Depois de alguns acontecimentos que dariam um bom argumento para um filme, o escritor Roberto Bolaño deixou o Chile e a ditadura Pinochet para exilar-se em países da América Latina. Em 1977, instalou-se na Espanha, onde, aos poucos, alcançou notoriedade até se tornar um autor respeitado. Um bom sinal do sucesso que Bolaño alcançou é o fato de Javier Cercas tê-lo colocado como personagem de ficção — nomeando-o e elogiando seus livros — no best-seller Soldados de Salamina. É Bolaño quem fornece a solução para a trama de Cercas.
Morto em 2003, aos 50 anos, Bolaño faz parte de uma nova geração de escritores latinos, em que também se destacam Raúl Rivero, Martin Kohan e Luis Gúsman, entre outros. Em comum entre eles, há o fato de serem considerados fantásticos (como autores, não como filiados à escola literária de seus antecessores, o realismo mágico ou fantástico). No Brasil, são pouco conhecidos.
Bolaño só agora começa ser lido em português. Noturno no Chile, seu único livro publicado entre nós, envolve o leitor em um monólogo algo onírico em que um intelectual chileno tenta compreender sua vida a partir das opções que fizera, enquanto acompanha a convulsão política que seu país vivenciava.
Contando a morte de um indivíduo para procurar compreender a agonia de uma nação, Bolaño escolhe o ambiente noturno para reforçar o jogo de metáforas que cria um discurso às vezes coerente, às vezes um tanto alucinado, e sempre perdido entre o trânsito de memórias que não encontram um lugar histórico para se situar com segurança. Nesse caso, a escolha pelo monólogo não poderia ter sido mais feliz: é ele e o ajuntamento de frases coordenadas que trazem para o texto a impressão de algo que não consegue, apesar do enorme esforço, compor-se. A propósito, e sem querer estragar a novidade da metáfora, recomposta para vitalizar-se, o intelectual de Bolaño foi professor de marxismo do general Pinochet.
É também do trabalho com a recriação de metáforas que surge o discurso de outro chileno pouco conhecido entre nós: Alberto Fuguet. Dele, a editora Record publicou há alguns anos Baixo astral, um romance de ritmo frenético em que um jovem assiste ao Chile do início da década de 80 “legalizar” a ditadura Pinochet. Ao contrário de Bolaño, que trabalha com personagens vindos da cultura letrada, Fuguet mergulha em um universo de drogas e sexo sem muita consequência para (re)situar a América Latina dentro do ambiente das grandes cidades e da cultura de massa. Obviamente, tanto Bolaño quanto Fuguet usam ferramentas diferentes das utilizadas pelos autores do boom do realismo fantástico: no caso, estamos diante de escritores que situam sua ficção em uma espécie de esforço de reconstrução.
É como se um novo discurso precisasse ser criado para dar conta do caos que caracteriza a história recente da América Latina. Se os autores do boom conseguiram se solidificar durante as ditaduras, esse novo grupo pretende instalar-se a partir de uma reflexão que considera a ditadura já como um dado histórico, ultrapassado, mas de jeito algum cicatrizado.
A propósito, é a partir dessas cicatrizes (que no Brasil parecem curiosamente escamoteadas para uma espécie de canto revelador de algum trauma ainda não compreendido...) que se constrói a obra de um escritor estupendo: Luis Gusmán. Autor de O vidrinho, devaneio ficcional proibido pela ditadura argentina que circulou por Buenos Aires em inúmeras edições piratas (lançado entre nós pela Iluminuras há 15 anos), e do romance Villa (publicado pela mesma editora em 2001), Gusmán é criador de um grupo de metáforas em que a violência se torna uma espécie de centro nunca alcançado.
Villa, um exemplo de felicidade formal, descreve o trabalho de um médico que acompanha torturadores que precisavam de um especialista para lhes dizer até que momento as vítimas conseguiriam suportar a violência sem perder a vida. O discurso impessoal, às vezes meramente neutro, às vezes dolorosamente obscuro, revela os desastres a que a sociedade argentina tinha mergulhado acreditando amparar-se na boia do silêncio. Se O vidrinho desarticulava o discurso pelo devaneio, Villa o reordena a partir da alusão e dos detalhes entrevistos. Gusmán utiliza artifícios em seus outros livros para compreender o difícil, mas fundamental trânsito entre história e forma artística.
É esse mesmo trânsito que sustenta a obra de outro argentino que começa a ser traduzido no Brasil: Martin Kohan. Dele, a Amauta Editorial publicou o ótimo Duas vezes junho e fez circular, em edição não comercial, o conto “Uma pena extraordinária”. No romance (por justiça, cabe ressaltar que extremamente bem traduzido por Marcelo Barbão), fragmentos de diferentes naturezas, ancorados por variações da escalação da seleção argentina de 1978, colam-se para recriar a alienação um tanto conservadora de um garoto que chega ao exército justamente quando essa corporação está procurando parâmetros para torturar com alguma segurança “científica” uma criança recém-nascida. Evidentemente, o pavoroso da situação se expõe a partir de um grotesco erro ortográfico.
No conto “Uma pena extraordinária”, cuja força acaba nos fazendo quase apelar por uma edição dos textos curtos de Kohan, um homem às vésperas de ser executado observa a linguagem com que é tratado pelas pessoas encarregadas de cuidar de suas últimas horas. De novo, a linguagem aparece no lugar em que a metáfora se renova: o discurso histórico se reescreve pelo exame irônico da forma com que as pessoas escamoteiam o absurdo que criaram para si mesmas e para os outros.
É um pouco assim, embora em chave diversa, que outro argentino, já clássico no exterior, compõe seus livros: Antônio di Benedetto. Ele é dono de um discurso tão original que seu conterrâneo Juan José Saer chegou a apontá-lo como o mais criativo de toda a literatura argentina — incluindo aí a criada por Borges. Exagero de Saer ou não, de fato Di Benedetto escreveu alguns textos bastante originais. Em Os suicidas, por exemplo, que a Globo está lançando (o elogiado Zama sai pela mesma editora no primeiro semestre do ano que vem), um jornalista no exílio sentia agonia com a chegada do aniversário do suicídio de seu pai, enquanto precisa justamente escrever sobre pessoas que, pelos mais variados motivos, terminaram tirando a própria vida. Também composto por fragmentos, o livro junta casos, recortes literários e um surpreendente monólogo onírico para chegar a um final de fato muito surpreendente. No caso, a morte é a metáfora de uma desorganização que atinge o discurso ficcional e o filosófico, reordenando a história a partir justamente do que deveria ser a sua conclusão.
Do também quase inédito no Brasil Edgardo Cozarinsky, chega às livrarias brasileiras o ótimo Vodu urbano, com apresentação de Susan Sontag. O livro, que guarda surpresas até pelo fato de ter sido em parte redigido em inglês — detalhe que não pode ser esquecido em uma leitura crítica, já que denuncia a intenção de demonstrar certa face do distanciamento que atinge as personagens —, de novo lança mão do fragmento para agora fazer o trânsito entre uma espécie de diário da banalidade de certa vida conjugal com a mesquinharia histórica da Argentina. Em um dos momentos altos do livro, Evita Perón surge para recontextualizar o casamento.
De fato, não é possível deixar de observar como esses autores, vindos de países em que a história pode se reescrever na chave do trauma, preocupam-se em tornar o contexto uma ferramenta literária, procurando assim recompor em procedimento formal o dado histórico. Não resta dúvida que é esse o recurso que os torna grandes autores.
Do México, a Amauta Editorial nos apresentou dois escritores originais: Francisco Hinojosa, autor de Nunca aos domingos, e Salvador Elizondo, cujo livro, Farabeuf, acumula alguns planos narrativos para criar uma trama em torno de uma fotografia e da história de um médico interessado em anatomia. Com o trânsito dos planos, o médico torna-se autor das fotos e protagoniza um ambiente, turvo e às vezes oniricamente sombreado, em que procedimentos cirúrgicos (o protagonista é cirurgião) se misturam a um ritual sexualmente doentio.
Nunca aos domingos, por sua vez, radicaliza ainda mais a prática do fragmento que, melhor em uns que em outros, está sendo praticada por toda a América Latina. No caso, Hinojosa acumula cem pequenos capítulos, a maioria formada por apenas uma frase, para contar a história de um assassinato. Tão inesperada quanto a forma é a reação das protagonistas. O livro se constrói todo a partir do ponto de vista do assassino, um homem de classe média entediado com sua vida. Não há, porém, nenhum tipo de procedimento de romance policial: não existe mistério algum a ser desvendado. Toda a trama se desenrola pelo sarcasmo, intensificado ainda mais pelo estranhamento das situações descritas pela forma original urdida por Hinojosa. Quando Octavio Paz previu, no Labirinto da solidão, o surgimento de uma forma capaz de dar conta dos desastres históricos que assolaram o México e culminaram na catástrofe do PRI (o partido que dominou por décadas a política local), devia estar pensando em autores como Hinojosa e Elizondo.
De Cuba, por fim, dois autores muito diferentes começam a chamar atenção no Brasil: Abílio Estévez e Raul Rivero. Do primeiro, a editora Globo publicou os romances Os palácios distantes e o premiado Teu é o reino, que conta a história de uma pequena comunidade próxima à capital Havana. Em meio a um ambiente de inércia, pequeninos incidentes vão se sucedendo para documentar que talvez algo muito relevante esteja para acontecer. O livro termina pouco antes da entrada de Fidel Castro em Havana.
O livro Os palácios distantes continua o trabalho poético que Estévez começou a planejar no romance anterior. Aqui, porém, as personagens estão em uma cidade maior e lutam para conseguir se manter ocultos em meio ao caos da realidade. Nesse caso, as rememorações e a construção de personagens que vagam pelas ruas sombrias e opressoras constroem uma imagem entre nostálgica e desencantada.
Ao contrário dos outros autores enfocados, o cubano Raul Rivero não tem a prosa de ficção como elemento central de seu trabalho. Rivero é poeta e jornalista, tendo uma reunião de suas saborosas crônicas publicadas no Brasil há pouco pela Barcarolla, com o título de Provas de contato. O livro é mesmo isso: uma espécie de painel em que o autor descreve seu encontro com diversas personagens e situações da vida cultural e política de Cuba. As crônicas dividem-se entre o humor irônico e a criação de personagens muito humanas para criticar a situação cubana.
Por conta de sua oposição pacífica, mas muito efetiva à ditadura de Fidel Castro, Rivero foi preso e despertou uma campanha internacional de intelectuais por sua libertação e também pela liberdade de imprensa em Cuba. Atualmente, o poeta vive no exílio, em Madri.