28

O trem chegou de manhã cedo. Depois da carga, foi a vez de os coreanos embarcarem. Muitos estavam viajando de trem pela primeira vez. Alguns enfiaram a cabeça pela janela para observar a paisagem; outros tentaram dormir. Mais ou menos quando começaram a sentir fome, o trem parou em um vilarejo isolado. Eles desceram para almoçar nesse vilarejo, que estava tão silencioso, que parecia que até mesmo os pássaros deviam estar dormindo. Maias de pele morena se reuniram para observá­-los. Quando acabou o almoço, os coreanos embarcaram de novo no trem e partiram. Ao cair da noite, o trem parou. Gwon Yongjun disse a todos para saírem. Os coreanos formaram uma fila ao lado da estação. O vento tinha um travo salgado. Estava escuro demais para ver ao redor, mas logo eles perceberam que estavam em um porto. A distância, lâmpadas fracas oscilavam para baixo e para cima. Cachorros negros latiam. Todos foram até um campo e se acomodaram para passar a noite. Era a segunda que passavam sem um teto sobre a cabeça. Agora que a empolgação de chegar havia sumido, o orvalho da manhã parecia mais frio. “O que acham que somos, animais?”, reclamaram alguns, mas a reclamação não se espalhou. Cachorros sem pelos corriam de cá para lá, farejando os viajantes.

O café da manhã foi arroz e conserva de repolho. Depois eles fizeram fila para embarcar em um cargueiro que estava à sua espera. A viagem levou três dias e duas noites, mais tempo do que esperavam. Quem ficou no convés, pensando que em breve desembarcaria, desceu para o depósito de carga à noite para encontrar um lugar onde dormir. O navio cruzou o golfo de Campeche e chegou ao porto Progreso. O porto era raso demais para que o navio se aproximasse da terra, portanto ele lançou âncora a seis quilômetros da costa, e pequenas barcas acorreram até o navio como uma fileira de formigas atrás de um doce. As barcas transportaram passageiros até a costa sem parar. Ao chegarem à terra firme, os coreanos olharam ao redor. Progreso era um porto sonolento. Não havia pessoas à vista, e o vilarejo em si parecia pequeno. Era possível ver um farol a distância, mas ele não era muito alto. As águas que afluíam na corrente do Golfo eram turvas, e eles não conseguiam enxergar o fundo do mar. Árvores tropicais que eles nunca tinham visto antes tomavam conta da costa, e quem desembarcou primeiro ficou esperando à sua sombra pelos demais.

De repente eles ouviram uma comoção e todos se viraram naquela direção. Música saía de instrumentos cintilantes — era uma festa de boas­-vindas organizada pelo governo local. Tocaram o tema da Sinfonia do Novo Mundo, de Dvorák, mas para os coreanos aquilo não passou de um barulho alto. Os imigrantes ficaram na dúvida se as tubas, os trombones e os outros instrumentos de metal eram ou não feitos de ouro; viram o uniforme da banda e supuseram que fossem soldados, e a julgar pelo esplendor do evento, acharam que deviam com certeza ser pessoas de alto nível. A aparência da banda por um momento insuflou nova vida à sua viagem tediosa, e suscitou um mal­-entendido em relação à província de Yucatán e à prosperidade do México. Um mexicano gordo subiu no pódio e fez um discurso em espanhol; os imigrantes bateram palmas sem terem a menor ideia do que ele havia dito. Por um motivo ou por outro, os mexicanos também haviam aguardado com ansiedade a chegada dos trabalhadores coreanos. Tocaram outra fanfarra e a breve festa de boas­-vindas chegou ao fim. Os imigrantes começaram a se dispersar.

Um trem negro de carga os aguardava no final de uma estrada que se estendia até os embarcadouros. Depois de uma hora eles chegaram à cidade de Mérida. Rumaram até um vasto campo. Tendas, montadas pela associação de fazendeiros de Mérida, esperavam por eles em fileiras. As tendas não tinham parede, e um vento seco as atravessava. Deram­-lhes milho, farinha e uma pequena porção de feijão, uma panela de ferro e lenha. Os homens fizeram fogueiras e as mulheres prepararam a comida. A areia não parava de entrar em suas bocas. As pessoas começaram a falar cada vez menos. Alguns dias se passaram sem nenhum acontecimento especial. A ansiedade vagava entre as tendas. John Meyers e Gwon Yongjun foram vistos conversando, com expressão séria, com alguns mexicanos. Os mosquitos enxameavam malignos noite e dia, chupando o sangue dos estrangeiros e botando ovos nas fossas entre as tendas. As formigas picavam os traseiros dos visitantes. Ao contrário de seu destino original, Salina Cruz, o calor de Mérida mais parecia com abraçar uma bola de fogo. Os lábios deles estavam secos e rachados. Maio era o mês mais quente do ano. O calor era muito pior do que o dos verões úmidos da Coreia. Se não fosse a sombra das tendas, alguns deles certamente teriam morrido de insolação.

Ao cair da noite, o céu ficava vermelho de repente como uma criança irritada. O sol do Yucatán se abaixava no horizonte bastante tarde e então subitamente desaparecia. Não havia nenhuma montanha à vista. A vastidão da planície era algo impressionante para os coreanos, que nunca em suas vidas haviam visto o horizonte na terra. Então descobriram que haviam nascido entre as montanhas, crescido olhando as montanhas e ido dormir quando o sol caía por trás das montanhas. Aquela planície sem fim, sem o monte Arirang de suas canções populares, era verdadeiramente uma visão estranha, e ao se deitar eles se reviravam de um lado para o outro; não porque o chão fosse duro, mas pela sensação de infinitude e vazio ao seu redor.

Ninguém vira nada parecido com as plantações de arroz e os campos da Coreia, portanto a ansiedade só aumentou. “Será que não existe arroz no México?” Durante vários dias receberam milho cozido e tortillas de milho insossas. No caminho de Progreso a Mérida, para todo lugar que olhavam viam plantas estranhas organizadas em fileiras separadas a intervalos regulares na terra seca, que mais pareciam unhas dos pés de demônios viradas de cabeça para baixo, ou chamas, ou mesmo orquídeas grandes demais. Do trem, de vez em quando avistavam índios vestidos de branco cortando as folhas daquelas plantas com gadanhas. Algumas pessoas mais espertas imaginaram que talvez aquele fosse o trabalho que eles também fariam. Os índios maias erguiam as gadanhas devagar, debaixo de um sol que batia como se fosse vaporizar tudo. À primeira vista, o trabalho não pareceu difícil, parecia mais como uma caminhada despreocupada pelos campos. Eles cortavam as folhas, amarravam­-nas e as levavam até carrinhos de mão, e de vez em quando um homem a cavalo vinha dizer alguma coisa, mas a conversa não parecia girar em torno de nenhum assunto sério. Alguns acharam esquisito não haver nenhuma vaca nos campos. “Não vão nos fazer de besta de carga, vão?” Houve todo tipo de especulações.

No quarto dia, uma carruagem de dois cavalos apareceu, levantando poeira. O condutor, que segurava as rédeas, e dois servos escoltaram o senhor, que estava vestido de branco e tinha bigode negro. Quando a carruagem parou, o homem de branco desceu e se aproximou dos coreanos. Porém, os coreanos pensaram que ele fosse um servo, porque os uniformes do condutor e dos servos eram muito mais extravagantes e chamativos.

Várias outras carruagens chegaram em seguida. Como da vez anterior, os condutores com seus uniformes extravagantes ficaram sentados nas carruagens enquanto seus mestres desciam para cumprimentar uns aos outros. Pareciam alegres e animados. Deviam estar felizes com alguma coisa, pois a todo momento explodiam em gargalhadas. Finalmente os seis senhores, os donos das fazendas, se reuniram. A Companhia de Colonização Continental fez com que os coreanos se levantassem e formassem filas. Os fazendeiros caminharam ao redor e apontaram para as pessoas com suas bengalas. Selecionaram primeiro os que pareciam fortes e saudáveis. Inconscientemente, os coreanos aprumaram o corpo. O fazendeiro que chegou primeiro escolheu cerca de cem pessoas, enquanto os outros escolheram um pouco menos. Pelo visto, aquele que contrataria mais gente tinha o direito de escolher primeiro. Os fazendeiros assinaram documentos e os entregaram a John Meyers. Naquele dia, cerca de metade dos coreanos seguiu viagem até as fazendas, partindo das três estações de trem situadas ao redor de Mérida.

No dia seguinte chegaram mais fazendeiros. Não fizeram nenhum comentário sobre os trabalhadores, simplesmente escolheram os primeiros que viram e os levaram a suas fazendas. Os coreanos do Ilford foram dispersos entre vinte e duas fazendas da província de Yucatán. Levou uma semana até todos os mil e trinta e dois serem escolhidos. O último fazendeiro a chegar, um mestiço, chegou sozinho montado em um cavalo que puxava uma carroça, sem condutor nem servos. Ele tinha uma fazenda perto da fronteira com a Guatemala. O representante da associação de fazendeiros de Mérida puxou a abertura da tenda de lado, sorriu para ele e saiu para cumprimentá­-lo. Levou consigo um coreano que estivera agachado à sombra da carruagem para se proteger do sol.

— Todos os outros já foram escolhidos, resta apenas este aqui.

O representante deu um sorriso largo, mostrando os dentes. O jovem mestiço não tinha escolha, portanto assinou o documento e olhou para o último coreano. Pelo visto chegara a hora de ouvir uma nova canção. A cantoria nunca parava em sua fazenda. Ele ouvia canções africanas dos negros que mandara trazer de Belize. Tinha trabalhadores maias, os antigos soberanos do estado de Yucatán, que cantavam canções maias. Tinha asiáticos que cantavam as canções marinheiras de Guangzhou. Mulatos que vinham do outro lado do canal, de Cuba, talentosos na dança e nos tambores. Agora seria capaz de ouvir as novas e estranhas canções daquele homem que viera de um lugar chamado Coreia. O pescoço do homem era comprido e dava a impressão de que ele tinha boa voz. O fazendeiro tivera sorte. O coreano de fato era dono de uma voz singular. Hesitou quando o intérprete lhe pediu que cantasse uma música, mas depois se pôs a cantar com voz trêmula:

— Como o coração da fêmea de um faisão perseguida por um falcão em um morro sem árvores, sem rochedos, sem pedras; como um marinheiro no meio do vasto oceano em um barco que transporta mil sacos de arroz, depois de perder os remos, a âncora e os mastros se quebrarem, e seu cordame se partir, e seu leme cair, mas o vento sopra e as ondas batem e a névoa é espessa, e mesmo assim ainda há mil milhas, dez mil milhas para seguir, e o céu é negro e ele está sozinho entre os céus e a terra, e o mar brilha avermelhado com a luz do poente, e então ele encontra um pirata...

Era uma canção feita para ser cantada por uma mulher com voz masculina. A melodia era interminavelmente lenta e misteriosa, e o jovem fazendeiro ficou impressionado. A voz do homem parecia a de um homem antes da puberdade, mas também a de uma mulher perdida em tristezas. O representante da associação de fazendeiros se aproximou e ergueu a mão para interromper o canto. Depois deu um sorriso largo e com a mão direita apertou a virilha do último coreano remanescente. Com expressão que dizia “Pudera”, sussurrou algo para o jovem mestiço. O coreano sorriu envergonhado, e o fazendeiro fez com que subisse em sua carroça. Com um desconto de cinquenta pesos como compensação pelos testículos que lhe eram inúteis, não havia motivo para não levá­-lo.

Seu nome era Kim Okseon. Só aos sete anos de idade percebeu que lhe faltava algo. A família contou ao garoto que um cachorro lhe arrancara os testículos quando ele estava se aliviando. Apesar de jovem, ele não acreditou naquilo. Pouco tempo depois descobriu que seu pai havia amarrado seus testículos com uma correia de couro com força para o sangue parar de fluir e depois os cortou fora. E, antes dos dez anos de idade, foi levado ao palácio para servir os eunucos.

— É um meio de ganhar a vida, não é? — perguntou seu pai. — O que você iria fazer mesmo com essas bolas, afinal de contas? — Seu pai deu um tapa maldoso na nuca do garoto quando ele partiu, chorando. Foi a última vez que viu sua família. Kim Okseon virou músico. Aprendeu a tocar instrumentos de corda e a flauta e memorizou canções. Quando a família real oferecia algum evento no palácio, ele cantava e às vezes dançava. Certa vez ganhou um leque do próprio Gojong durante as festividades para celebrar a reconstrução do palácio de Gyeongbok. Quando a imperatriz foi assassinada a golpes de espada, Gojong fugiu para a legação russa, e o Golpe de 1884 e a Reforma de 1894 sacudiram o mundo tanto dentro quanto fora do palácio. O destino dos eunucos também tremulou como uma vela ao vento. Eles tomaram partidos, dividindo­-se em facções progressistas e conservadoras. Os dias em que não eram pagos tornaram­-se mais e mais frequentes, e, portanto, os eunucos músicos pararam de se apresentar no palácio. Alguns foram ensinar música e dança às gisaeng. Outros retornaram a suas cidades para trabalhar no campo, mas suas famílias não os receberam bem e eles encontraram dificuldades para suportar o falatório. Kim Okseon e dois outros eunucos queriam partir para um lugar onde ninguém os conhecesse. Um deles leu o anúncio no Gazeta da Capital e falou com os demais, e alguns dias depois reuniram todos os seus pertences e rumaram para Jemulpo. Durante a longa viagem falaram cada vez menos com os outros passageiros, ficando em silêncio na maior parte do tempo. Quase ninguém percebeu que um dia eles foram músicos palacianos.