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Choe Seongil acordou em um lugar estranho. Não era o canto onde ele costumava dormir, e sim o meio da cabine. O que teria acontecido? Ao se levantar e tirar a poeira das roupas, ouviu algo em seu ouvido interno: “Vim cobrar o preço pela minha vida”. Quem podia ser? Mais que isso, como ele tinha vindo parar ali? Olhou em volta. Não havia nenhum rosto familiar. Então alguém caminhou em sua direção.

— Você acordou.

Era o camarada cujos pertences ele havia roubado. Choe Seongil tocou furtivamente o peito para ter certeza de que o colar de cruz continuava ali. Nada estava fora de lugar. O padre Paul lhe deu uma concha de água.

— Beba. Encontraram você caído no chão e o trouxeram para cá. Você ainda não se recuperou totalmente.

Choe Seongil inclinou a cabeça:

— Não, não foi isso. Talvez eu estivesse sonhando. Escute aqui, meu amigo da província Chungcheong, você sabe alguma coisa sobre sonhos? — o padre Paul fez um gesto para que ele parasse com aquilo, mas Choe Seongil seguiu em frente: — Deve ter sido um sonho, mas tive a impressão de ter encontrado um estranho naquele corredor. Não consegui ver o rosto dele, como se alguém o houvesse apagado com um pincel, mas ele apareceu de repente e... Ainda consigo ouvir claramente, como se ele estivesse falando bem no meu ouvido; ele disse: “Sou aquele que morreu em seu lugar. Vim cobrar o preço pela minha vida”. Não sei se eu estava dormindo ou acordado, mas quem neste navio iria dizer algo assim para mim?

O padre Paul sabia quem havia morrido no lugar daquele homem, e da humanidade. O homem que salvara a vida dele também, e por quem ele havia feito todo o caminho de ida e de volta até Penang. Jurara se tornar como ele; ajoelhara­-se de cabeça baixa no chão e fora ordenado. Da primeira vez em que ouviu a história daquele homem, em um povoado carvoeiro no coração das montanhas, foi cativado no mesmo instante pelo mito do nascimento daquela religião misteriosa. Era uma história verdadeiramente estranha, mas ele conseguia entender como um deus poderia nascer no corpo de um ser humano. Essas coisas eram completamente naturais em sua cidade natal na ilha de Wi, onde os deuses se manifestavam na forma humana dezenas de vezes por ano. Contudo, foi a primeira vez que ouviu falar de um deus que não havia deixado o corpo humano, que passou a vida inteira ali. A crueldade de sua execução — em que enfiaram pregos em suas mãos e pés enquanto ele ainda estava vivo e em seguida o pregaram em uma árvore, de modo que ele ficasse imóvel e a única coisa que pudesse fazer era esperar pela morte — não era nenhuma novidade. Porém, Paul ficou impressionado ao saber que um deus que assumira a forma humana havia morrido de modo tão impotente. E que embora tivesse demorado tanto para morrer, depois de apenas três dias ele renasceu e subiu até os céus com o corpo novamente intacto. Talvez o que tenha fascinado Paul fossem as contradições que recheavam a história. Era um deus e ao mesmo tempo um homem, onipotente e contudo impotente, horrível e no entanto maravilhoso. Disse que amava a humanidade, entretanto transformou aqueles mesmos seres humanos que amava em eternos pecadores. E agora o filho daquele deus soberbo havia aparecido diante dos olhos desse ladrãozinho insignificante e dito: “Sou aquele que morreu em seu lugar”. Seria mais uma de suas contradições? Não era possível. Devia ser algum coreano que odiava Jesus e sua religião, um soldado que antes decepava a cabeça dos católicos — aliás, por falar nisso, aquele navio estava ou não estava infestado de soldados? — e que agora estava fingindo ser Jesus para pregar uma peça no enfraquecido Choe Seongil. Afinal de contas, Jesus não era do tipo que sai por aí cobrando o preço pela sua vida.

— Foi só um sonho bobo — Paul deu um tapinha nas costas de Choe Seongil. Levantou­-se. Porém, não se sentiu tranquilo.