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A chama da revolução continuava a arder. Venustiano Carranza, o governador de Coahuila, expulsou Huerta, e o bandido­-tornado­-líder­-revolucionário Pancho Villa, após uma sucessão de vitórias sobre as tropas federais, estava se tornando uma nova lenda. Emiliano Zapata, de trinta e dois anos, também estava usando táticas de guerrilha para atormentar a Cidade do México e derrubar as tropas federais. Álvaro Obregón, que no futuro mudaria a maré da revolução e se tornaria presidente, também conduzia suas tropas maias à vitória após vitória e estava sendo chamado de general invencível. Heróis começaram a surgir e a testar forças uns contra os outros, como se estivessem esperando justamente por aquela oportunidade, a versão mexicana do Período dos Reinos Combatentes na China. A indústria e o comércio despencavam ladeira abaixo como um carro sem freio. Era o destino de Huerta seguir os passos de Díaz e embarcar em um navio alemão saindo de Veracruz.

Em 15 de agosto de 1914, o exército de Obregón finalmente tomou triunfalmente a Cidade do México. As corajosas tropas de indígenas iaques rufaram seus tambores e marcharam com orgulho à frente de todos. Entretanto, Pancho Villa não reconheceu Carranza, e Emiliano Zapata, por sua vez, também não poderia permitir que o controle do governo caísse nas mãos de Carranza, um grande latifundiário. Carranza e Obregón sentiram a pressão do ataque em pinça dos dois principais nomes da revolução e retornaram para Veracruz. Inteligente e meticuloso, Obregón levou todos os civis importantes com ele ao se retirar. Os funcionários cruciais para a manutenção das redes ferroviárias e de comunicação foram os primeiros. Levou tantas pessoas do clero quanto foi possível, não porque gostasse de padres, mas porque queria retirá­-los de suas catedrais luxuosas e forçá­-los a testemunhar o sofrimento da população. Antes de partir, Obregón ordenou que se fizessem exames de saúde no clero. Dos cento e oitenta padres, quarenta e nove deles — vinte e sete por cento — estavam contaminados com doenças sexualmente transmissíveis.

Marchando, um batalhão avançado das tropas de camponeses de Zapata tomou a Cidade do México no dia 26 de novembro. Foi uma entrada silenciosa, sem o som dos trompetes vitoriosos e nenhum desfile elaborado. As tropas zapatistas não encontraram quase nenhuma resistência ao tomar as organizações necessárias para manter a ordem, como a estação policial. Pancho Villa, que chegava do norte, entrou na Cidade do México em 4 de dezembro. O antigo bandido e o antigo camponês tinham muito em comum, como o fato de ambos possuírem pouquíssima instrução formal, a ponto do quase analfabetismo. Ainda assim, eram ambos gênios em técnicas de guerrilha e bastante populares perante a população, e o primeiro encontro dos dois começou com palavras gaguejadas de respeito mútuo. Aqueles dois líderes tímidos e rústicos condenaram os embustes de Carranza e se congratularam com relação a seus feitos. Dois dias depois, as tropas do norte e as do sul se reuniram e organizaram uma parada vitoriosa em larga escala.

Fazendo parte das tropas do norte que marcharam por Paseo de La Reforma estava um soldado asiático que chamou a atenção da multidão. Era Kim Ijeong. Como parte da invicta División del Norte de Pancho Villa, Ijeong finalmente chegava ao centro do México. Depois de três anos na revolução, tinha vinte e cinco anos. O exército de Pancho Villa era amado pela população aonde quer que fosse, e por fazer parte desse exército Ijeong recebia tratamento parecido. Não havia nada de errado em ser esse tipo de revolucionário. Era uma existência que cruzava as fronteiras entre a vida e a morte. Em certas ocasiões ele sentia falta das mulheres, e nesses momentos lembrava­-se de Yeonsu, mas agora que havia se juntado à insurgência ele não tinha a liberdade de ir e vir como bem entendesse.

Ao contrário de Emiliano Zapata, Pancho Villa começou um reinado de terror tão logo chegou na Cidade do México. A capital rapidamente mergulhou no caos quando prisões e execuções começaram a acontecer seguindo uma lista que fora preparada com antecedência. Sangue gerava sangue. Os soldados tiveram de aprender a matar sem questionar, como os assassinos da máfia. Dia após dia seguravam pistolas contra o peito daqueles que não podiam revidar e os usavam como alvos de prática. Também Ijeong disparou sua arma sem pensar. Cada vez que o fazia, algo dentro de seu coração se destruía um pouco. Os grandes fazendeiros devem morrer, pensava ele. Ele acreditava que o sistema de fazendas, que alimentava apenas os grandes latifundiários, deveria ser erradicado imediatamente. O mesmo servia para o sistema sujo de escravidão em que pessoas eram compradas e vendidas. Estranhamente, no entanto, a classe dominante não se deixaria capturar com tanta facilidade. Depois de matar alguns homens, Ijeong descobriu que eram fazendeiros insignificantes e pessoas pobres, não muito diferentes dele. Não lhes importava quem apoiavam; eram arrastados para luta na guerra, algumas vezes ao lado de Huerta, outras de Villa ou de Obregón. Ijeong vendava seus olhos e disparava uma bala em seu coração. Ordens eram ordens.

Mesmo assim, Ijeong adorava Villa. Villa, que espancara até a morte um capataz que estava estuprando sua irmã mais nova e depois fugira da fazenda para se tornar um bandido. Como Zapata, era analfabeto e impulsivo em tudo que fazia. Por natureza, odiava nações, instituições e leis. Não era um anarquista, mas essencialmente agia como um. Ele não tinha interesse em fundar uma nação. Era precisamente isso que tornava Villa atraente. Ele odiava os latifundiários e os eruditos, e colocava essa raiva em prática. Havia passado dos limites certa vez e matado milhares de chineses sem motivo algum, mas as pessoas amavam aquele homem impulsivo e caprichoso.

Ijeong algumas vezes escrevia em um diário: “É possível uma nação desaparecer para sempre? E se for? Desde o início da revolução é como se não existisse uma nação no México. Cada um imprime sua própria moeda e mata aqueles que usam uma diferente. A carnificina gera mais carnificina. Os poderosos querem todos tomar conta da Cidade do México. Aqui é tanto o início quanto o fim dessa longa revolução. Milhares já morreram. Isso aconteceu por causa da nação anterior ou por causa de uma falta de nação? Nós tivemos o império coreano, mas não éramos felizes. E agora está acontecendo o mesmo com o México. De algum lugar aparece o cheiro de sangue. As nações mais fortes, o Japão e os Estados Unidos, iniciam guerras e apoiam guerras civis para controlar as nações mais fracas”.

Miguel, um soldado mexicano que era amigo de Ijeong, era um anarquista curioso. Mascando cigarros baratos como se fossem chiclete, sempre dizia coisas do tipo:

— As nações são, na verdade, a raiz de todo o mal. Porém, as nações não desaparecem. Se expulsarmos aqueles caudilhos e tornarmos a revolução uma realidade, outros caudilhos tomarão o controle do governo. Então, o que podemos fazer? Só podemos matar todo mundo. Para a revolução continuar, esse é o único jeito. Uma revolução permanente, é isso aí.

— Então você atirará em Villa se ele se tornar presidente?

Miguel sorriu com a pergunta de Ijeong.

— É nisso que acredito. Política e convicções são diferentes.

Diferentes dos jovens marxistas que serviam de oficiais administrativos sob o comando zapatista, aqueles que seguiam Villa tinham pontos de vista e passados mais diversificados. Entre eles havia anarquistas que tinham vindo da Rússia e da Espanha, e românticos trotskistas da Alemanha. Ijeong ficou confuso. Uma coisa estava clara, no entanto: nenhuma das nações pelas quais Ijeong havia passado, nem mesmo o acampamento de Villa, eram a forma de governo definitiva que ele desejava.

Um dia, Pancho Villa e Emiliano Zapata convidaram diplomatas para ir até o palácio presidencial. As grandes potências, como os Estados Unidos, a Alemanha, o Reino Unido e a França foram convocadas pelos líderes revolucionários. Alguns compareceram, outros não, usando doenças ou férias como desculpa. Ijeong estava montando guarda na frente do palácio com alguns outros soldados. As tropas revolucionárias se sentiam um pouco tímidas diante do esplendor da capital. Os guerrilheiros com seus uniformes velhos pareciam maltrapilhos em frente ao vasto Zócalo. Quando os carros que transportavam os diplomatas começaram a chegar ao palácio presidencial, Ijeong os observou com indiferença. Um deles, um novo modelo Ford, parou. A porta do passageiro se abriu e um homem desceu, em seguida o carro continuou o caminho até o palácio.

Era Yoshida. Vestido com um fraque formal, ele se aproximou com hesitação e estendeu a mão para Ijeong. Ijeong passou o rifle que segurava para a mão esquerda e apertou a mão estendida.

— Já faz um bom tempo. Nunca imaginei que veria você aqui — disse Yoshida. Ele olhou para o uniforme de Ijeong e de seus companheiros. — Você é um villista.

Os companheiros de Ijeong olharam com surpresa para ele ao vê­-lo conversar em japonês.

— Você sabia que Villa matou cerca de duzentos chineses em Torreón sem razão alguma? — Ijeong concordou, balançando a cabeça. — Mas ainda sim você é um villista.

Ijeong respondeu em espanhol. Ele não podia falar de Villa em japonês.

— Às vezes ele fica meio louco. Não há razão para ele não gostar dos chineses. Ele é esquentado, e é isso que o torna atraente. Mas o que você está fazendo aqui?

— Fui até o consulado japonês e me entreguei. O cônsul pediu desculpas, mas falou que não tinha escolha a não ser me prender e levar em custódia. Perguntou se eu gostaria de trabalhar para ele, então eu me estabeleci no consulado — Yoshida estendeu os braços e sorriu. — O que acha? Nada mau, hein? — então ele abaixou a voz. — Nós não acreditamos que Villa e Zapata durarão por muito tempo. Pense nisso com cuidado.

Ijeong fez que sim com a cabeça, sem expressão.

— Não me interessa nada disso. Afinal, sou estrangeiro.

— Quer dizer, um mercenário?

Ijeong balançou a cabeça, concordando.

— Eu me ofereci como voluntário, mas minha situação não é diferente. Foi bom ver você novamente.

O rosto de Yoshida se fechou.

— Provavelmente não nos veremos novamente, sim?

Ijeong moveu o rifle de volta para a mão direita. Os guardas do próximo turno estavam chegando. Ijeong fez sinal para seus homens se retirarem.

— Provavelmente não, mas quem sabe o que vai acontecer?

Yoshida parou Ijeong quando ele se virou para ir embora.

— Ah, aliás, agora você é japonês também. Assim sendo, todas as suas ações devem ser reportadas para nós. Você provavelmente sabia disso, mas todos os coreanos residentes no México se tornaram cidadãos japoneses em 1910. Então, se precisar de passaporte, ou se for tratado de forma injusta... qualquer coisa... procure a embaixada japonesa. É dever da delegação proteger seus cidadãos residentes no exterior.

— Eu não sabia. Mas nunca concordei em me tornar japonês.

Yoshida riu.

— Desde quando um indivíduo escolhe sua nação? Sinto muito, mas nossa nação é que nos escolhe.

Yoshida deu um tapinha nos ombros de Ijeong e entrou no palácio presidencial.