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Nem todo mundo assistiu ao ritual para o morto. Enquanto o ritual consolava a alma do falecido que havia virado comida para os peixes do oceano Pacífico, a filha de Yi Jongdo, Yeonsu, estava sentada com o manto sobre a cabeça observando um garoto sentado à sua frente. Era o garoto que ela havia encarado frente a frente ao amanhecer daquele dia. O garoto, que cedo havia ocupado um lugar, estava ouvindo os cânticos do xamã com o queixo apoiado sobre os joelhos. Seus lábios estavam firmemente pressionados e seus olhos grandes fitavam algo sem se desviar. Ele não estava observando o xamã. Sempre que uma tocha iluminava o rosto do garoto, este se acendia como uma estrela cadente e depois tornava a se apagar. Era a primeira vez na vida dela que ela encarava por tanto tempo o rosto de um homem desconhecido, o que só era possível porque o menino estava prestando atenção apenas na escuridão dentro de si. O coração dela gradualmente foi ficando mais confuso com o ritual, no qual se misturavam os cânticos do xamã e os gritos da multidão, o céu escuro da noite e as tochas, e a canção e o sangue. O manto, que cobria tudo menos os seus olhos, fazia com que ela se sentisse ainda mais confinada. Por fim o garoto se levantou. Ijeong limpou os fundilhos das calças e deu as costas para o ritual. Afinal de contas, não conhecia o morto. O local do sepultamento e o além, sobre os quais cantava o xamã, para ele não passavam de palavras abstratas. Ainda estava em uma idade em que a morte não parecia real. Mesmo que ele pulasse no oceano, não lhe parecia que morreria assim tão fácil. Como então podia imaginar-se apanhando disenteria, sofrendo de diarreia e morrendo? Não, as coisas que agitavam seu coração eram Yoshida, o México — aquele país que tinha a impressão de que eles jamais alcançariam — e a chama quente do amor que ardia dentro dele. Não tendo habilidade com as letras, não sabia como expressar a agonia que se acumulava em seu coração.
Quando se levantou de onde estava e se afastou da multidão, Ijeong foi subitamente cativado por um odor e parou no mesmo momento. Já o tinha sentido antes, mas não podia imaginar o que seria. Tinha sentido o cheiro de toda sorte de coisas na cozinha, mas nada como aquele. Mesmo que ele misturasse todos os temperos que conhecia, não seria capaz de recriá-lo. Olhou em volta. Yeonsu estava ali. Seus olhos escuros cintilaram com a luz e depois recuaram para a escuridão. O cheiro desapareceu com ela. Ijeong encheu os pulmões de ar salgado. Ouviu uma voz gutural:
— Alguém aqui matou uma corça? — era Jo Jangyun. — É esse o cheiro de quando a gente corta o pescoço de uma corça e bebe seu sangue. — Ele lambeu os beiços. — Havia um número incomum de caçadores na nossa unidade, e, sempre que sentiam esse cheiro entravam nas montanhas e bang! bang! Então cortavam o pescoço da corça, reuniam o sangue quente fumegante em uma tigela e o bebiam ali mesmo.
Ijeong inclinou a cabeça.
— E o gosto lá é bom? — quis saber.
Jo Jangyun gargalhou e bagunçou o cabelo de Ijeong com sua mãozorra:
— Acho que vou me juntar ao ritual.
Sumiu na multidão. Havia mil e trinta e três pessoas... não, duas haviam morrido e uma nascido, então havia mil e trinta e duas pessoas no navio. A multidão estava tão apinhada em torno da área do ritual, que não havia onde pisar. Depois que Jo Jangyun saiu, Ijeong se virou para olhar ao redor, mas a garota já havia desaparecido. Não conseguiu encontrá-la. O coração dele fugira, e agora ele não conseguia mais ficar em paz. Desceu até a cabine e viu a garota sentada com sua família, costurando.