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Alguém estava esmurrando impacientemente a porta do depósito. Ijeong alisou as suas roupas e a abriu. Yoshida. A lâmpada a gás lançou uma sombra profunda sobre seu rosto. Enquanto os dois homens se encaravam, Yi Yeonsu atirou o manto sobre si e saiu sorrateiramente. Yoshida fez cara feia para a garota cujo odor intenso assaltou seu nariz. Seus lábios tremeram:

— Bakayarou! — sua voz tremia como a de um adolescente. O xingamento fraco só serviu para irritar Ijeong.

— Eu fiz o que pude por você, não fiz? Deixe-me passar.

Ele deu um passo para a frente. Yoshida recuou, sem forças. Com medo de que Yoshida o atacasse por trás, Ijeong seguiu em frente com ansiedade em cada passo.

Pouco tempo depois, ouviu o som da porta do depósito se fechando. Yoshida havia entrado ali. Ijeong subiu até a cabine para se deitar. Agora acabou meu trabalho na cozinha... mas disseram que chegaríamos ao porto amanhã, não é? Ao pensar nisso, ele já sentiu saudades da experiência de trabalhar na cozinha de um grande navio. Não tinha nada a ver com Yoshida; ele sentia falta da atmosfera violenta e quente criada pela proximidade dos corpos dos cozinheiros. Era um mundo reservado para homens, e por isso era ainda mais distante da realidade. Nada podia invadi­-lo. Problemas familiares, arrependimentos sobre o passado e preocupações com o futuro ficavam em seu lugar, a distância. Por que com Ijeong devia ser diferente? Por que ele não tinha medo do Novo Mundo que se aproximava? Se seu futuro de fato fosse desconhecido, ele poderia ter hesitado um pouco, mas seu futuro estava se aproximando com uma forma e um cheiro distintos. A névoa se dissipou e o litoral do oeste do México se mostrou sem muita clareza. Morros esbranquiçados como mofo em papel de parede se alternaram com praias de areia. Os coreanos subiram até o convés para ver a silhueta encantada do novo continente.

— Não tem verde nenhum nessa terra — disse alguém com a cabeça inclinada.

— Ah, é porque isso é só o litoral — gritou outro em resposta.

Jo Jangyun e três outros soldados subiram no guindaste da proa e protegeram os olhos para olhar a costa.

— Parece que estamos quase lá — disse Jo Jangyun, e dois dos soldados, Kim Seokcheol e Seo Gijung, lamberam os beiços. Kim Seokcheol, cujos malares eram proeminentes e cujos olhos pareciam estar praticamente grudados na sua testa (o que lhe valeu o apelido de “Rei Deva”) começou a falar em arrumar esposa:

— Se eu conseguir ganhar algum dinheiro e voltar para a Coreia, a primeira coisa que vou fazer é me casar.

Seo Gijung, que era uma cabeça mais baixo que Kim Seokcheol e sempre tinha sido vítima das piadas da milícia do império por causa de sua baixa estatura, brincou:

— Depois dos cinco anos que isso vai levar, por que se contentar somente em se casar? Você podia arrumar uma concubina também.

Kim Seokcheol gostou da ideia e deu uma risadinha:

— Até mesmo um camarada baixote como você se casou, então o que poderia me impedir? O que você vai fazer com o dinheiro que ganhar?

Seo Gijung olhou para o oeste, onde sua esposa e seus filhos haviam ficado, e falou com voz baixa e tímida:

— Vou comprar uma plantação de arroz.

Um breve silêncio se seguiu, amortecendo aquele clima animado.

— Que foi, alguém morreu? — brincou Jo Jangyun, mas ninguém riu. Nenhum deles teria embarcado se tivesse sua própria terra. Não tinham terras, portanto viraram soldados; não tinham terras, portanto não podiam se casar; não tinham terras, portanto não tinham para onde voltar e haviam se arrastado naquele quartel horrendo.

— Agora que nossos dias de guarnição militar acabaram, percebo que foram bons tempos — disse sonhadoramente Kim Seokcheol.

— Como assim, bons tempos? Foram tempos difíceis.

Os três haviam se oferecido como voluntários ao novo exército, que fora reorganizado segundo o modelo russo em 1896. O imperador Gojong, depois de transferir sua residência para a legação russa e resistir aos japoneses, contratou um instrutor militar da Rússia e despejou quarenta por cento do orçamento anual no exército. Assim que se espalhou a notícia de que o império estava recrutando novos soldados, acorreram mais de mil jovens de todos os cantos do país, e no pátio da guarnição militar houve um tumulto. Somente duzentos homens foram escolhidos, porém. Dois deles foram servir com o 5o Regimento do Segundo Batalhão da Guarnição de Bukcheong. Jo Jangyun, Kim Seokcheol e Seo Gijung tinham sido engenheiros e sargentos do estado­-maior. Seo Gijung fora treinado com eles, mas foi destacado para o 3o Batalhão da Guarnição de Chongseong. Então, no dia 18 de outubro de 1904, o exército japonês invadiu a província de Hamgyeong, que era fortemente pró­-Rússia, e montou ali um governo militar, dispensando tanto as guarnições de Bukcheong quanto as de Chongseong. Os japoneses não deixariam o nada confiável exército do império coreano em Hamgyeong, na fronteira com a Rússia.

— Foi melhor assim. Afinal, a única coisa que fizemos foi perseguir os montes de pessoas que se recusaram a obedecer à ordem do imperador de cortar o cabelo.

— Por que você tinha de lembrar isso?

— Bem, é verdade, não é? Que diabo, cortar a garganta de alguém só porque ele se recusou a cortar o cabelo!

— Eu nunca fiz isso.

— Nem eu.

Mas todos eles sentiram uma pontada de arrependimento.

O quarto soldado, Bak Jeonghun, tinha ficado em silêncio até então. Era um homem de tão poucas palavras, que o chamavam de Buda de Pedra. Era um atirador talentoso, com mira perfeita mesmo usando os rifles antigos japoneses. Corriam boatos de que havia matado um tigre no monte Guwol e um urso no monte Baekdu, mas ele guardava silêncio sobre aquilo. Bak Jeonghun havia servido na infantaria do exército central que defendera Seul e o palácio real. Tinha um sentimento tão grande de responsabilidade e estabelecia uma distinção tão clara entre a vida pública e a privada, que quando sua esposa adoeceu e morreu, ele a enrolou em um saco de palha com as próprias mãos e a carregou até o alto do morro que ficava atrás da sua vila para enterrá­-la, depois voltou ao seu posto. Isso, entretanto, só lhe valeu a ira dos oficiais corruptos. Quando Hasegawa Yoshimichi, o comandante do exército japonês, propôs a reforma do sistema militar coreano em 26 de dezembro de 1904, Bak Jeonghun foi o primeiro a abandonar a farda. Três meses depois, embarcou no navio em Jemulpo. Era em geral um homem quieto, mas também era dado a surtos repentinos de depressão e mal falou desde que o Ilford içou âncora. Então, quando ele fazia menção de falar alguma coisa, todos prestavam atenção. Depois de avistar o litoral, Bak Jeonghun subitamente abriu a boca.

— Eu, de minha parte, não planejo voltar.

Os olhos de todos se arregalaram e o fitaram. Era a primeira vez que alguém dizia algo assim desde o início da viagem.

— Aquele país patético, o que ele fez por nós que mereça a nossa volta? Então não nos deixou morrer de fome quando éramos jovens, nos surrou quando crescemos e nos abandonou à própria sorte quando a vida finalmente tinha ficado suportável? Os canalhas chineses em cima, os russos malditos nas nossas costas e os japoneses amaldiçoados embaixo de nós, chutando a gente com seus coturnos e depois nos obrigando a bajulá­-los. Os coreanos tratando seu próprio povo com a mesma frieza da neve do inverno e se acovardando diante do exército de outra nação como um cachorro no verão. Aquele país não tem nervo nem caráter. Não, não planejo voltar. Desde que eu não morra de fome, planejo encontrar um jeito de sobreviver aqui. Vou comprar terras — e aqui ele engoliu com força, se lágrimas ou saliva ninguém soube, antes de prosseguir — e, claro, casar. E ter filhos também.

Os outros três soldados pouco tinham a dizer, sabendo muito bem o que havia acontecido com a esposa e os filhos dele. Apenas Kim Seokcheol murmurou baixinho:

— Mesmo assim, precisamos voltar... nossos ancestrais estão lá.

Enquanto o litoral começou aos poucos se mostrar com mais clareza, a possibilidade de que eles jamais voltassem — uma possibilidade que eles não ousavam verbalizar — começou cada vez mais a se aproximar de uma realidade. Em vez de continuar uma discussão sem conclusão, eles preferiram fixar os olhos na silhueta do país para onde tinham de ir. As palmas de suas mãos estavam úmidas de expectativa. E se abrissem somente um pouco mais os olhos, poderiam contar o número de pescadores trabalhando em seus barcos perto do litoral.