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Lagartixa de ouro

Frei Serafim de Catânia, da Ordem dos Capuchinhos, chegou ao Recife em 11 de setembro de 1841, começando a percorrer todo o Nordeste em pregação catequística. Foi o grande missio­nário dos sertões de pedra, dirigindo as Santas Missões que ficaram relembradas na memória coletiva das regiões visitadas. Irradiava energia, persuasão, bondade. A fama de fazer milagres derramou­-se, acompanhando­-lhe as pegadas.

O Brigadeiro Dendé Arcoverde, rico, poderoso, com um exér­cito de guarda­-costas e um harém de seis mulheres, dominava no solar de Cunhaú como o derradeiro barão feudal. Frei Serafim foi visitá­-lo. Quando o deixou, Dendé Arcoverde dispersou o bando guerreiro, despediu as mulheres, desarmou­-se e nunca mais mandou matar alguém, exceto a si próprio, suicidando­-se, para não ser preso, a 26 de julho de 1857.

Frei Serafim, a 21 de fevereiro de 1858, benzeu a primeira pedra da futura matriz do Ceará­-Mirim, a mais linda igreja da Província. Foi de inexcedível dedicação na epidemia da cólera­-­morbo.

H. Castriciano, estudando O último enforcado, registra que a mulher Josefa Maria da Conceição avisara ao amásio Alexandre José Barbosa que não matasse a vítima, porque o santo padre, Frei Serafim, estava a chegar e podia adivinhar. Era no Natal de 1845.

Velho, doente, cansado, Frei Serafim voltou à Itália, para sua amada Catânia, na Sicília, onde faleceu a 14 de maio de 1887. Veio várias vezes ao Rio Grande do Norte e, entre outras, deixou esta lembrança de sua intervenção miraculosa.

Um homem de bem, pobre, com família numerosa, estava sendo perseguido por um credor impaciente de receber os 100$000, e não sabia que fazer para enfrentar a vida difícil. Foi procurar Frei Serafim de Catânia no consistório da Igreja de Santo Antônio, expondo, com lágrimas, sua desventurada situação. O frade ouviu­-o, animou­-o, e erguendo­-se olhou ao derredor, viu apenas uma lagartixa que balançava a cabeça numa janela. O capuchinho fez o sinal da cruz e o animal imobilizou­-se como feito de bronze. Frei Serafim embrulhou­-o num pedaço de papel e entregou­-o ao necessitado penitente recomendando:

– Peça dinheiro emprestado sob este penhor e livre­-se da miséria. Daqui a um ano volte, trazendo o objeto, e coloque no altar, nos pés de Santo Antônio. Promete?

– Juro pela salvação da minha alma! – respondeu o pobre homem.

Correu ao agiota, pedindo a fortuna de 500$000, deixando um depósito. O onzenário abriu o embrulho e encontrou uma lagartixa de ouro, com a boca de rubis e os dois olhos de brilhantes. Valia o triplo. Pensou, provou, experimentou e deu os 500$000 ao suplicante. Este, com menos de um ano, estava livre de preocupações. Possuía casa própria, gado, uma loja, a família tranquila e feliz, cavalo de sela para o trato dos negócios. Foi ao usurário, liquidar o débito. Este propôs comprar a lagartixa de ouro. – Não é minha! – explicou o abastado negociante.

Recebendo o penhor, foi à Igreja de Santo Antônio e, feita a vênia, depôs o pacote aos pés do orago. Imediatamente o papel mexeu­-se e dele saiu, esfomeada e rápida, uma lagartixa, viva e veloz, em desabalada carreira. O homem percebeu o milagre de Frei Serafim de Catânia e, ajoelhado, rezou longamente, agradecendo a mercê.

O inimitável Ricardo Palma (1833­-1919) conta episódio semelhante ocorrido em Lima, no Peru. O taumaturgo é outro franciscano, Frei Gómez, nascido em 1560, na Estremadura, e falecido a 2 de maio de 1631. Era frade leigo, enfermeiro durante quarenta anos.

Um castelhano honrado e velho veio procurar Frei Gómez, suplicando­-lhe o milagre de uma esmola de 500 duros por seis meses. Frei Gómez nunca tivera uma peseta. Ouvindo o penitente, comoveu­-se e, arrancando uma página de um livro, envolveu com ela um escorpião que atravessava o recanto. Era o lacrau agressivo, anzol na cauda, tesouras abertas, pequenino e feroz. O homem levou o escorpião ao agiota pelo empréstimo de 500 duros.

Transformara­-se numa joia de rainha. Era um broche, com forma de lacrau. O corpo, formado de uma esmeralda magnífica, engastada em ouro; a cabeça, de brilhantes, com dois rubis por olhos. O agiota ofereceu emprestar­-lhe o quádruplo. O homem aceitou unicamente os 500 duros e tão bem os movimentou que estava farto e sereno de economia no fim do semestre. Foi pagar a dívida e recobrar a joia.

Levou­-a a Frei Gómez. Este repôs o escorpião no peitoril da janela, abençoou­-o: – Animalito de Dios, sigue tu camino...

O lacrau recomeçou a andar livremente pelas paredes da cela.

Mas há outra estória, irmã e bem expressiva. René Basset (Mélanges africains et orientaux, Paris, 1915), comentando a Contribuition a l’ètude de la literature copta (Cairo, 1905), de E. Gualtier, divulga o caso que na América do Sul tivera personagens como Frei Gómez e Frei Serafim de Catânia.

É uma tradição cristã no Egito. Ligada ao ciclo taumatúrgico de São Basílio.

Um pobre, protegido pelo santo, toma emprestados 40 dinares a seu padrinho, dando de caução uma serpente ordinária que São Basílio tornara de ouro, com a cabeça de esmeralda e os olhos de rubis. No fim do ano, o agiota, levado pela avidez e aconselhado pela mulher, recusou devolver o penhor, raro e precioso. Mas a joia voltou a ser serpente, venenosa e viva. O episódio dos coptas egípcios mantém as mesmas pedras, esmeralda, rubi, e o ouro. O ensinamento moral copta em nada altera a substância temática das tradições brasileira, do século XIX, e peruana, do século XVII. Quanto a estabelecer o itinerário, é outra estória dispensável...