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Levantaram âncora. O convés estava lotado até as escadarias com gente querendo ver Jemulpo pela última vez. Era a partida pela qual eles tanto haviam ansiado. Por causa de crianças que haviam apanhado catapora, de dificuldades na emissão de passaportes e pela rígida inspeção do ministro britânico, eles haviam sido obrigados a seguir sem parar do navio ao porto e do porto ao navio durante cerca de dois meses. Agora, por fim, não havia mais distinções entre plebeus e nobres, homens e mulheres, jovens e velhos, e todos os rostos estavam iluminados. Um navio singrando os ventos e se dirigindo rumo ao vasto oceano é uma visão mais bela do que um navio ancorado. A família de Yi Jongdo, Kim Ijeong, Choe Seongil e os outros estavam todos no convés, inundados de emoção. Era um dia claro. O vento estava mais ou menos forte, mas o tempo estava lindo, com nuvens brancas navegando pelo céu azul. Os barquinhos que até então permaneceram ociosos ao lado do Ilford remavam em uníssono e recuaram para não serem tragados pelo seu rastro. Como um enorme cachorro sacudindo a água de seu corpo, o Ilford afastou tudo ao seu redor e começou a navegar em direção ao mar Amarelo. Os trabalhadores coreanos, com toalhas enroladas na cabeça, acenaram para os emigrantes no convés. Entre eles havia alguns que até o último momento tentaram embarcar escondidos no Ilford.

O assobio do vapor inglês retumbava. A fumaça preta baforada pelas suas chaminés se misturava aos ventos marítimos e deixava uma longa trilha no céu azul. Os marinheiros alemães metidos em camisas listradas executavam seu trabalho com expressão neutra. Havia uma vitalidade singular e fria nos homens que começavam e terminavam suas vidas no mar. Eles não tinham absolutamente nenhum interesse no significado social do trabalho que realizavam, mas atribuíam absoluta significância ao valor prático e sempre trabalhavam com energia. Levantar âncora, baixar as varas de pesca para apanhar peixes para comer, lavar o convés e inspecionar os cordames: tudo isso pertencia ao domínio decidido deles.

Não muito tempo depois, enquanto o porto de Jemulpo aos poucos recuava a distância, os passageiros perderam o interesse na paisagem ao redor e desceram de um em um ou de dois em dois até a cabine. Yi Jongdo permaneceu no convés por algum tempo, acompanhando com os olhos o oceano e o litoral recortado da província de Gyeonggi. Muitos dos reis de Joseon, ancestrais de Yi Jongdo, jamais haviam visto o oceano. Um empregado que fora nomeado emissário e viajara até o Japão foi chamado para uma audiência com o rei ao retornar, e o rei lhe perguntou:

Como você viajou para o Japão?

Fomos num dos navios de sua majestade.

Quantas pessoas havia em cada navio?

Cada navio transportou cerca de trinta pessoas, incluindo soldados e tripulantes. Somente então o rei perguntou, em voz baixa:

Ainda me espanta. Como pode ser que um navio tão pesado transportando tanta gente não afunde, e sim flutue sobre as águas?

Havia inúmeros reis que jamais tinham ido até o rio Han, que só se afastaram seis milhas do palácio. O empregado buscou uma maneira de fazer o rei compreender aquilo sem expor a ignorância real.

Seu humilde súdito ainda não compreende totalmente o princípio que existe por trás disso, mas os pescadores e a marinha de sua majestade o descobriram há muito tempo e dele fizeram bom uso. Posso apenas supor que a madeira leve e o alcatrão ajudem os navios.

Aqueles eram oficiais civis. Não ser capaz de compreender os princípios que existiam por trás dos instrumentos não era de modo algum motivo para vergonha. O rei e seu empregado trocaram olhares curiosos e depois se esqueceram de navios e oceanos. Agora, seu descendente Yi Jongdo descobria que estar em um navio era como andar de palanquim em um terreno pedregoso. Seu estômago já estava começando a revirar. Ele respirou fundo. O ar coreano encheu seus pulmões. No meio daquele tumulto, Yi Jongdo lembrou­-se de um poema de Du Fu, um poeta chinês, que cantava a tristeza de deixar o seu lar: “A cor da primavera nos céus corre a se desbotar, e minhas lágrimas de despedida se juntam às ondas sedosas longínquas”. Ao recitar o verso, teve a impressão de que ele falava do destino da sua dinastia, e seu coração se atormentou. Seu estômago começou a revirar cada vez mais.

Por mais que estivesse enjoado, ele não desejava descer até a cabine. Os aristocratas, os mendigos, os camponeses e as pessoas de classe baixa ficavam de olho atento uns nos outros, em meio à tensão. Como John Meyers havia dito, aquilo não era o império coreano, e sim um território britânico flutuando pelos mares. Agora era uma ocorrência diária que o populacho erguesse a cabeça com altivez para olhar desafiador para ele e sua família. Ninguém abaixava a cabeça quando ele passava, nem tampouco se afastava para o lado quando eles trombavam em algum corredor. O sistema de estratificação social coreano, que agora não passava de algo apenas implícito até mesmo na própria Coreia, sumiu sem deixar vestígios no Ilford. Yi Jongdo levantou a cabeça aos céus com coração atormentado. “Muito pequei contra meus ancestrais. Estou pagando o preço por isso.” Os aristocratas escondiam seus chapéus de crina enquanto os camponeses estufavam o peito. A fala e as escritas deles eram diferentes, portanto era possível aferir a procedência de cada um depois de trocar apenas umas poucas palavras. Yi Jongdo não demorou a perceber o quanto era imprudente insistir na sua posição privilegiada. Porém, acreditava com firmeza que isso não seria o mesmo no México. Talvez as coisas não se saíssem tão bem, mas então ele rogaria ao imperador em Seul. O imperador moeria a tinta importada de Pequim e escreveria uma carta em caligrafia esplêndida para o governante do México. Pediria com toda a educação que este salvasse seu desafortunado primo e sua família. Assim que esse pensamento cruzou a cabeça de Yi Jongdo, seu coração ficou mais leve. E os plebeus daquele navio também sentiriam com todas as forças a necessidade de haver pessoas como ele. Quando os proprietários de terras e os oficiais inevitavelmente tratassem mal as pessoas comuns, quem as defenderia e rechaçaria os opressores com palavras e cartas ríspidas? Quem mais entre eles possuía ao mesmo tempo a linhagem nobre e o conhecimento formal para representá­-los? Ele havia olhado para cada passageiro, mas não encontrara nem um único rosto familiar.

— Ah, ninguém sabe a profundeza da ignorância da gente comum — lamentou Yi Jongdo, depois desceu até a cabine. No caminho, trombou de ombro com as pessoas ao menos três vezes. Tal coisa jamais aconteceria em Seul. A última pessoa com quem ele teve tão desagradável contato foi Choe Seongil. Choe olhou ao redor como quem não quer nada. A primeira coisa que um ladrão precisa fazer é examinar o terreno. Os ladrões precisam ser mais sensíveis e diligentes do que qualquer outro tipo de criminoso. Precisam explorar a área, decidir que itens roubar, definir uma rota de fuga, garantir que não haverá ninguém testemunhando aquela fuga e inspecionar seu próprio comportamento. Essas atitudes eram quase inatas em Choe Seongil. Ninguém o havia ensinado; sabia daquilo tudo por instinto.

Ele andou pela cabine examinando as pessoas. Provavelmente não havia ninguém que pudesse adivinhar tão bem quanto ele qual a antiga ocupação e classe social dos passageiros. Ele era capaz até mesmo de estimar a quantidade de dinheiro e ouro que cada um trazia consigo com uma margem pequena de erro. Somente o homem que o atraíra até ali, o homem que carregara a cruz, era uma charada. Mas Choe já tinha roubado todos os seus bens, portanto ele não o interessava mais. Ao caminhar pela cabine, que já havia começado a feder a algo parecido com carne de cavalo podre, descobriu um bando de camaradas parecidos com ele mesmo. Como animais que reconhecem sua própria espécie pelo cheiro da urina, eles sem demora tomaram consciência da presença de cada um e trocaram olhares, concluindo uma espécie de pacto de não agressão. Tudo isso sem uma única palavra.

A maioria dos passageiros se viu assolada pelo enjoo. Deitados no chão com rostos lívidos, não faziam a menor ideia de como lidar com a sensação que experimentavam pela primeira vez em suas vidas. Por mais estranho que pareça, Choe Seongil não ficou enjoado. Teria sido um marinheiro ou pescador em outra vida? Embora balançasse ao sabor das ondas na cabine escura abaixo da linha do mar, Choe nada sentia. Ao contrário, assobiava e desfrutava do balanço do navio enquanto caminhava por ali e observava sem pressa os outros passageiros.

Aos seus olhos, eles podiam ser divididos em poucas categorias gerais. Primeiro, os aristocratas arruinados. Estes haviam perdido suas terras ou posto com as mudanças violentas que tiveram lugar depois da abertura dos portos; seus apuros eram tamanhos, que eles já não podiam nem mesmo oferecer sacrifícios aos seus ancestrais. Levavam livros para todo lado no navio e os liam para aliviar o tédio. Suas mãos eram brancas e macias, e em geral prendiam os cabelos em um coque alto e usavam faixas de crina. Aparentemente não tinham a menor intenção de se misturar à gente de outras classes da cabine, portanto apenas suportavam a situação sem dizer palavra. O auge da agonia desses aristocratas era a hora das refeições, que consistiam de um kimchi2 que na verdade não passava de sal polvilhado em repolho murcho, missoshiro aguado e arroz com outros grãos. Crendo que os outros iriam naturalmente permitir que eles fossem servidos primeiro, aguardavam em silêncio, mas a única coisa que recebiam eram zombarias. Ainda assim não eram capazes de correr à frente como porcos no cocho. Incapaz de suportar por mais tempo, um aristocrata de Cheongju sugeriu que seria mais justo se todos decidissem colocar uma ordem, então começou postando­-se na frente uma vez e nos fundos em outra. A ideia foi recebida com silêncio. A proposta em si era racional, mas os plebeus sabiam que assim que começassem a ouvir os aristocratas, eles tomariam para si o controle. Talvez fosse meio inconveniente, mas fazer fila em cada refeição era uma forma de fazer aqueles aristocratas odiosos passarem por poucas e boas. Sem outra escolha, os aristocratas foram para a fila também. Seu passo vagaroso, sua maneira de caminhar com os dedos dos pés apontados para fora, logo sumiram espontaneamente, e eles começaram a caminhar mais rápido como qualquer outra pessoa.

Em número, os camponeses eram o maior grupo. Eram caracterizados pelas mãos ásperas, rostos enegrecidos de sol, músculos fortes e corpos que pareciam os de trabalhadores chineses. Mais do que qualquer outra classe, não tinham o que reclamar da vida a bordo do navio. Uma vida em que não precisavam trabalhar e que mesmo assim a comida lhes era servida na hora certa era um sonho para eles. Nas terras, trabalhavam o ano inteiro, mas quando vinha uma seca ou enchente, tudo dava em nada e eles passavam fome até a colheita de cevada da primavera. Ainda que no ano seguinte houvesse colheita abundante, nunca sobrava nada depois que eles pagavam suas dívidas aos proprietários de terras. O México, um país onde não havia inverno, onde havia tanta terra e nenhuma gente, o que tornava as pessoas tão preciosas quanto ouro, era a terra dos seus sonhos. Afinal, a fadiga e o plantio eram iguais em toda parte.

Depois dos camponeses vinham os ex­-soldados do império coreano, como Jo Jangyun. Esses cerca de duzentos homens jovens e robustos eram o orgulho da Companhia de Colonização Continental. À primeira vista se pareciam com os camponeses, mas a maioria deles era gente da cidade que não tinha nenhuma experiência com a vida no campo. Ao contrário dos camponeses, que estavam acostumados à desordem, os soldados haviam sido criados em uma organização que adorava a ordem e a disciplina. Estavam acostumados à espera sem sentido, à fome e a ambientes hostis, e eram sensíveis aos caprichos da política. Alguns deles tinham sido membros do exército antigo que havia tomado o palácio e travado uma batalha brutal, mas não se revelaram como tais. Apoiavam a política isolacionista de Daewongun e ardiam de ira contra o Japão e as potências ocidentais, e foi por esse motivo que haviam perdido seus empregos e sido obrigados a deixar o país.

O resto eram vagabundos da cidade como Choe Seongil e Kim Ijeong. Nenhuma mulher havia embarcado sozinha. Isso não tinha sido permitido pela Companhia de Colonização Colonial, e além do mais, no clima social daquele tempo, seria intolerável uma mulher partir sozinha para um lugar tão distante. As mulheres haviam embarcado como membros de famílias. A companhia não havia se esquecido da experiência no Havaí, onde havia sido permitido o embarque apenas de homens solteiros, o que provocara um desequilíbrio gigantesco na razão entre homens e mulheres, levando a problemas sociais. Portanto, desta vez eles convidaram prioritariamente famílias, e em resposta uma boa quantidade de mulheres colocou seu destino nas mãos de seus pais e maridos.

 


2 Prato nacional da Coreia, preparado com legumes fermentados e uma série de temperos, especialmente pimenta. (N. da T.)