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O padre Paul sentiu que mãos o seguravam e abriu os olhos. Bem na frente do seu nariz estava o rosto de um homem. Assim que ele gritou “O que você está fazendo?”, o homem o segurou pela garganta e lhe deu uma testada no rosto. Então socou repetidas vezes o rosto do padre. O padre Paul caiu como cai um fio de palha. O homem tomou os pertences do padre, roubou o dinheiro que estava guardado em um alforje em seu peito e afastou-se calmamente. Teria aquele padre enlouquecido? Dormir daquele jeito na rua, quando mal chegara a primavera?
O ladrão abriu o saquinho de seda que havia roubado. Era pesado. Enfiou a outra mão ali dentro e retirou seu conteúdo, item por item. Muitos e variados objetos emergiram, mas o mais curioso deles era uma cruz de prata. Estava gravada com letras que ele não reconheceu, e sua superfície era recoberta por desenhos delicados. Não era da Coreia. Devia ser da China ou de algum país ocidental. Por que teriam feito algo de prata naquele formato? Ele inclinou a cabeça para o lado. Não era um anel, nem nenhuma bugiganga de mulher. Havia um cordão de couro que passava pelo topo da cruz, indicando que era usada como um colar. Seja lá como for, era de prata, portanto ele poderia derretê-la e vendê-la. O ladrão colocou de lado o colar de cruz. No saquinho também havia algumas moedas de centavos, uns documentos escritos em letras estrangeiras e um livreto. Ele apanhou o dinheiro e atirou o resto das coisas na sarjeta. Sacudiu os punhos, que ardiam, com cuidado e continuou andando. Aquilo seria suficiente para lhe dar comida e alojamento por alguns dias. Estava assobiando quando virou em um beco, mas trombou com alguém. Mediu o outro homem, por força do hábito. O homem curvou a cabeça e pediu desculpas, embora a culpa não fosse necessariamente dele. Os dois trocaram olhares, mas o padre não reconheceu o ladrão, e o ladrão se tranquilizou. Observou a figura do padre começar a se afastar. Aristocrata tolo. Continuou andando com passos pesados e um sorriso de desdém, acompanhando o padre a distância. O padre subiu o morro, perguntou alguma coisa às pessoas e esfregou o rosto ferido enquanto caminhava. Passou pelos bairros chinês e japonês, depois parou na frente de um belo edifício de dois andares. Na fachada do edifício, em caracteres chineses, estava escrito “Companhia de Colonização Continental”. Centenas de pessoas pareciam estar aguardando na fila ali. O ladrão perguntou para que era aquela fila. Depois de ouvir a resposta, foi até um mercado próximo, onde comeu sopa quente e arroz. Então voltou para a Companhia de Colonização Oriental. O homem que havia perdido tudo o que tinha nas mãos do ladrão estava no fim da fila. O ladrão se sentou atrás do homem. Seus olhos se cruzaram algumas vezes, mas somente quando ele viu que o padre ainda não o reconhecera é que ele falou. O padre se apresentou como um aluno da província de Chungcheong. Quando o ladrão apontou para os ferimentos no rosto dele, o padre explicou que havia sido roubado. “Oh!”, o ladrão deu um tapa em seu joelho. Depois contou que havia muitos camaradas de mão-leve em portos abertos como Jemulpo, e o aconselhou a tomar mais cuidado. O padre, porém, não pareceu estar preocupado com as coisas que havia perdido. Simplesmente enterrou o rosto entre os joelhos e esperou que a fila diminuísse. Os funcionários da Companhia de Colonização Oriental trabalhavam diligentemente. Precisavam amontoar todos lá dentro e levantar âncora antes que o governo imperial e o ministro japonês mudassem de ideia mais uma vez. Anotavam os nomes das pessoas, o número de membros da família e as cidades natais.
— Não se preocupem — garantiam. — Os fazendeiros do México pagarão pela sua passagem, comida e roupas.
Por enquanto, eles não precisariam pagar nem um único centavo.
O ladrão, que mais tarde seria chamado de Choe Seongil, roubou as posses de duas pessoas naquela noite. Os indivíduos que visitavam uma cidade pela primeira vez ou cujos corações estavam inquietos com a ideia de partir para um lugar distante costumavam não prestar muita atenção em seus pertences. Choe Seongil ficou empolgado e pensou em partir para o México com aquela gente. Quando a ideia entrou na sua cabeça, ele não conseguiu encontrar um motivo para deixá-la de lado. “Ainda que eu consiga subir apenas um único degrau”, pensou ele, “já vai ser melhor do que ficar aqui. Se não der certo, posso voltar”.
Choe Seongil embarcou no Ilford com o padre sem ainda ter se livrado dos seus pertences roubados. O navio era mais parecido com os navios de guerra de que ele tinha ouvido falar do que com um navio de passageiros. Com certeza devia ser um dos Navios Negros, os kurofune, que irromperam no Japão e colocaram o xogunato de Tokugawa em seu devido lugar. Choe Seongil ficou de boca aberta. Gostava do poder, dignidade e autoridade do Ocidente que exalava aquele grande navio a vapor. Teve a vaga sensação de que aquelas coisas iriam protegê-lo de todos os revezes e ameaças. Até mesmo o estranho cheiro novo de alcatrão era um odor agradável. Choe Seongil entrou cheio de atrevimento no navio, como se já se sentisse um membro do Ocidente. Os tripulantes alemães, japoneses e britânicos andavam decididos de um lado para o outro no navio. Era um mundo à parte e, como o ministro sir John Gordon mesmo havia declarado, um território britânico flutuante.
Choe passou correndo na frente dos grupos vagarosos de famílias e rapidamente escolheu um bom lugar para se deitar. Ao seu lado estava um menino que ainda tinha marcas de espinhas no rosto e espiava todos os cantos da cabine escura com olhos fundos. As marcas escamosas em seu rosto traíam a sua pobreza. O ladrão imediatamente se sentiu em casa na cabine, que mais parecia as entranhas de um monstro mitológico; apanhou o cobertor que um marinheiro alemão havia lhe dado, puxou-o até as sobrancelhas e dormiu.