Quase tudo o que diz respeito à literatura ganhou ânimo renovado no Brasil dos últimos anos. Os prêmios se multiplicaram e alguns chegam a oferecer uma quantia generosa de dinheiro. Os eventos que unem o público aos autores e críticos acompanharam a tendência e hoje temos vários muito bem-sucedidos. O número de editoras também é razoável, antologias não param de sair, várias revistas atendem diversos interesses diferentes e os governos, creio que nas três esferas administrativas, lançam editais de apoio à publicação e tradução de livros. As compras públicas para bibliotecas já se tornaram famosas e com sorte patrocinam festas no fim de expediente de várias editoras. Também se multiplicaram os centros culturais que oferecem cursos e oficinas. Mesmo o tabu dos cursos superiores de criação literária vem sendo aos poucos superado.
No entanto, fiquei alarmado com um item do edital em que a Funarte apresenta as regras para o seu programa de bolsa de criação literária:
1.2. Os projetos concorrentes não sofrerão quaisquer restrições quanto à temática abordada dentro da sua categoria, desde que não caracterizem:
a) promoção política de candidatos e/ou partidos;
b) dano à honra, à moral e aos bons costumes de terceiros e da sociedade;
c) pornografia;
d) pedofilia;
e) discriminação de raças e/ou credos;
f) tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins;
g) terrorismo;
h) tráfico de animais.
Podemos começar a discussão pelo item b, que impõe uma rápida reflexão de teoria literária. A Funarte não aceitará proposta de textos de ficção que, em resumo, causariam “dano moral” a alguém. Como o “dano moral” é uma figura jurídica, apresentada no artigo 186 do Código Civil, ele só pode ser caracterizado depois de uma ação e do pronunciamento de um juiz.
A ação obviamente será proposta pela pessoa que alegar ter sua moral ofendida pela obra de ficção em debate. Minha dúvida é objetiva: quem será o réu? O autor de um romance cujo narrador é racista pode ser acusado de infringir o artigo 1º da Lei 7.716/89, que disciplina os crimes de preconceito de raça ou de cor?
Se um escritor for acusado de hipotéticos crimes cometidos por seu narrador, cai o pressuposto básico da ficção: o de ser uma realidade inventada. O brilhante romance As benevolentes, por exemplo, apresenta um narrador antissemita. Não é possível por causa disso concluir que seu autor, Jonathan Littel, tenha qualquer coisa contra os judeus. A diferença entre autor e narrador é ponto pacífico na teoria literária. Sem ela não haveria ficção.
Como um romance, uma novela ou um conto não se referem a qualquer coisa que tenha ocorrido (desculpando-me pela obviedade), não é possível, em nenhuma hipótese, que causem dano moral a alguém. A ideia da Funarte é um absurdo inclusive em termos jurídicos, para não falar nos mais básicos pressupostos literários.
Os outros sete itens tratam de restrições temáticas. O primeiro impede o financiamento a um texto que promoveria um “candidato e/ou partidos” políticos. O Brasil fez nascer, com a despolitização da sociedade, a ideia de que um texto redigido com fins políticos é, a priori, um mau texto. Esse enunciado, com variações, é repetido à exaustão. O que não fica claro é por quais motivos um poema para lamentar a dor de cabeça, ou celebrar os comprimidos que a aliviam, teria algum tipo de vantagem estética sobre outro redigido para mostrar como é belo o rosto de um candidato a presidente.
Meu constrangimento quanto à falta de razão do item continua: é comum em uma certa poesia, por exemplo, o vilipêndio de figuras políticas. Ora, fazer um soneto ridicularizando um determinado político é obviamente favorecer seus adversários. Parte da obra de Gregório de Matos para a Funarte não tem valor. A sátira a políticos é corrente também na ficção.
Um romance que discute o desmatamento estaria fazendo propaganda para um candidato do Partido Verde? Ao colocar em evidência suas questões, parece-me que sim. É preciso explicar para a Funarte que, incontornavelmente, todo texto tem uma ideologia. Além disso, vale ressaltar: a temática tratada não é importante para a boa realização estética de uma obra.
Os outros seis itens listam alguns temas como pornografia, terrorismo e tráfico de animais. Seria fácil listar uma série de clássicos que deixam evidente a infelicidade do edital. Mas acho suficiente lembrar que Ulysses, de James Joyce, ficou um bom tempo proibido nos Estados Unidos, acusado de uma surpreendente pornografia.
Prefiro, porém, discutir a validade de todo o item 1.2. Em primeiro lugar, não é possível concluir, por exemplo, que um livro que traga um narrador pedófilo faça qualquer apologia a esse crime hediondo. Lolita, de V. Nabokov, é outra obra literária ofendida pelo edital. Se não formos mais escrever sobre o terrorismo, o 11 de setembro acabará mal compreendido...
Além disso, cabe lembrar que o leitor de boa literatura não é uma criança desguarnecida. A depender da história biográfica do leitor, Dom Casmurro pode ser um livro mais erótico que qualquer volume assinado por G. Bataille. A estética da recepção não me deixa errar. Se juntarmos a esse argumento a básica diferença entre autor e narrador que expus no começo, a única conclusão possível para o edital da Funarte é a seguinte: uma proposta de censura.
É possível discutir a validade de qualquer financiamento à criação: apenas uma imposição de tempo (dois anos para escrever um romance em troca de certa quantidade de dinheiro) já é um entrave à liberdade, matéria-prima de qualquer artista comprometido apenas com a obra. Para encerrar, convém identificar o autor e o leitor que a Funarte entrevê ao propor um edital como esse.
O leitor ideal para a Funarte é infantil e precisa ser tutelado. Um texto sobre terrorismo irá deixá-lo assustado. É uma pessoa frágil, portanto. Aqui, todas essas conclusões são desagradáveis, mas a pior é a que está implícita: obras de arte que tematizem o uso de drogas ou a violência tornarão seus leitores violentos ou drogados... Nada mais falso. Uma pessoa não se torna mais violenta só porque vê um filme de ação. Se a arte não for tratar do que está no mundo, ou apenas observá-lo por um viés edulcorado, que tipo de efeito terá o gasto de dinheiro público usado para financiá-la? É óbvio: irá construir um Brasil sem conflitos, pacífico e livre das drogas.
É o que os políticos querem. Esse edital está comprando os artistas.
Por sua vez, que tipo de escritor a Funarte enxerga como merecedor de seu dinheiro? Aliás, do nosso... Trata-se de uma pessoa tutelável, que cumpre todo o tipo de regra descabida se em troca receber dinheiro e, pior, sem muita noção das ferramentas básicas de seu ofício.
Resta torcer para que o edital da Funarte seja apenas a manifestação da tradicional miopia (para usar uma palavra leve e pouco precisa) dos administradores do dinheiro público no Brasil. Se, ao contrário, eles estiverem enxergando bem nossos leitores, e escritores forem isso mesmo, estamos muito atrasados. De um jeito ou de outro, o financiamento da Funarte precisa ser boicotado.