13

Kim Ijeong abriu os olhos. O navio estava navegando sem muito tombo ou oscilação pela primeira vez em um bom tempo. O Ilford havia jogado e se agitado com violência durante dias a fio graças às tempestades constantes, e na cabine o fedor era azedo. Alguns tentaram suportar aquilo bebendo o suco de ginseng que haviam trazido a bordo, outros enfiando agulhas na testa e na palma das mãos, e outros ainda furando a ponta de cada dedo para que vertesse sangue. Cada um tinha seus próprios remédios para resistir à dura vida no mar. Kim Ijeong tampouco se viu livre de sofrimento. Ele não possuía nenhum conhecimento de acupuntura, nem trouxera suco de ginseng consigo. Subia até o convés. Ali, observava os marinheiros alemães passando de um lado para o outro. Devido a seus narizes afilados, queixos angulares e grande altura, ele não conseguia enxergá­-los como seres humanos iguais a ele mesmo. Incapaz de conversar com eles, observava­-os de longe e depois voltava para a cabine. Pegou­-se caminhando pelo corredor labiríntico que levava aos alojamentos dos marinheiros alemães, do capitão e dos empregados do navio. Não havia ninguém na passagem, talvez porque estivessem todos na cabine de comando. Chegou até um lance de escadas e desceu na direção do aroma saboroso de comida. A porta estava entreaberta, e ele viu pessoas trabalhando lá dentro. Era, como ele suspeitava, a cozinha do navio. Se existisse mesmo um inferno cristão, com certeza seria assim: os fogos incandescentes, os utensílios de cozinha pendurados no teto tinindo alto uns contra os outros, e os gritos dos cozinheiros por cima do ruído das caldeiras, com roupas imundas e cabelos compridos caindo na frente dos olhos. O chão brilhava de comida descartada e gordura, mas mesmo assim ninguém escorregava. Ali era onde tinha de ser preparada a comida para mil e trinta e três passageiros, o capitão, os empregados do navio, os tripulantes e os próprios funcionários da cozinha.

O navio inclinou­-se para o lado e Ijeong oscilou naquela direção também, batendo com força na parede. O som foi abafado pelo barulho da cozinha, portanto ninguém percebeu a presença dele. Mesmo enquanto caía ele continuou observando os cozinheiros. Eles se equilibravam de modo inteligente segurando­-se em tiras com uma das mãos. Não deixavam nem um só pedaço de legume cair das frigideiras.

Um gordo barbudo avistou Ijeong e gritou algo em japonês. Aproximou­-se dele com uma faca na mão, e Ijeong se encolheu. Os olhos do homem brilhavam com curiosidade desagradável. Berrou a mesma coisa de novo, mas Ijeong não conseguiu entender o que ele dizia. Então apanhou uma vassoura caída ali perto e começou a varrer as folhas de repolho e as cascas de batata que tinham caído no chão. O japonês barbudo sacudiu a cabeça. Não precisava de ninguém para aquilo. Ijeong continuou varrendo sem olhar para ele. O japonês tornou a dar seu grito trovejante antes de desistir e retornar para junto de seus camaradas. Os homens começaram uma conversa em japonês. Ijeong já havia ouvido aquela língua nas concessões japonesas dos portos abertos, na época em que vivia com o ambulante, mas nunca a havia aprendido. Seja como for, se pôs a ajudar com a limpeza, embora ninguém tivesse lhe pedido, e assim passou a conhecer os cozinheiros. E aqueles cozinheiros, que no começo apenas o xingavam sem sequer se dignar a olhar para ele, começaram a lhe passar tarefas esquisitas. Ele trazia sacas de cebola do depósito e limpava o refeitório depois das refeições. Em curtos intervalos, os cozinheiros japoneses subiam até o convés para fumar cigarros. Um deles era alto para um japonês. Seu cabelo era curto como o de um soldado e seu corpo, esguio. Ele ensinava um pouco de japonês a Ijeong depois que ele terminava a limpeza. Disse que seu nome era Yoshida. Primeiro ensinou a Ijeong os nomes dos ingredientes, como cebola, batata, arroz e água, para que pudesse realizar pequenas tarefas para ele. Sempre que Ijeong esquecia ou confundia uma das palavras, Yoshida lhe dava um cascudo na cabeça, mas aos poucos isso foi acontecendo com cada vez menos frequência. Ijeong aprendia depressa. Depois de uns três dias, pelo menos já não confundia o nome dos alimentos. E por isso recebeu mais incumbências. Os cozinheiros o chamavam sem descanso, como vendedores no mercado. Ele corria de um lado para o outro da despensa, do convés e do refeitório, e quando vinha a noite desabava como um macarrão molhado. Porém, agora já não tinha de aguardar no fim de uma longa fila para ganhar apenas uma tigela de arroz. Todas as noites ele voltava para a cabine fedendo a gordura. Ao seu lado, Choe Seongil apertava o nariz. Uma noite um jovem fazendeiro de Pyongyang chamou Ijeong de cachorro japonês e cuspiu nele. Ijeong esperou que o homem adormecesse e depois bateu nele com um taco.

— Aiiii! — O jovem fazendeiro cobriu a cabeça e enrodilhou o corpo, mas Ijeong desferia um golpe atrás do outro em seu corpo. Choe Seongil foi o primeiro a se dar conta do que estava acontecendo. Assim que abriu os olhos, agarrou Ijeong pela cintura e o empurrou contra a parede. Algumas outras pessoas que haviam sido pisoteadas acordaram e contiveram Ijeong. O fazendeiro fora surrado de modo praticamente sem sentido.

— Como é ser espancado por um cachorro japonês? — berrou Ijeong. — Então você não andou engolindo a comida que este cachorro japonês cozinhou pra você?

Os outros o acalmaram. O fazendeiro de Pyongyang, com a cabeça sangrando, apanhou seu cobertor e se afastou correndo de Ijeong.

A confusão logo acabou. A vida naquela cabine lotada muitas vezes levava a brigas. Era impressionante que ainda não tivesse havido nenhuma com facas. Os homens se socavam por lugares no chão, por uma colher de arroz, por uma mulher bonita ou por causa de um olhar atravessado.

— Vou te matar. Vou te atirar no mar!

Essa era a ameaça mais comum, mas nunca acontecia. Kim Ijeong deitou­-se, procurando se acalmar. Havia sido criado na rua; isso não era nada para ele. Mas estranhamente sua raiva não diminuiu. De repente teve a sensação de que todos os homens do mundo estavam contra ele. Presa dessa hostilidade incompreensível, fechou a mão com raiva. E com aquela mão fechada enxugou uma lágrima que se formou no canto do seu olho.

De manhã cedo, acordou antes de todos e saiu em silêncio para ir até a cozinha. Caminhou pelo corredor com os sentidos alertas, preparado para o caso de o fazendeiro de Pyongyang estar escondido em algum lugar e o atacar por trás. Ao virar uma esquina para chegar às escadas que desciam até a cozinha, ele sentiu a presença de alguém ali, ao lado do banheiro feminino improvisado. Ela deve ter ficado surpresa, porque soltou um grito abafado. Incapaz de cobrir os olhos com seu manto, a garota ficou cara a cara com Ijeong. Foi apenas um breve instante, mas tempo o suficiente para que o garoto de dezesseis anos e a menina tomassem consciência um do outro. A garota, que se chamava Yeonsu, afastou­-se para o lado e esperou Ijeong passar. Ele passou por ela, em seguida parou e se virou para ver Yeonsu pela última vez antes de ela virar a esquina. O modo como ela caminhava, erguendo os calcanhares muito de leve, e sua saia comprida davam a impressão de que ela na verdade estava flutuando. E aquele odor estranho...

Não havia ninguém na cozinha. Ijeong estava reunindo sua parafernália de limpeza quando viu uma faca presa numa tábua de corte. Em qualquer outra ocasião aquilo teria passado em branco, mas ele devia estar possuído por alguma coisa, porque apanhou a faca. As facas japonesas eram muito mais finas e compridas do que as coreanas. Aquela era uma faca de filetar e fedia a peixe. Então viu um cutelo de picar carne. O cabo estava coberto de sangue seco. Deixou de lado a faca de filetar e apanhou o cutelo. Gostou do seu peso. Algo afiado pareceu se erguer do fundo de seu corpo. Estava enlevado, preso entre seu desejo pela garota e um fascínio primal por objetos afiados de aço, quando ouviu uma voz trovejar atrás dele. Baixou a faca. Era Yoshida. Ele correu na direção de Ijeong, xingando, e lhe deu uma bofetada. Não contente com isso, estapeou­-o dezenas de vezes. Ijeong caiu de joelhos. Os outros cozinheiros entraram correndo e perguntaram o que tinha acontecido. Só precisaram olhar para a faca na mão de Yoshida para entender. A faca era o objeto mais sagrado de um cozinheiro. A hierarquia dos cozinheiros era amedrontadora, mesmo que estivessem preparando coisas como ensopado de porco em um navio de carga estrangeiro. Ijeong saiu da cozinha e se lançou à limpeza como se fosse um dia igual a qualquer outro.

— Será que eu realmente virei um cachorro? — chorou o garoto de dezesseis anos. Logo a refeição caótica da manhã terminou. Yoshida levou Ijeong para o convés e sentou-se à sua frente. Nuvens vermelhas pendiam baixas no horizonte. Yoshida acariciou a face vermelha e inchada de Ijeong e disse:

— Certa vez fui soldado do Japão.

Ijeong não entendeu quase nada do que ele disse. Mesmo assim, Yoshida começou a falar longamente sobre seu passado, como se estivesse enfeitiçado. Pertencera à marinha japonesa, e no ano anterior, quando irrompeu a Guerra Russo­-Japonesa e a frota cercou Porto Arthur, ele fugiu durante a noite. Seu rosto estava triste quando contou como a esposa e as duas filhas na sua cidade natal de Kagoshima devem ter ficado envergonhadas ao saberem de sua deserção. A única coisa que Ijeong conseguiu compreender é que Yoshida um dia pertencera à marinha. Se era um marinheiro japonês e estava em um navio britânico, então só podia ser um desertor, pensou Ijeong. Yoshida acariciou a bochecha de Ijeong mais uma vez. Os olhos de Yoshida estavam úmidos. Suas mãos ásperas envolveram o rosto do garoto e seus lábios se aproximaram, como se aquele fosse naturalmente o próximo passo. Ijeong vacilou, seus lábios encontraram os lábios de Yoshida, e então a língua de Yoshida entrou em sua boca. Yoshida segurou Ijeong com força com ambas as mãos e o garoto caiu para trás. O corpo de Yoshida começou a arder em meio às cordas apertadas, enrodilhadas como peles de serpente no convés. O coração de Ijeong bateu violentamente. Era a primeira vez que experimentava algo assim, com homem ou mulher. O homem à sua frente, que havia chorado ao enfiar a língua em sua boca, tinha sido muito gentil com ele, porém ao mesmo tempo o surrara com tanta força naquela manhã, que sua bochecha estava inchada. Teria sido mais fácil para ele decidir o que sentia se o homem tivesse sido apenas uma coisa ou outra. Naquele instante de confusão, a mão de Yoshida se moveu na direção da virilha de Ijeong. Yoshida acariciou suavemente o pênis ereto do rapaz. Então o sol da manhã, que estivera escondido pelas nuvens do horizonte, mostrou seu rosto. Como uma lâmina afiada, a luz do sol dividiu os rostos deles em escuridão e luz. Ijeong piscou os olhos. Agora os coreanos que haviam terminado de tomar o café da manhã viriam até o convés fumar seus cachimbos. Ele afastou a mão de Yoshida. Depois balançou a cabeça. Com olhos entristecidos, Yoshida implorou pelo afeto de Ijeong. Quando Ijeong sacudiu a cabeça mais uma vez, respirando com dificuldade, o rosto de Yoshida lentamente voltou à sua costumeira expressão endurecida. Não mostrou nenhuma hostilidade. Como um caracol que houvesse por um breve momento arrastado o corpo para o mundo exterior, agora ele retornava para a segurança de sua concha. Yoshida estendeu a mão para Ijeong. Ijeong estendeu a dele hesitante, e a mão áspera do homem agarrou a sua e o pôs de pé com um só impulso. Quando Yoshida soltou sua mão, Ijeong limpou os fundilhos das calças. Sem dizer palavra, os dois voltaram para a cozinha. Com a expressão mais severa que conseguiu exibir, Yoshida disse a Ijeong:

— Siga­-me.

Ijeong o seguiu até o depósito escuro. Yoshida entregou uma maçã fresca para o garoto aterrorizado. Quando Yoshida voltou para a cozinha, Ijeong se trancou no depósito e comeu a maçã vermelha inteirinha, até as sementes.

Quando acabou, saiu do depósito e subiu até o convés. Pela primeira vez em um longo tempo, soprava uma brisa suave. Os coreanos, que haviam se cansado da vida na cabine, lotavam o convés, banhando­-se ao sol e respirando fundo o ar fresco. Alguém deu um tapinha no ombro de Ijeong. Quando ele se virou, viu Jo Jangyun, o homem que havia lhe dado seu nome.

— Não é duro demais? — ele estava falando da vida na cozinha. Ijeong disse que não. Disse que podia ir e vir pelo navio, então era melhor porque não se entediava. Jo Jangyun concordou.

— E provavelmente deve ter bastante o que comer, também.

Ijeong deu um largo sorriso.

— Depois de ficar trancado na barriga de um navio como este, a dor nas minhas pernas é quase insuportável. — Jo Jangyun alongou o corpo. — O que eu não daria por uns poucos passos em terra firme, mesmo que fosse no inferno! — ele deu um tapinha na amurada de metal. — Quem diria que este seria um oceano tão grande? Minha nossa, não importa o quanto a gente siga, parece não ter fim. Dizem que ainda temos mais um mês pela frente... É o bastante para enlouquecer alguém. — Parecia estar esperando ouvir algumas palavras esperançosas de Ijeong, que passava o tempo todo com a tripulação. Mas Ijeong não sabia mais nada também. O oceano era vasto, e ao final daquele vasto oceano estava o destino deles. Ele havia olhado de relance para um mapa­-múndi ao levar o café da manhã para o capitão certa feita, mas não tinha como saber onde eles estavam no momento. Eles não podiam fazer mais nada a não ser esperar.

Quando os colegas de Jo Jangyun da época militar apareceram, enfiaram tabaco nos cachimbos e os acenderam. O enorme navio de aço e aqueles cachimbos pareciam deslocados no oceano tropical. Ninguém falava no passado. O único assunto das conversas era o futuro incerto.

— Quando chegarmos, não vamos nos separar — sugeriu alguém.

— Claro, claro — todos concordaram.

— Podemos pedir para nos mandarem para o mesmo lugar.

— E quem vai pedir?

— O intérprete, é claro.

— Ele parece um camarada sem­-vergonha, acho que não podemos confiar nele.

— Não importa, é o trabalho dele transmitir o que falamos.

— Ele vai fazer isso, não vai?

Todos assentiram, perturbados. Ijeong se afastou dos homens e voltou para a cozinha. Já era hora de preparar o almoço. Yoshida continuava quieto.

— Hoje tem missoshiro no almoço! — gritou alguém.

Um pedaço gigantesco de missô foi atirado no panelão de sopa. O aroma saboroso encheu a cozinha. O cozinheiro barbudo que havia gritado com Ijeong daquela primeira vez lhe deu um tapa na parte de trás da cabeça. Ijeong arrastou uma saca de cebola. O suor descia incessantemente dos corpos dos cozinheiros devido ao calor intenso. Alguém entornou uma bebida japonesa que eles tinham escondido ali, e outro cantou uma melodia japonesa tristonha a plenos pulmões. Não podiam ser todos desertores, mas mesmo que fossem, como tinham ido parar ali?, matutou Ijeong. Mas não perguntou a ninguém. Quando trouxe o ingrediente errado, Yoshida o xingou em voz baixa — “Bakayarou!” —, mas seu tom era fraco. Talvez estivesse xingando a si mesmo. Ijeong sabia pouco de homens que amavam outros homens, sentia apenas que as ações de Yoshida haviam sido movidas pela afeição. Esse tipo de coisa acontecia com certa frequência entre os ambulantes que moravam havia muito tempo na rua, mas Ijeong deixara aquele mundo antes de aprender sobre esse lado. Achou que talvez fosse melhor simplesmente descer até a cabine e não ir mais até a cozinha, mas não conseguiria fazer isso. Aquele inferno animado era muito melhor do que ficar preso na cabine fedorenta o dia inteiro. Sentia uma atração por aquele mundo onde apenas homens trabalhavam lado a lado no espaço estreito. Eles se xingavam e se estapeavam no rosto, mas isso era parte normal da vida. Então sempre que davam um cascudo na cabeça de Ijeong, ele sentia que estava sendo um pouquinho mais aceito no mundo deles. Para Ijeong, que tinha vivido como andarilho, a cozinha do Ilford parecia uma família acolhedora. Embora estivesse sendo transportado para um lugar mais longínquo do que qualquer outro para onde houvesse ido, não era isso o que parecia para Ijeong.

Yoshida continuou a manter distância de Ijeong, mas sempre que surgia a oportunidade, e como se de certa forma fosse seu nobre dever, Yoshida, com sua expressão melancólica, ensinava solenemente japonês para Ijeong, e, quando as tarefas da manhã estavam concluídas, levava­-o até o depósito e lhe dava uma maçã. Aquele prazer secreto no depósito escuro aos poucos reuniu uma vez mais aqueles dois que tinham sido separados pelas ações inesperadas de Yoshida. Ijeong sentia a doce fragrância que emanava da polpa da maçã. Então ele polia a fruta na manga de sua camisa e a mordia. Yoshida olhava faminto a boca de Ijeong enquanto ele comia. Era tudo. Só depois de Ijeong haver comido a maçã vermelha até as sementes é que Yoshida retornava a seus afazeres. Organizava o depósito e selecionava os ingredientes necessários para o almoço, colocando tudo em um saco. Não pedia que Ijeong fizesse algo. Ijeong subia até o convés e saboreava o gosto azedo que se demorava na ponta da sua língua. Ao longo das semanas seguintes, sem uma palavra de Yoshida, ele descia até o depósito e aguardava. Alguns minutos depois Yoshida aparecia e silenciosamente lhe entregava uma maçã. Ijeong também comeu outras frutas que nunca havia visto nem ouvido falar. Independentemente do que eram, Ijeong gostou delas. Aos poucos começou a se perguntar se deveria fazer algo em troca para Yoshida. E embora essa ideia tenha lhe passado pela cabeça, ele não sabia o que deveria fazer, portanto sacudia a cabeça violentamente, subia até o convés e se abandonava à ventania.