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Dormir na igreja

Não permita que o sono o domine durante uma solenidade religiosa. Esse sono não está ainda capitulado entre os pecados, mas incluído no meio das faltas, que são os erros, os semicrimes da omissão.

Deve existir um diabinho especialmente encarregado de provocar essa inoportuna sonolência. Sei que, às vezes, esse inespe­rado torpor é legítima defesa orgânica ante certas eloquências intermináveis. Mas adormecer enquanto vive um ato litúrgico é desatenção ao sagrado motivo.

No budismo japonês há um demônio que distrai os fiéis ao correr do serviço religioso. Chama­-se Binaíakia. Um dos primeiros cuidados nos templos búdicos, antes das orações coletivas, é afugentar­-se Binaíakia com fórmulas exorcísticas específicas. Sabe­-se que esse demônio habita ao pé do Monte Shoumi, no Souméran.

Nos candomblés é indispensável uma oblação ao orixá Exu antes de começar a função no terreiro para que o trêfego duende não perturbe os trabalhos. Mas Exu não adormece a ninguém. Bem ao contrário...

Na Bretanha, vive igualmente um diabinho familiar com essa singular missão do sono imprevisto. Os bretões o denominam Ar C’houskezik, provindo do verbo houska, significando dormir. Seu nome francês é o Diable Assoupissant.

Nas igrejas católicas o mesmo ente soporífero ameaça a integridade da atenção devocional. Quem não deparou com uma vítima desse demônio sonífero, dormitando placidamente enquanto o tribuno sacro desenvolve o ciclo flamejante?

As beatas veteranas explicam que a sonolência durante o exercício religioso é uma manifestação expressa e legítima da tentação diabólica. Ninguém adormece por manifesta vontade ante o altar iluminado e na hora da reverência. Rápida vitória satânica sobre os crentes desacompanhados da sentinela volitiva.

Sendo o momento dedicado à divindade, o sono é uma evasão ao dever, uma fuga indisciplinar injustificável. Nenhum conferencista, teatrólogo, professor perdoa essa forma intempestiva de ausência mental com a presença física inoperante. Suetônio conta que o Imperador Nero expulsou Vespasiano do séquito porque o grande soldado adormecera durante o canto imperial. Sacrilégio!

Jesus Cristo estranha ao apóstolo Pedro o sono em Getsêmani. Vigiai, é a palavra digna do homem. Vigilância, determinando a Vigília, guarda da véspera festiva. O sono não é ortodoxo.

O diabrete que afasta a vigilância deve ser poderoso.

Todos os oficiais de Marinha têm um caso a contar no quarto da madorna, modorra, a luta para estar imóvel e desperto na madrugada lenta. É exatamente esse quarto, na escala do serviço naval, a hora das visagens, assombrações e pavores nos velhos navios ou arsenais e quartéis antigos. O saudoso Gastão Penalva (Comte. Sebastião de Sousa, 1887­-1944) contava­-me dezenas de episódios ocorridos durante essas horas de batalha contra o sono, quarto d’alva, quarto da madorna. Disse­-me que ia escrever uma relação, reunindo o documentário tradicional na Armada de Guerra. Infelizmente não o fez. Seriam páginas reveladoras de imprevistos e surpreendentes sucessos. As orações prolongadas e maquinais são irresistíveis provocadoras de abstração e desinteresse, alheamento inconsciente, caminho para o domínio envolvente e macio de Hipnos. Essa sugestão hipnótica é visível nas associações educacionais religiosas, notadamente nos Seminários, onde os professores reagem, por todos os meios permissíveis, contra o demônio sonolento das horas rituais.

Desaparecendo o centro de interesse no decorrer do cerimonial, recaindo na rotina monótona do habitual, o sono é um visitante infalível no âmbito religioso.

Em Lisboa, assistia quase sempre à missa dominical nos Jerônimos. Ficava ao pé de uma coluna onde há um peixe esculpido. Na saída, no rumo dos pastéis de Belém, testemunhava a um funcionário da igreja despertar e ajudar a erguer­-se a um velho gordo e simpático, decente em seu capotão folgado, chapéu de feltro e luvas. Vendo­-o passar o pórtico monumental, dizia­-me o rapaz com um sorriso nos olhos gaiatos: – Pois vem dormir pra Igreja, o gajo! No outro domingo lá estava o gajo a dormir, fronteiro aos túmulos de Vasco da Gama e Camões.

Não resistira ao Diable Assoupissant.

Nas missas do meio­-dia na Candelária, no Rio de Janeiro, as minhas preferidas, encontrava um casal devoto, também tentado pelo demônio soporífero. Gente rica e titulada pelo Papa. A senhora lia e o marido dormia, sereno. Nos minutos precisos, um toque de cotovelo despertava­-o, fazendo imediatamente ajoelhar­-se, contrito. Às vezes, avisado para retirar­-se, dobrava os joelhos na costumeira sequência. O Duque de Windsor, nas suas Memórias de um rei, evoca uns soberanos da antiga Alemanha, nutridos e pacatos, que passeavam de carro. O rei dormia e a rainha acordava­-o para que saudasse os súditos. Mesmo que não houvesse vênia a retribuir, alertado, o rei tirava, com os olhos fechados, seu chapéu saudador.

Não vamos falar nesse diabinho do sono. Nosso Senhor Jesus Cristo também adormeceu em hora imprópria, num barco, sacudido pela tempestade que lhe obedeceu.