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Yi Jongdo não conseguiu dormir. Na fazenda Yazche, para onde havia sido levado, os imigrantes haviam sido acomodados não nas pajas maias, e sim em parcas casas comunais com tetos de chapa metálica e paredes de tijolos finas, ocas e quebradiças. Aquelas casas eram fáceis de construir, mas de dia pareciam tão quentes como fornos. Embaixo do teto de chapa de ferro ondulada, tão baixo que mal se podia ficar de pé, Yi Jongdo fechara bem a boca e agonizara pensando em como escapar daquele pesadelo que havia testemunhado nos últimos dias. O trabalho no campo era quase impossível para as mãos macias de Yi Jongdo. Toda a sua vida ele não fizera nada além de ler livros e escrever. Sim, claro, as famílias de alguns de seus amigos haviam falido e eles não tiveram escolha a não ser sujar as mãos de terra, mas mesmo assim não fora fazendo um trabalho tão indigno quanto aquele. E foi então que sua teimosia singular de acadêmico coreano veio à tona. No primeiro dia, quando todos começaram a cortar as folhas de sisal, ainda que de modo meio desajeitado, ele ficou ali parado de boca fechada sem mexer um só músculo.

— Olhem só aquele aristocrata! Olhem só para ele! — sussurravam os imigrantes entre si em tom de zombaria, porém ele não se abalou, nem sequer tentou se proteger do sol escorchante.

O intérprete Gwon Yongjun também tinha ido parar na fazenda Yazche. Aproximou­-se e perguntou a ele:

— Por que não está trabalhando?

Yi Jongdo continuou de lábios cerrados e nada respondeu. Gwon Yongjun havia observado Yi Jongdo no navio. Ele continua insistindo que é um aristocrata mesmo depois de tudo isso, portanto deve ser tratado como aristocrata, certo? Gwon Yongjun meteu a cara bem na frente da de Yi Jongdo e perguntou de novo:

— Não quer trabalhar?

Yi Jongdo continuou sem dar resposta. Guardas a cavalo se reuniram ao redor dos dois. Yi Jongdo levantou o queixo rigidamente e falou com Gwon Yongjun:

— Deve haver um governador ou magistrado por aqui. Leve­-me até ele.

Ao ouvir isso, Gwon Yongjun sorriu:

— Ótimo, vamos.

Em uma estranha mistura de inglês e espanhol, Gwon Yongjun comunicou os desejos de Yi Jongdo a um dos guardas. O guarda assentiu, os dois entraram em uma carroça e rumaram em direção à mansão perto da entrada da fazenda. O gerente, que agora se comportava como se fosse o dono da fazenda, estava sentado à sombra do casarão bebendo tequila.

— Qual é o problema? — perguntou.

Gwon Yongjun transmitiu as palavras de Yi Jongdo em espanhol balbuciante:

— Homem importante na Coreia, não quer trabalhar, tem algo a dizer.

O gerente fez cara de relutância, depois murmurou em espanhol:

— Se ele não quer trabalhar, então por que veio?

Yi Jongdo deu um passo à frente e falou:

— Sou membro da família real do império coreano e homem de letras. Não vim para trabalhar e sim para liderar os imigrantes na posição de seu representante no lugar do imperador. Por gentileza, transmita minhas palavras ao imperador do México e faça saber ao imperador da Coreia que estou aqui. Posso escrever uma carta como convém. Além disso, nossa atual residência não é adequada para mim e minha família, portanto peço, por favor, transferência.

Gwon Yongjun traduziu aquilo para o inglês, e depois alguém traduziu aquilo para o espanhol para o gerente. O gerente pareceu meio divertido. Perguntou a Gwon Yongjun:

— É verdade o que ele disse?

Gwon Yongjun sorriu obsequiosamente e respondeu:

— Quem sabe? Se é o que ele diz, então é tudo o que eu sei.

O gerente olhou para as roupas esfarrapadas de Yi Jongdo, depois tirou algo de uma gaveta e agitou­-o diante dos olhos do coreano.

— Isto aqui se chama contrato. Você veio para cá na condição de trabalhar aqui durante quatro anos. — O gerente apontou para o nome escrito no documento. — Paguei a John Meyers por você e sua família, portanto seja lá o que aconteça nos próximos quatro anos você vai ter de colher sisal. Se quebrar esse contrato, eu irei reportar você diretamente para a polícia mexicana. Imperador? Não existe imperador no México. É melhor você esquecer essa história e ir apanhar folhas de sisal.

O gerente acariciou o bigode e de um só gole bebeu toda a tequila que estava no copo à sua frente. Gwon Yongjun traduziu aquelas palavras para Yi Jongdo. Não que Yi Jongdo estivesse esperando alguma outra resposta. Ao retornar aos campos empoeirados, já havia abandonado todas as esperanças. Porém, mesmo assim não podia trabalhar nos campos de sisal com os outros. Não era uma questão de orgulho e sim de habilidade. Portanto, voltou para casa. Yeonsu, Jinu e a senhora Yun, que estivera deitada na cama de cânhamo, saltaram para cumprimentá­-lo.

— O que aconteceu?

Yi Jongdo fechou bem a boca, sentou no chão de pernas cruzadas e abriu seu livro. Isso queria dizer que não desejava conversar. Gwon Yongjun enfiou a cabeça lá dentro e olhou para a família. Então seus olhos encontraram os de Yeonsu. Os cantos de sua boca se reviraram em um sorriso malicioso. Somente quando a senhora Yun, que adoecera de fadiga, avistou o intérprete é que adivinhou o que se sucedera. Gwon Yongjun lhe contou o que havia acontecido no casarão do fazendeiro e acrescentou uma advertência:

— Se continuarem sem trabalhar, isso será considerado uma quebra de contrato. A paciência do seu empregador tem limite. Ele pode até lamentar a perda de seu investimento, mas no fim acabará expulsando vocês. E então o que irá acontecer com sua família, que não consegue falar nem uma palavra de espanhol? Vocês vão terminar servindo de comida para os abutres, é isso o que vai acontecer. Estou avisando isso na qualidade de seu patrício: não percam a cabeça. Não sei o que fez vocês embarcarem naquele navio, mas isso aqui não é a Coreia, é o México. Basta um passo em falso para terminarem morrendo de fome.

Depois que Gwon Yongjun saiu, a senhora Yun segurou o braço de Yi Jongdo e disse friamente:

— Será que você não deveria pelo menos tentar fazer alguma coisa? Já estamos passando fome há dois dias.

Yi Jongdo não tinha nada a dizer e continuou em silêncio. Yi Yeonsu levantou­-se e saiu. Todos os homens haviam ido trabalhar, restando apenas as mulheres e as crianças. As mulheres, com toalhas ao redor da cabeça, olharam carrancudas para Yi Yeonsu quando ela fitou o céu sem expressão. O mesmo havia acontecido no navio; a família de Yi Jongdo era a única a ser evitada. Ninguém falava com eles. Já era bastante sabido que eles não trabalhavam, portanto todos estavam alertas, com receio de que eles fossem lhes implorar milho. Além disso, sempre que os homens olhavam o rosto de Yi Yeonsu, fosse no raiar ou no fim do dia, ficavam tão afogueados, que não sabiam o que fazer, e isso não passava despercebido pelas suas mulheres.

Yi Jinu, que estivera tão deprimido, que não falara com ninguém, levantou.

— Eu vou trabalhar.

A senhora Yun murmurou um shh para calar o filho. Depois implorou para Yi Jongdo uma vez mais:

— Querido, vamos voltar para a Coreia. Será melhor.

Yi Jongdo esbravejou:

— Nós assinamos um contrato, não é? Como propõe que voltemos agora? Além disso, quem você acha que vai aceitar levar mendigos como nós de trem e navio até um lugar tão longe?

A senhora Yun ficou sem fala. Parecia que alguém havia enfiado papel dentro da sua garganta. Não havia como. Porém, o jovem Jinu era muito mais realista do que seus pais. Quando superava seus surtos de depressão, em geral entrava em estado de mania, e aquele era um desses momentos. Sentia que era capaz de tudo e se perguntou por que seus pais estavam tão preocupados. Que importava se precisavam ou não trabalhar; tinham de sobreviver, não é? Era isso o que ele pensava. E, por mais que refletisse, não via nenhum outro modo de sobreviver. Também estava desgostoso com o pai, que não sabia fazer nada e só ficava em casa como um caramujo. Yi Jongdo era igual sua nação em declínio: não queria trabalhar, era preguiçoso, era irresponsável. Depois de haver trazido sua família até aquela situação, o mínimo que podia fazer era assumir a responsabilidade.

Na manhã seguinte, Yi Jongdo acordou cedo, mas não se mexeu. Foi Jinu que em seu lugar embarcou na carroça e saiu para o campo com os demais. A senhora Yun chorou ao ver o filho partir para o trabalho braçal antes mesmo de o sol raiar:

— Que lugar infernal é este?

Porém, Yi Jinu parecia animado. Abaixou a cabeça em cumprimento a qualquer pessoa que parecesse mais velha que ele e encontrou um lugar na frente, perto de Gwon Yongjun.

O único que não trabalhava nos campos de sisal era o intérprete. Apesar de ruim, o espanhol que aprendeu no navio era suficiente para que ele agisse como um intermediário. Todos bajulavam Gwon Yongjun em busca de favores. Em poucos dias, ele já estava sendo tratado como uma espécie de capataz inferior. O fazendeiro também deu a Gwon Yongjun tratamento especial. Ele recebia um pagamento muitas vezes superior ao dos demais, e sua casa era de tijolo de qualidade. Aquilo era o bastante para levar uma vida decente, com cama de verdade e banheiro conjugado.

Yi Jinu desejava ser como Gwon Yongjun. Todas as fazendas precisariam ter seu próprio intérprete. Gwon Yongjun não poderia atender todas as vinte e duas fazendas, portanto, se Yi Jinu aprendesse ainda que apenas um pouquinho de espanhol, poderia trabalhar como intérprete em outra fazenda, onde fanfarronaria igual a Gwon Yongjun e receberia um pagamento bem mais alto. Yi Jinu estava se acostumando depressa com a vida na fazenda. Seguia Gwon Yongjun a todos os lados, aprendia o espanhol que ele usava e o praticava diligentemente.

Obviamente o trabalho não era fácil. No primeiro dia Yi Jinu voltou sangrando, e no segundo suas feridas supuraram. Depois de uma semana, havia calos em suas mãos. Durante dias a fio ele desabou na rede mal chegava em casa, adormecendo imediatamente. Como sempre, Yi Jongdo não se alterou, ficava sentado lendo Os analectos de Confúcio. Pai e filho já não falavam mais um com o outro. Yi Yeonsu esfregou um bálsamo que haviam trazido da Coreia nos braços e pernas do irmão.

— É duro, não é?

Yi Jinu balançou a cabeça. Seus olhos estavam escuros.

— Não é assim tão ruim, é divertido. Vou virar intérprete. Depois vou para outra fazenda.

— Intérprete?

— É, estou aprendendo com o sr. Gwon. A primeira coisa que preciso aprender são os números. Uno, dos, tres, cuatro enquanto ele falava, contava com os dedos.

— E ele o ensina bem? — Yi Yeonsu deu um tapinha nos ombros do irmão.

— Os sábios dizem que não há vergonha em aprender.

Yi Yeonsu tinha suas dúvidas quanto aos estudos do irmão. A autoridade do intérprete vinha do fato de ele ser o dono da língua, então por que desejaria ensinar aos outros?

Quando chegou o sábado, Yi Jinu levou seus vales de madeira ao pagador e recebeu seu pagamento. Depois foi até a venda e comprou comida para a semana. Não era nem de perto o bastante para alimentar uma família de quatro pessoas. Os dias se esticavam tanto, que eles acharam que morreriam de fome. Mesmo assim, Yi Jongdo não cedeu. E apesar disso ele era o primeiro a comer, e o que comia mais. Como se de certo modo fosse seu nobre dever, a cada refeição ele se sentava no melhor lugar, ainda que no chão de terra, e era o primeiro a levantar a colher. Não dizia uma única palavra de incentivo para o filho, nem uma única palavra de desculpas para sua esposa e filha. Era descendente da família real, na qual era costumeiro que uma família inteira fosse assassinada quando o patriarca decaía nas graças do governante. Talvez para ele tivesse sido melhor se houvesse sido condenado à morte e obrigado a beber veneno. Nenhum exílio era tão cruel quanto aquele. Ainda que o chefe da família fosse banido para uma ilha isolada perdida em um mar distante, a família sempre poderia esperar pelo perdão do rei ao lado dos parentes e servos em sua cidade natal. Aqui, porém, era impossível que um homem de letras mantivesse sequer um único fiapo de dignidade. A tragédia de Yi Jongdo residia no fato de que tudo aquilo era culpa sua, pois ele havia sido desnecessariamente pessimista em relação à situação da Coreia, e assim não havia mais ninguém com quem ele pudesse compartilhar aquela culpa. Ele imaginara que poderia pelo menos utilizar a escrita para se comunicar, como fizera em Pequim, onde homens como ele eram capazes de transmitir seus pensamentos por meio dos nobres caracteres chineses, ainda que não entendessem a língua falada. Sentiu seu erro até a medula e, no entanto, precisava manter a autoridade de pai. Autoridade não, dever. Não podia ensinar a servilidade aos seus filhos. Essa era a falha dos homens de letras. Se o chefe da família abaixasse a cabeça e admitisse seu erro, quem perdoaria os membros da sua família quando estes errassem? Yi Jongdo tomou o mingau ralo de milho devagar e falou com o filho.

— Não há vergonha em puxar o arado para cultivar o campo, mas por que você precisa seguir esse intérprete e aprender a língua dos bárbaros?

Seu tom era duro. Yi Jinu olhou nos olhos da sua mãe e da sua irmã, como se lhes pedisse o apoio, e depois respondeu ao pai. Ainda não tinha passado da puberdade, e sua voz tremeu.

— Então o que quer que eu faça, pai? — mostrou ao pai os arranhões e vergões em suas mãos e braços. — Olhe. Depois de apenas três dias, é assim que estão as mãos e os pés do nosso povo. Não é porque não tenham determinação, mas porque não há como ser de outra maneira. Precisamos aprender. Somente aprendendo as maneiras dos bárbaros é que poderemos sobreviver.

Todos acharam que Yi Jongdo teria um ataque de ira extrema. Mas, de modo um tanto inesperado, aquela ira arrefeceu. Como a espuma fervente abaixa quando se levanta a tampa da panela, assim também cada parte do ser de Yi Jongdo — suas pálpebras, seus ombros, suas faces enrugadas, sua cintura — pareceram subitamente sucumbir à força da gravidade e afundar em direção à terra. Ele fechou os olhos. Virou as costas. Então chamou o filho:

— Jinu.

Aquele descendente de uma dinastia desfavorecida pela sorte ficou de ouvidos atentos ao ouvir a voz do pai.

— Pode ser que você esteja certo. Não sei mais. Simplesmente não sei.

Sua família ficou sem fala. Seus filhos, que nunca haviam aprendido a consolar o pai, saíram e sentaram encostados na parede. E não falaram nada. Yi Jinu se sentia sobrecarregado com o colapso do pai. Iria ele largar tudo em suas mãos? Aqui? Aos catorze anos de idade, ele ganhava menos do que um adulto, e seria absurdo delegar os cuidados da família para ele.

— Jinu — disse sua irmã —, não se preocupe. Com certeza não iremos continuar vivendo assim. Vamos dar um jeito.

Ao ver o perfil de seu irmão menor, prestes a entrar em depressão novamente, Yeonsu pensou em Ijeong. Ele devia estar suportando tudo aquilo com todas as suas forças, tal como seu irmão caçula. Cortando, amarrando e carregando as folhas de sisal, com cortes nas mãos e nos pés, e depois desabando exausto na rede à noite para dormir. Será que ele pensa em mim? Seu corpo estremeceu, ansiando pelo calor da mão dele que lhe tocara o seio. Jinu deu um tapinha no ombro dela enquanto ela ficava ali tremendo, de olhos fechados.

— Preciso aprender a língua deste país e colocar comida na mesa — disse ele. — E não é assim tão ruim, na verdade. Era muito pior no navio. Eu me sentia completamente inútil; tinha medo do que estaria adiante. Não subia ao convés porque tinha medo de me atirar no oceano. Mas isto aqui é muito melhor. Sinto como se eu fosse capaz de enfrentar qualquer coisa.

Os dois entraram na casa e adormeceram com a mãe entre eles. Naquela fazenda, eles não tinham nem mesmo recebido redes. Entretanto seu sono foi doce. Seus corpos, mergulhados na exaustão, não perceberam o ar úmido nem os mosquitos terríveis. Às quatro da manhã, o sino barulhento tocou, dando início ao som dos sussurros dos homens enquanto se levantavam e iam para fora das casas. E ao som das mulheres, também. Algumas mulheres agora também estavam indo para os campos de sisal com os homens. Quando descobriram que as mulheres também podiam ganhar dinheiro, não havia motivo para que elas ficassem em casa. Até mesmo os homens mais tradicionalistas não tiveram escolha. Se as mulheres não trabalhassem não havia como eles ganharem dinheiro suficiente para fugir da fazenda. Os coreanos, que ainda não estavam acostumados com aquele trabalho, não conseguiam produzir nem metade do que os maias produziam, embora trabalhassem das quatro da manhã às sete da noite. Portanto, recebiam menos da metade do que lhes fora prometido. As mulheres enrolavam os filhos pequenos em cobertores, amarravam­-nos às costas e iam trabalhar. Abriam os cobertores entre as fileiras de sisal e colocavam os filhos na sombra embaixo deles. As crianças choravam por causa das assaduras e das formigas, mas no fim se cansavam até mesmo de chorar e caíam no sono.

Quando as mulheres voltavam dos campos, ainda precisavam cozinhar, cuidar dos filhos e remendar as roupas e sapatos rasgados. Os homens fizeram calças compridas grudadas ao corpo para que as suas canelas não fossem arranhadas pelos espinhos, e luvas para que as suas mãos não fossem machucadas. Agora que possuíam alguns itens para ajudar no trabalho, sua eficiência aumentou significativamente.

Yi Jinu ficou cada vez mais próximo de Gwon Yongjun, que estava satisfeito com o fato de aquele filho de família aristocrata estar desejando cair em suas graças. Ensinou a Jinu algumas poucas palavras em espanhol, como se estivesse lhe fazendo um favor. Enquanto o suor escorria de seu corpo, Jinu movia os lábios e memorizava as palavras que havia aprendido. Sempre que os capatazes da fazenda trocavam cumprimentos, como Buenos días, Buenas noches e Hasta luego, ele ficava de ouvido atento para aprender e os memorizava.

Um dia, Gwon Yongjun o levou para sua casa depois do trabalho. Serviu­-lhe um copo de tequila. Jinu apanhou o copo e engoliu de uma só vez a bebida forte. Gwon Yongjun lhe ensinou mais algumas palavras de espanhol. Quando ficou bêbado falou inglês também. Yi Jinu olhou para ele com enlevo. O que mais queria no mundo não era se tornar um ministro sênior, e sim alguém como aquele intérprete. Sabia da natureza obstinada e dura de Gwon Yongjun. Também sabia de seu vício de menosprezar os outros e de usá­-los com maldade aproveitando­-se de sua minúscula autoridade. Mas esse era o tamanho da vontade de Jinu de se tornar como ele. Gwon Yongjun leu nos olhos de Jinu aquele fascínio inquieto tão singular dos homens jovens, que com tanta facilidade se encantavam com homens mais velhos que eles. Eram completamente seduzidos pelo poder, liberdade e fanfarronice, e, incapazes de manter a cabeça no lugar, se submetiam então rápida e voluntariamente. Gwon Yongjun bebeu a tequila que restava em seu copo e perguntou:

— Sabe por que vim parar neste vilarejozinho mexicano?

Jinu olhou para ele com curiosidade. Gwon Yongjun teceu a história esplêndida da morte do pai e dos irmãos e da sua vida de libertinagem na casa de gisaeng. A tristeza de perder a família e as lembranças de uma derrocada magnífica fascinaram o jovem rapaz ainda mais. Jinu ficou abalado ao ver que o mundo era muito mais cruel do que ele aprendera. Olhou maravilhado para Gwon Yongjun, que falava daquelas coisas como se não fossem nada. Talvez fosse a tequila queimando em seu estômago vazio. Gwon Yongjun entremeou tudo aquilo com algumas mentiras e fez sua volta por cima parecer ainda mais fantástica. Falou sonhadoramente no passado, depois olhou para Jinu com expressão entristecida. O jovem Jinu ficou cativado pela solidão, pela queda gloriosa de um homem que havia experimentado de tudo. Foi naquele momento que Gwon Yongjun revelou o desejo que mantivera escondido no fundo de seu coração.

— Não existe nem uma única gisaeng em todas as oito províncias da Coreia que não tive em meus braços, mas jamais vi uma mulher como a sua irmã — olhou casualmente para Jinu. Uma sombra ligeira atravessou o rosto do rapaz, mas ele não demonstrou desgosto abertamente. Ao contrário, pareceu feliz por Gwon Yongjun ter demonstrado confiança nele. — Arrume um encontro entre mim e ela. — Ele enfiou a mão no bolso e tirou de lá uma nota de cinco pesos. Com aquele dinheiro, sua família não teria de comer o mingau ralo de milho do qual já estavam enjoados. Poderia comprar repolho e misturá­-lo com pimenta para preparar algo parecido com kimchi. Jinu precisaria trabalhar vinte dias para conseguir ganhar aquilo. Foi a primeira experiência do garoto com o poder do dinheiro. Gwon Yongjun não havia mencionado um preço específico, mas sua intenção era clara. Ah, não, isso é errado. Jinu fechou os olhos. Não, talvez ela entenda. Será que não faria aquele sacrifício pela sua família? Eu apanho folhas de sisal de manhã até a noite e sou ferido pelos espinhos, tudo isso pelo meu pai inepto e minha família, então minha irmã pode muito bem dar uma passada na casa deste homem no meio da madrugada. Ele não disse com todas as letras que faria algo com ela. E talvez nem fosse um sacrifício. Embora soubesse que aquilo era errado, Jinu não parava de pensar: tudo isso por cinco pesos. Acaso então as mulheres da Coreia não cortavam carne das próprias coxas para alimentar os pais doentes, e não cortavam e vendiam os próprios cabelos para mandar os filhos estudar fora? Isto aqui não seria mais fácil? Ah, não. Não seria nem mesmo humano. Vender minha própria irmã. Nem um monstro faria isso. E, se ela contasse para meu pai ou minha mãe, eu não conseguiria escapar da morte. Mas será que ela contaria? Sabendo que eu morreria pela mão de meu pai, será que ela realmente contaria? Ela iria apenas me repreender duramente, e pronto.

Gwon Yongjun viu a luta travada no coração de Jinu com tanta clareza quanto via as costas de sua própria mão, e tirou outra nota de cinco pesos do bolso e a colocou sobre a primeira. O garoto de catorze anos engoliu o resto de sua tequila. Então apanhou os dez pesos e os colocou no bolso. Assim um novo contrato se formou. Ele saiu cambaleando da casa de Gwon Yongjun e correu até a vendinha da fazenda, onde comprou repolho, um pouco de carne, tortillas e pimenta vermelha em flocos, depois seguiu com passos pesados para casa. Parou a alguns passos antes da porta e refletiu sobre o que havia feito. O leite já estava derramado. Entrou em casa e mostrou à família o que havia comprado. Eles haviam ficado com fome enquanto o esperavam, e seus rostos se iluminaram. Até mesmo Yi Jongdo comemorou. Yeonsu se agachou, acendeu o fogo e colocou uma panela de água para ferver. Coisas que ele jamais havia notado antes saltaram diante de seus olhos. Os quadris dela certamente eram grandes. Quando ela se pôs a atiçar as chamas, ele viu de relance seus seios através das cavas da sua blusa. Fechou os olhos e soltou um suspiro, e sua mãe lhe deu um tapinha nas costas. Ele se virou, surpreso.

— Você andou bebendo — disse a senhora Yun, e estreitou os olhos.

— Mãe, cometi um pecado ainda maior que esse. Mas não tive escolha. Se minha irmã fizer um sacrifício, todos nós poderemos viver com mais facilidade. A senhora teria feito o mesmo.

Ele saiu de casa e olhou para o céu. Uma lua cheia imaculada olhou para ele, clara e brilhante.