exemplos de que não é possível separar a forma literária de seus desdobramentos históricos e, portanto, políticos — por mais que muitos dos pró­prios autores e críticos digam o contrário. E Pepetela, que divide com Luandino Vieira o lugar de maior prosador de An­gola, talvez seja o caso perfeito para discu­tir isso. A trajetória do autor de Mayombe reflete bastante bem o percurso de uma literatura que saiu da resistência para ga­nhar o cânone literário, com tudo que isso possa ter de bom e de ruim.

Do grupo armado de resistência à colonização, Pepetela passa pela famo­sa Casa dos Estudantes do Império em Portugal, chega ao exílio na França e na Argélia atinge cargos no governo ango­lano, depois um lugar na universidade e, por fim, é confirmado pelo prestigioso Prêmio Camões.

Pepetela nasceu em Angola, em 1941, quando a região ainda era uma das últimas colônias portuguesas, situação que só mudaria em 1975, depois de uma luta sangrenta e tão enlouquecedora e patéti­ca como era a cabeça do ditador Oliveira Salazar, responsável pela manutenção das colônias.

Ainda jovem, Pepetela vai estudar em Portugal e, na própria metrópole, toma contato com o ambiente intelectual com­pletamente absorvido pela luta contra a ditadura, os ideais da década de 60 e a consciência de que as colônias não po­diam ser mantidas, até porque não ca­biam mais no novo contorno que se dese­nhava para o mundo.

As aventuras de Ngunga, o primeiro livro de Pepetela, foi escrito enquanto o autor lutava pela libertação de Angola, no interior do MPLA. Mimeografado, o livro foi distribuído para os guerrilhei­ros com o objetivo tanto de animá-los para a luta quanto de lhes oferecer um descanso inteligente e agradável. Dessa maneira, o estilo cunhado por Pepete­la reflete absolutamente a ideologia da guerrilha ou, dizendo de outro jeito, torna-se, ele mesmo, uma parte da luta de libertação.

O livro (publicado no Brasil na antiga coleção “Autores Africanos”, da editora Ática, atualmente esgotado) descreve de maneira razoavelmente lírica o aprendi­zado marxista de um garoto, enquanto ao mesmo tempo idealiza a geografia da região que o MPLA dominava. A obra foi utilizada depois nas próprias escolas do movimento e acabou, adiante, sendo pu­blicada em edição comercial.

Mayombe, o segundo romance de Pepe­tela, continua a saga dos textos redigidos para os guerrilheiros do MPLA. Do mes­mo jeito, o livro tem certo tom didático, muito embora traga uma espécie de tenta­tiva de sublimação da utilidade imediata, sobretudo através da técnica narrativa: os narradores se alternam, as próprias pessoas do discurso variam e há certa relativização de valores, com os ideais da guer­rilha sendo às vezes questionados, muito embora acabem obviamente prevalecendo.

Fazer o narrador alternar é de fato um dos procedimentos que Pepetela adota para criar a trama: já que a guerrilha será examinada, e o desejo do autor-guerrilheiro é que ela vença, é preciso preparar o terreno para a atuação futura, quando o MPLA chegasse ao poder, outro termo, a propósito, bastante questionado no livro. O narrador que varia, portanto, pretende legitimar as diversas vozes, arma que Pe­petela tem para recomendar que o MPLA adote a pluralidade quando estiver à fren­te do governo de Angola. A conclusão é obrigatóra se observarmos que o livro foi redigido e circulou no contexto da guer­rilha. O narrador alternante é, aliás, ma­téria da forma romanesca que constituiu a modernidade (outra é o narrador volúvel).

Pepetela, assim, submete a estrutura de seu texto a uma outra ordem, ainda mais sutil: a vitória da guerrilha signifi­caria a passagem de Angola de um lugar colonizado para outro organizado a par­tir de vetores contemporâneos. A forma literária, nesse caso de maneira clara, in­tervém politicamente. O contrário tam­bém é verdadeiro.

Com a revolução de Abril de 1975 em Portugal, Angola se torna um país inde­pendente e o MPLA assume o poder. In­felizmente, nenhum dos ideais da forma romanesca de Pepetela (que, a propósito, participa do governo durante alguns anos) tem espaço e o governo decreta o regime de partido único. Após a guerra de liber­tação, há outra de caráter civil que envolve o governo contra a Unita e o FNLA, dois outros grupos guerrilheiros. O país, assim, não tem um minuto de paz e uma luta sangrenta, que envolve inclusive crianças, toma espaço nos anos seguintes.

Pepetela não foi o único escritor a pe­gar as armas do MPLA. Seu membro mais ativo, que depois se tornou o primei­ro presidente de Angola, Agostinho Neto, também era um poeta importante, de dic­ção brechtiana, com uma poesia que alter­na elementos da cultura local com traços de forte crítica. A valorização do elemento local se choca com a violência da situação em uma grande musicalidade que fortale­ce o conflito: “Muito sol/ e a quitandeira à sombra/ da mulemba./ — Laranja, minha senhora/ laranjinha boa!/ A luz brinca na cidade/ o seu quente jogo/ de claros e es­curos/ e a vida brinca/ em corações aflitos/ o jogo da cabra-cega.// A quitandeira/ que vende fruta/ vende-se”.

A poesia de Agostinho Neto transmite o medo imposto nas noites angolanas pela perseguição política (ele que foi exilado várias vezes) e de vez em quando atinge metáforas finas, como no poema “Civili­zação ocidental”, cujo título entra em cho­que com o conteúdo dos versos, trazendo o peso da matéria que parece ir às costas do homem africano. Alguns versos são curtos, chegando ao limite da sílaba po­ética única, e outros longos, formalizando o choque que o poeta tenta criar para que seu poema se torne uma máquina eficaz de intervenção política.

Na maior parte das vezes, porém, os procedimentos formais de Agostinho Neto se esgotam na criação do choque. Certamente há momentos de sofisticação em sua poesia, mas nenhuma figura vai além da aproximação de contrários, ou, no máximo, do enriquecimento da cor local por musicalidade ou aproximação de línguas nativas com o português. Mesmo isso, ainda, fica no plano do choque. O próprio governo de Agostinho Neto não dirimiu a violência e instigou a luta arma­da no território angolano, tornando-se a única força política oficial.

A resistência africana se manifestou através da poesia também em Moçambi­que, sobretudo, com José Craveirinha, esse de fato um poeta que conseguiu criar um estilo particular para intervir no contexto africano. Considerado por muitos o principal poeta africano de língua portuguesa, Craveirinha, como Pepetela, rece­beu o prêmio Camões e já foi traduzido para diversos idiomas — ainda que não tenha nenhum de seus livros publicados no Brasil, fato, aliás, que se repete com Agostinho Neto. Há, no entanto, uma excelente antologia de poemas de José Craveirinha publicada no número cinco da revista Via Atlântica.

A poesia de Craveirinha adota normal­mente o verso livre e branco para, sem tro­cadilho, dar espaço à temática do racismo e da colonização. Muitas vezes o eu lírico se transforma em seres inanimados, per­sonificando ou a natureza, ou até mesmo lugares urbanos, como a rua. Seus textos às vezes são irônicos e outras, bastante bem-humorados, elementos que não estão pre­sentes na poética de Agostinho Neto.

Craveirinha adota no vocabulário a mistura de idiomas (chegando ao limite de nomear um de seus livros de Karingana ua Karingana), mas mesmo esse procedi­mento é tomado em tom irônico pelo uso constante de vocábulos em língua inglesa, sempre utilizados de maneira a denun­ciar o contraste de culturas e o predomí­nio de uma sobre as outras. A nota sutil é a utilização do inglês para simbolizar o idioma dominante, que na verdade no caso de Moçambique seria, em primeiro lugar, o português. O procedimento, se lido em chave abstrata, mostra a intenção de evidenciar a temática da colonização como uma presença universal, manifesta em outra escala na África. Aliás, é corren­te na poesia de Craveirinha a busca por uma espécie de solidariedade das vítimas, manifesta, por exemplo, na famosa trilogia de poemas que escreveu em 1982 para protestar contra o outro bombardeio do Líbano feito pelo exército de Israel. Vale a pena citar os primeiros versos de “Terra de Canaã”: “Não, piloto israelita./ Inútil procurares nos incêndios de Beirute/ E nos inocentes corpos mutilados pelos es­tilhaços ardentes/ As belas palavras do Cântico dos Cânticos./ E voa mais bai­xo./ Desce velozmente mais baixo no teu caça-bombardeiro./ Voa mais baixo. Des­ce ainda mais baixo piloto hebreu”.

A violência sofrida pela população co­lonizada africana, por fim, aparece muitas vezes como um elemento perturbador do cotidiano (resgatando, em posição evi­dentemente diversa, a poética de Manuel Bandeira, de que Craveirinha deve ter lido tudo). O curto poema “Trouxa de 8 couves” resume isso: “Sra. D. Josefina Amélia dos Prazeres Santos Tembe/ viajando no tejadilho do calhambeque ‘Chapa 1007 ia à cidade de Maputo vender/ uma trouxa de 8 couves / quando aquele frufru/ da ra­jada não deixou”.

O melhor romance de Pepetela, Pará­bola do cágado velho, refere-se diretamen­te ao contexto da guerra civil que abateu Angola depois da independência, mas já discutindo o legado das longas batalhas que, na trama do romance, estavam che­gando ao fim. Antes disso, porém, vale a pena citar ainda três outros livros publica­dos no Brasil (ressalto que o presente texto não pretende discutir toda a obra ficcional de Pepetela, mas apenas indicar alguns caminhos de análise): A gloriosa família, Jaime Bunda — agente secreto e A geração da utopia. Todos os três, em diferentes graus, evidenciam a luta do autor por se instaurar em um imaginário cânone literário e, con­sequentemente, trazem à tona a problemá­tica que a literatura africana levanta.

A gloriosa família é um romance histó­rico em que Pepetela tenta articular a pre­sença holandesa à portuguesa e aos africa­nos, em um visível esforço para formular, mesmo que esboçadamente, algum tipo de sentimento de nação. Para tanto, recria ficcionalmente a trajetória de uma famí­lia, a partir da voz de um escravo, entre 1642 e 1648. A leitura é penosa, às vezes inverossímil e outras, maçante. O final do livro indica que a redação foi concluída em 1997. A informação é do autor e não pre­cisamos acreditar nela. O que é fato é que, datando o livro do final do século XX, o autor deixa escapar que pretende oferecer sua leitura quando ele próprio já é um es­critor aceito pelos meios literários oficiais.

O livro na verdade transpira um vi­sível esforço de satisfazer a crítica, já que o paradigma da formação nacional é o que conduziu a mesma crítica — falando inclusive da brasileira — que tornou Pepetela um grande autor. Obviamente, um instante de observação faz ver que não se pode utilizar o mesmo conceito europeu de nação (ou latino-americano) na África: a guerra civil de Angola arrefeceu não faz nem cinco anos e a própria constituição do pensamento nacionalista no continente conduziu a verdadeiras catástrofes huma­nitárias, cujo ápice foi o terrível confronto entre tutsis e hutus, em Ruanda, no caso, resquício do sentimento nacionalista que a colonização belga quis impor àquele ter­ritório. Infelizmente, a crítica literária que se debruça sobre a literatura produzida na África não conseguiu ainda perceber isso.

O fiasco romanesco de Pepetela con­tinua com Jaime Bunda — agente secreto. O livro conta a história de um desastra­do policial que passa os dias se metendo em intermináveis encrencas, enquanto se enreda no sistema totalmente degradado da organização política angolana. Mesmo que transcenda um pouco o mero besteirol, o livro simplesmente copia a forma pisada e repisada da sátira. É engraçado, de fato, mas também decepcionante, so­bretudo porque não inova na forma e con­tinua o esforço por colar-se a uma maneira já estabelecida de fazer literatura.

No entanto, o esforço de Pepetela por satisfazer a crítica fica claríssimo em A geração da utopia, aliás, o melhor dos três livros. O romance descreve a trajetória da geração que, passando por Portugal, mergulhou na luta pela independência de Angola. Mesmo que a estrutura romanesca sustente uma trama interessante, que em nenhum momento torna a leitura chata, toda a forma é calcada em modelos já bem digeridos pela crítica. O livro co­meça com a conjunção “portanto”, o que só mesmo uma leitura muito ingênua pode tornar um procedimento enge­nhoso: Clarice Lispector, por exem­plo, já havia começado muito antes um livro com uma vírgula...

Terminando com um mo­nólogo joyceano, depois que Bach entra em cena, Pepetela reproduz a forma consagra­da pela modernidade, mesmo depois que ela já se tornou ul­trapassada, ou ao menos pre­cisou lançar mão do pastiche e do fragmento para sobreviver. Aqui está o impasse: começan­do com livros literariamente muito eficazes, escritos para a guerrilha, Pepetela é consagra­do como um grande escritor e então passa a adotar a forma já estabelecida, até chegar a pon­to de procurar indícios de nação angolana no século XVII. O equívoco é de fundo: o próprio raciocínio de recomposição do sentimento nacionalista através da literatura, para dar certo, precisa particularizar-se historicamente, como foi feito de maneira feliz no Brasil. As­sim, não pode ser importado para outro contexto sem se constituir em evi­dente equívoco de raciocínio.

Mas aqui não vai nenhuma sugestão de que Pepetela não seja um grande escritor. Ele é, e o romance Parábola do cágado velho prova isso com muita folga. O livro reto­ma alguns mitos africanos para discutir as consequências da longa guerra civil que assolou a população do território angola­no. Aqui, o próprio conceito de nação fica diluído em meio ao contexto tribal e o que surge é um enorme conflito de gerações, recriado a partir da fusão entre a estrutura do mito e as tradicionais regras romanes­cas, que no livro terminam elas mesmas retrabalhadas para oferecer ao leitor uma ideia de cansaço, o mesmo que o longo conflito bélico trouxe ao país. O livro é o último de Pepetela a sair no Brasil e reto­ma o vigor de seus primeiros romances.

Como balanço, vale observar que a literatura africana (como a própria polí­tica do continente) vive um impasse: por enquanto, ela vem sendo lida majoritariamente a partir de pressupostos que não lhe são próprios. No Brasil, por exem­plo, ou se ouve a opinião dos próprios escritores sobre si mesmos ou então à sua obra são aplica­dos modelos que servem apenas para nossa própria tradição. Às vezes os dois equívocos são misturados, o que acaba por gerar uma espécie de imbróglio mui­to pouco reflexivo. Ob­viamente, é preciso notar quais formas particulares a literatura africana criou para se fazer relevante e importante para o próprio contexto, que, por enquan­to, muito infelizmente está sendo forjado debaixo de muita violência. A litera­tura africana relevante é de guerrilha. Sem nenhuma provocação, retirar esses escritores de seu contexto (histórico, geográfico, social, político etc.) é simplesmente dizer que sua tradição par­ticular não pode constituir forma literária notável.