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Dentre os soldados aposentados da fazenda Chenché, Kim Seokcheol e Seo Gijung pagaram pela sua libertação. Assim que reuniram o dinheiro necessário, procuraram don Carlos Menem, entregaram­-lhe seus oitenta pesos e se tornaram homens libertos. Foram até Mérida e alugaram uma casinha juntos. Era muito menor do que a paja deles em Chenché, mas incomparavelmente mais confortável. Eles podiam passear o quanto quisessem, e havia um mercado por perto que era bem mais barato do que a venda da fazenda. Ficaram especialmente felizes ao descobrirem um restaurante e um mercadinho chineses, onde compraram molho de soja e outros ingredientes para poderem preparar pratos semelhantes aos coreanos.

— Eu me sinto estranho — comentou Kim Seokcheol enquanto andava pelo quarto deles. — Poderíamos dormir o dia inteiro sem ninguém vir falar nada.

Seo Gijung ralhou com ele:

— Não está com saudade da fazenda, está?

Kim Seokcheol agitou a mão.

— Não, claro que não.

Mas seus corpos estavam familiarizados demais com o ritmo de uma fazenda de sisal para o negarem com facilidade. Em Mérida, eles ainda acordavam às quatro da manhã. Depois que se vestiam, saíam para a rua e a luz do campanário da catedral olhava para eles. O dinheiro que haviam trazido consigo aos poucos foi minguando, e não havia muito jeito de ganhar mais em Mérida. “Talvez devêssemos voltar para a Coreia.” Mas eles não tinham dinheiro para isso. E, mesmo que possuíssem o bastante para a viagem, teriam tanta dificuldade em ganhar a vida no seu país quanto ali.

Enquanto isso, Jo Jangyun permanecia na fazenda. Depois de algumas greves, ele agora fazia jus à sua reputação de representante dos trabalhadores de Chenché. “Não posso ir embora”, dizia, mas a verdade era que algo estava se inquietando dentro dele. Já entendera que muitos coreanos não teriam outra opção senão permanecer no México. Se fosse assim, haveria necessidade de uma organização capaz de reunir os coreanos espalhados pelo país. Agora podemos ser trabalhadores contratados nas fazendas, tão presos quanto escravos, mas no ano que vem a coisa será diferente. Jo Jangyun naturalmente começou a ver­-se como chefe de tal organização. Acaso aqui não é um lugar onde não existe discriminação entre as classes altas e baixas? Fazia tempo que os poucos aristocratas de cada fazenda haviam sido reduzidos a párias. Não havia como aqueles que não eram capazes de dar conta de uma simples tarefa conseguirem assegurar a hegemonia política. Diferente deles, Jo Jangyun aprendera como organizar grupos e adquirira competências de liderança e determinação no novo exército coreano ao estilo russo. Ou quem sabe já tivesse nascido assim: quando estava no útero de sua mãe, ela sonhou que um tigre de duas cabeças pulava para dentro das dobras de sua saia. Quando Jo Jangyun pensava nesses termos, seus planos cresciam. Por que não seria ele capaz de formar uma organização militar valorosa aqui, que atravessasse a fronteira entre a Manchúria e a província de Hamgyeong a fim de atacar o exército japonês? Nosso país já reverenciou a cultura e desprezou o exército por tempo demais, e foi por isso que chegamos nesse estado. O México, onde havia cerca de duzentos soldados aposentados, era o lugar perfeito para se estabelecer um novo exército de independência. Além disso, não havia nenhuma supervisão japonesa ali, portanto lançar­-se à tarefa seria mais fácil ainda.

A partir de então, Jo Jangyun começou a espalhar a filosofia de “reverenciar os militares”, que ele mesmo havia criado, a todos ao seu redor. A nova nação que ele imaginou naquela fazenda do Yucatán seria governada por um soldado carismático ou aposentado e derramaria todas as suas forças na criação de um poder militar independente. Sob um sistema de recrutamento militar obrigatório, todos os cidadãos teriam um dever para com a defesa nacional. A imprensa (ele logo pensou nos jovens acadêmicos que escreveram apelações ao imperador) deveria receber limitações apropriadas. Em primeiro lugar, os militares precisariam reunir todas as suas forças para repelir os países fortes do entorno, representados pelo Japão e pela Rússia. Os seguidores de Gojong, que haviam se apoiado na diplomacia, foram completamente ingênuos.

O número de simpatizantes das ideias de Jo Jangyun aumentou.

— Quando nossos contratos terminarem e sairmos das fazendas, vamos reunir dinheiro e fundar uma escola, uma escola que reverencie os militares. E teremos depois de criar um exército.

— E onde vamos encontrar armas?

— Por enquanto, vamos nos concentrar em montar uma organização; aos poucos as armas vão aparecer de um jeito ou de outro.

— E se irromper uma guerra entre os Estados Unidos e o Japão?

— Se o Japão está lutando contra a Rússia, não há por que não queiram lutar contra os Estados Unidos também. Se isso acontecer, os Estados Unidos vão nos fornecer armas. Quem conhece melhor as montanhas e os rios de Hamgyeong ou Pyeongan melhor do que nós? Vamos retornar com dignidade para nossa terra natal como integrantes do exército americano e esmagar os japoneses. Para isso, entretanto, precisamos organizar um exército com antecedência.

Jo Jangyun começou a anotar essas ideias. Grandes gotas de suor pingaram da sua testa e encharcaram o papel.