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No mesmo dia, sem ter a menor ideia do que havia acontecido no mar perto de seu país do outro lado do mundo, um pescador da ilha de Ulleung se debatia com uma decisão de vida ou morte. “Os guardas chegarão armados; você acha mesmo que vamos nos safar lutando de mãos vazias?” Aquele velho homem solteiro, Choe Chuntaek, o rosto coberto de rugas profundas, esfregou as mãos e olhou com atenção para ver qual seria a reação de seus soldados aposentados. Sua pele era escura e áspera graças aos ventos do mar, e suas mãos grossas eram fortes e duras. Só tinha trinta e três anos de idade, mas parecia ter cinquenta.

Os ex­-soldados estavam planejando uma estratégia concreta. Iriam de casa em casa à noite, a fim de transmitir aos outros o que havia sido decidido, e, às quatro da manhã do dia seguinte, quando chegasse a hora de despertar, os homens se reuniriam na paja de Jo Jangyun. As mulheres e as crianças ficariam em casa, só por precaução. Quando os guardas armados aparecessem, os homens os enfrentariam com pedras e facões. Os desertores seriam tratados com severidade.

Na noite anterior à greve, os homens não conseguiram dormir. Choe Chuntaek se reuniu com os pescadores de Pohang e conversou sobre a revolta do dia seguinte. “Não temos escolha. Se continuar assim, todos nós iremos morrer. Um mês se passou, portanto já estamos mais acostumados com o trabalho, mas, ganhando não mais que trinta e cinco centavos por dia, quando conseguiremos escapar desses campos de juta tenebrosos?” Em algum momento eles haviam começado a chamar o sisal de juta. Havia ainda quem o chamasse de aenikkaeng. Em cada fazenda os trabalhadores lhe davam nomes diferentes.

Os pescadores estavam preparados para o combate. Havia mais de cem coreanos na fazenda Chenché, para onde haviam sido enviados. Das vinte e duas fazendas, aquela era a que tinha o maior número de imigrantes. Por esse motivo, o fazendeiro pudera escolher os homens mais saudáveis, porém isso na verdade se revelou uma faca de dois gumes. O fazendeiro não sabia que um número significativo deles fora soldados, e que, portanto, poderiam se organizar e pegar em armas a qualquer momento. Além disso, havia gastado uma grande quantia de dinheiro desejando trazer o máximo possível de trabalhadores, e, portanto, agora não dispunha de dinheiro vivo em mãos. Sabendo da situação de seu mestre, o capataz resolveu o problema do mesmo jeito que sempre resolvia. Aumentou o preço da comida na vendinha da fazenda e cortou o salário que havia sido prometido aos camponeses. Os coreanos, de início, ignoraram isso e foram obedientes, mas depois de cerca de dez dias começaram a se enraivecer com as injustiças do capataz. “Será que ele quer que a gente trabalhe de estômago vazio? Se continuar desse jeito, todos nós viraremos fantasmas do Yucatán.”

Os soldados seguiram à risca seu treinamento e primeiro identificaram as forças da fazenda. Havia cinco guardas que dispunham de armas e cavalos. Logo abaixo do fazendeiro havia um capataz armado, e mais alguns outros homens na venda e na fábrica, porém esses não tinham armas e ficariam apenas olhando de longe ou fugiriam em caso de conflito. No fim das contas, o problema se resumia ao fazendeiro e os seis homens armados. Naquelas condições, era um risco que valia a pena correr — desde que nem a polícia nem o exército fossem convocados. Os homens da fazenda Chenché resolveram entrar em greve.

No dia seguinte o sino barulhento tocou, porém os homens não subiram na carroça que partiria em direção aos campos. Em vez disso, se reuniram na casa de Jo Jangyun para levantar o moral dos revoltados, batendo em tampas de panelas como se fossem gongos. De início as mulheres ficaram nas suas pajas, depois uma a uma foram se juntar aos homens e gritar com eles. Aquela cena seria inimaginável na Coreia, mas em Yucatán parecia apenas natural. Antes mesmo que se dessem conta, a distinção confuciana entre homens e mulheres havia desaparecido. Alguém gritou:

— Vamos para a casa do fazendeiro!

Com o moral elevado, todos correram em direção à casa do proprietário de terras. O clamor aos poucos foi aumentando. Um guarda armado com um rifle chegou a cavalo ali por perto, e um pescador se preparou para atirar uma pedra nele. Os soldados coreanos o restringiram. O guarda armado virou o cavalo e fugiu da área. Quando chegaram à casa do fazendeiro, os imigrantes caíram no chão e começaram a gritar. Ninguém sabia falar espanhol, portanto não conseguiram transmitir de modo apropriado os seus dilemas. O fazendeiro, don Carlos Menem, apareceu na varanda do segundo andar usando uma camisa tão branca, que ofuscava os olhos. Olhou para os coreanos cheio de indiferença e chamou seu funcionário pagador.

— Onde está o intérprete deles?

— Acho que na fazenda Yazche.

O fazendeiro rabiscou qualquer coisa em um papel.

— Envie um telegrama pedindo que mandem esse homem para cá.

O sol já estava à meia altura no céu. O mês de maio em Yucatán era o mais quente, seco e cruel dos meses do ano. Contudo, os grevistas ficaram sentados imóveis e suportaram a espera. Quando Gwon Yongjun chegou, seus rostos se iluminaram. Finalmente alguém que poderia falar por eles. O intérprete saiu da carruagem com aparência cansada e escutou o que Jo Jangyun e Kim Seokcheol tinham a dizer. Suas exigências eram simples: baixar o preço da comida. Não nos chicotearem; não somos vacas nem cavalos. E nos fornecer milho. Todos os tipos de exigências começaram a surgir, mas no fim das contas elas se resumiam a duas: queremos que nos tratem como seres humanos. E o fazendeiro deveria arcar com o custo de alimentos básicos como milho e tortillas. Enquanto escutava esta ou aquela exigência, a cabeça de Gwon Yongjun estava em outro lugar. Jo Jangyun e Kim Seokcheol, esses homens é que são o problema. Sem dúvida, causarão problemas de novo. Agora ele ficou ao lado do fazendeiro e lhe fez uma pergunta que em seguida ele mesmo respondeu:

— Sabe qual é o problema dos coreanos? Eles são preguiçosos e incompetentes, e tudo o que sabem fazer é reclamar. Olhe — ele olhou em volta da fazenda Chenché. — As instalações daqui são muito melhores do que nas outras fazendas, não são? As paredes são de tijolo e as estradas são limpas e organizadas. Então qual é o problema? — Aqueles tolos ignorantes, confiando em sua própria força para se revoltar.

Ele sentiu vergonha de pertencer à mesma raça que eles. Estavam todos metidos em roupas imundas e com a cabeça infestada de piolhos. Havia, inclusive, alguns camaradas que nem sequer haviam cortado o cabelo preso em coque.

Gwon Yongjun foi ao lado dos representantes da greve reunir­-se com o fazendeiro. Don Carlos Menem recebeu Gwon Yongjun, Jo Jangyun e os demais na porta da sua casa, depois pediu que entrassem. Assim que passaram pela porta, foram recebidos por um jardim repleto de todo tipo de árvores e flores. Um pequeno arco­-íris faiscava nas correntes de água que saltavam de uma fonte. Embora eles tivessem atravessado apenas um mero portão, a luz do sol ali parecia completamente diferente. Lá fora, ela parecia ser capaz de arrancar fora a pele de um homem, mas a luz que se derramava sobre a fonte e as árvores era cálida e transmitia uma sensação de opulência. Embora não houvesse sido sua intenção original, convidar os representantes grevistas para sua casa foi uma medida extremamente bem­-sucedida. Jo Jangyun e os outros, que jamais haviam pisado em uma construção de estilo espanhol, ficaram maravilhados com o esplendor do lugar. Construída ao estilo arquitetônico latino­-americano, a mansão estava rodeada por um muro alto para evitar os olhares de quem estivesse lá fora. Dentro dos muros, colunatas e ambientes se encontravam frente a frente diante de um simpático jardim quadrado. Depois dessas colunatas, chegava­-se a um arco, e, atravessando­-o, a uma construção independente. Portanto, as casas da América Latina eram muito maiores por dentro do que à primeira vista pareciam por fora.

Menem sentou em uma cadeira de mogno em uma colunata e enfiou um charuto cubano Monte Cristo na boca.

— Bem, quais são as exigências deles?

Gwon Yongjun transmitiu quais eram. Menem acendeu o charuto, deu uma baforada e soltou a fumaça no ar. A fumaça se dissipou em um instante.

— Só isso? — ele começou a rabiscar alguma coisa em um papel, como se tivesse se esquecido das pessoas à sua frente. Era uma garatuja que não podia sequer ser chamada de letra. Depois de algum tempo, dobrou o papel e se levantou. — Gastei muito dinheiro para trazer vocês até aqui — disse —, mas não quero ser chamado de pão­-duro.

O capataz que estava de pé ao lado de Menem sussurrou algo em seu ouvido. Menem fez uma careta e balançou a cabeça:

— Não há necessidade disso. Vamos lhes dar milho e tortillas de graça. Em troca, aqueles que se recusarem a trabalhar, e aqueles que quebrarem o contrato e fugirem, causando­-me prejuízo, serão punidos. E então, o que me dizem?

Jo Jangyun e seus companheiros escutaram Gwon Yongjun e não conseguiram acreditar no que estavam ouvindo. Só de ganhar milho de graça já tornaria a vida muito mais fácil. E, se isso acontecesse, não haveria necessidade de baixar o preço das outras mercadorias. Menem abriu a porta de uma gaiola e despejou água em um pires de porcelana chinesa. O papagaio ali dentro cacarejou em cumprimento ao dono. Jo Jangyun concordou. Prometeu que eles voltariam imediatamente para os campos. Depois que eles saíram, Menem chamou o capataz e instruiu­-o para que distribuísse comida uma vez por semana. O capataz rapidamente protestou, dizendo que ele estava sendo caridoso demais. Menem tornou a acender o charuto, que havia se apagado. “Precisamos aumentar a produção. E ensinar a eles a lição uma única vez já é o bastante. Afinal, precisaremos conviver quatro anos juntos.”

O pai de Menem tinha sido um vagabundo no País Basco. Passou a juventude vagando sem rumo, levando consigo várias mulheres, depois virou oficial do exército francês sob o comando de Napoleão III.

Napoleão III se esforçou muito para recriar a glória do seu tio, Napoleão Bonaparte, e desejava particularmente alcançar certa grandeza em termos militares. Por conseguinte, o exército de Napoleão III não tinha nem um minuto de descanso. E nem o pai de Menem, George. Napoleão III, sendo o intrometido que era, envolveu­-se em diversas questões do Novo Mundo. Quando começou a Guerra Civil Americana, apoiou os estados sulinos e ficou contra Lincoln e os nortistas. A natureza feudal das grandes plantações de algodão do Sul combinava mais com o seu temperamento.

No México, Benito Juárez havia se tornado o ministro da Justiça e se dedicou a confiscar as terras ociosas da Igreja Católica e a estabelecer uma nova legislação civil, uma legislação que se aplicasse de modo igualitário a todos os cidadãos. A Igreja, os proprietários de terras e a aristocracia se uniram. Irrompeu uma guerra civil. Depois de três anos, quando sua derrota ficou evidente, os conservadores solicitaram a ajuda de Napoleão III. Animado com a conquista recente da Indochina, e ouvindo todas as vezes em que sua esposa espanhola Eugênia lhe pedia que construísse um império latino­-americano, Napoleão III estava inflamado quando os conservadores mexicanos buscaram seu auxílio. Nomeou como seu representante o arquiduque Maximiliano; os aristocratas mexicanos imploraram a Maximiliano que se tornasse imperador do México, e ele assim atravessou o Atlântico com o exército de Napoleão III e desembarcou no porto de Veracruz. O pai de Menem, George, foi com eles.

Assim que chegou à capital mexicana, Maximiliano esqueceu quem o convidara. Para ser mais preciso, percebeu que os conservadores não eram muito populares entre os cidadãos. Inesperadamente, declarou apoio às políticas liberalistas de Juárez. A ira dos conservadores traídos rasgou o céu em dois. E, contudo, tampouco Juárez sentia o menor amor por ele.

Foram tempos difíceis para o pai de Menem, George, também. Os camponeses mexicanos guerrilheiros pareciam estar escondidos em toda parte. Apareciam de repente, atacavam as tropas francesas e sumiam como fantasmas. Os canhões gigantescos que os franceses haviam trazido do oeste alpino não tinham a menor utilidade em tal guerrilha. O único objetivo de George era continuar vivo, mas começou a perceber que aquela nova nação que era o México era um ótimo lugar para pessoas como ele. O México recebia de braços abertos os imigrantes de origem latina, por isso, caso ele se assentasse, poderia construir uma casa semelhante a um forte em uma fazenda vasta, escravizar os indígenas e viver como um rei. Se voltasse para a França, não teria outra escolha a não ser levar uma vida de carreira militar. Além disso, a sorte de Napoleão III estava chegando ao fim. Depois de finalmente se cansar do clima antiguerra na França, decidiu retirar as tropas. Os últimos dias de seu fantoche Maximiliano estavam próximos.

De pé diante de suas tropas enquanto estas se retiravam exaustas para o porto de Veracruz, George fez um discurso: “Podemos estar recuando agora, mas isso é somente por causa da impotência de Maximiliano e da aristocracia mexicana. O imperador Napoleão não se esquecerá do Novo Mundo. Com certeza chegará o dia em que a bandeira tricolor pairará do Québec ao Panamá. Soldados, não estamos derrotados. Voltemos de cabeça erguida”.

Quando terminou seu discurso, as tropas explodiram em aplausos trovejantes. Alguns soldados se empolgaram tanto, que começaram a cantar a Marselhesa. Naquela noite, George calmamente apanhou os lingotes de ouro que estavam guardados no quartel­-general do regimento e partiu em silêncio. O dinheiro havia sido oferecido para a França como fundo de guerra pelas classes privilegiadas do México, portanto ele não sentiu a menor culpa em roubá­-lo. Fez o sinal da cruz e uma oração breve: “Senhor, o ouro é um metal precioso demais para ser usado para matar pessoas”. Então os ladrões mexicanos não agradecem à Virgem Maria sempre que apanham sua parte do butim? Ele arrancou fora seu uniforme, enterrou­-o e se disfarçou de mexicano. De poncho e sombreiro, voltou para a Cidade do México, onde tomou um trem para Yucatán. Mudou seu nome para don Carlos Giorgio. Com o nome espanhol, comprou uma casa em Mérida e depois se casou com uma mestiça e com ela teve um filho. Esse filho era Menem.

Giorgio primeiro tentou cultivar chicle, antes de expandir os negócios para o ramo do sisal também. Principal ingrediente da goma de mascar, o chicle era uma especialidade de Yucatán. Giorgio passava todos os seus dias entre os sapotizeiros, de cuja seiva vinha o chicle, e um dia antes de seu sexagésimo aniversário, foi atingido por uma flecha envenenada disparada por um maia descontente encarapitado em um sapotizeiro e morreu. Enquanto sua boca sucumbia à paralisia, ele chamou seu filho e fez dois últimos desejos. Primeiro, que Menem não abandonasse a fazenda de sisal, e, segundo, que enterrasse Giorgio em Nice, ao lado de sua primeira esposa. O primeiro pedido era relativamente fácil. Ele não poderia mesmo ter vendido a fazenda nem se quisesse. Porém, o segundo, de enterrar o pai em Nice, era problemático. “O que vai ser da fazenda enquanto for até Nice só para abrir uma cova na terra?” Menem simplesmente ignorou o segundo pedido.

Em vez de procurar o assassino de Giorgio, Menem expulsou quase todos os maias. Em seu lugar ele contratou os coreanos, que haviam acabado de chegar a Mérida. O contrato era de quatro anos, e os imigrantes saíram por um preço bem mais baixo do que os índios. Também não guardavam nenhuma mágoa em relação a ele, portanto ele não precisaria se preocupar com levantes nem revoltas. Contudo, agora que os conhecera pessoalmente, descobriu que eles tinham olhos ferinos e eram rebeldes, ao contrário do que ele havia ouvido dizer. Também eram muito maiores que os maias. Portanto, Menem decidiu ceder em alguns pontos. Fornecer­-lhes milho e tortillas não seria grande coisa para ele. E ele não tinha absolutamente nenhum desejo de ser morto por uma flecha envenenada atirada por um servo. A era dourada das fazendas havia chegado ao fim. Ele estava mais interessado no mundo da política. O sucessor de Juárez, Porfirio Díaz, que matara o imperador Maximiliano e ascendera ao poder, era um homem ignorante e inculto. A guerrilha o transformara em um ditador pró­-americano que apoiava a elite e os latifundiários. Foi Díaz quem transformou todas as terras do país em fazendas, roubando as propriedades dos pequenos fazendeiros para entregá­-las aos grandes latifundiários. Como resultado, uma única fazenda da afamada família Teresa, no estado de Chihuahua, era maior do que a Bélgica e a Noruega juntas; era preciso um dia inteiro de trem para atravessá­-la de um lado a outro. Noventa e nove por cento das terras do México se transformaram em fazendas, e as terras de noventa e oito por cento dos camponeses tinham sido roubadas. É claro que Menem não tinha do que reclamar do sistema latifundiário das fazendas; só estava insatisfeito com o fato de o presidente Díaz e umas poucas famílias controlarem tudo. Como é possível que não convocassem eleições democráticas? Se Díaz convocasse eleições, como havia jurado publicamente, Menem pensava em tentar a sorte e disputar o governo da província de Yucatán. Quem sabe até onde ele poderia chegar a partir daquele trampolim? Seja como for, ele não desejava passar a vida inteira naquela terra desolada coberta de pó.