11

Primeiro dia do ano

Dia de Ano é o primeiro de janeiro, dedicado à Fraternidade Humana e, na Igreja Católica, votivo à circuncisão de Jesus Cristo.

Cita­-se, vez por outra, como Dia de São Silvestre, que é realmente o 31 de dezembro, o último do ano. São Fulgêncio, Bispo de Ruspina, e Santa Eufrosina de Alexandria, solitária do Egito, são os santos do dia primeiro de janeiro.

É como a Noite de Natal, Noite de Festa, de comemoração doméstica, mas, aos poucos, nas cidades grandes, a vida social encarregou­-se de festejá­-la nas sedes das associações elegantes, com bebida à meia­-noite e mesmo o Hino Nacional, entre barulheiras e gritos que devem anunciar todos os benefícios, exceto a tranquilidade, porque esta não pode ser invocada aos berros e sopros de buzina atroadora. Os italianos já dizem que Natale coi tuoi, capo d’anno con chi vuoi!

Um elemento resiste, batido pela violência das culturas unitárias que vai tentando cobrir, lenta ou rapidamente, a paisagem típica das civilizações nacionais. Esse elemento é o cuidado, a precaução dos atos que não desejamos ver repetidos no resto do ano.

O que se fizer no primeiro de janeiro será a antevisão, a profecia, o programa, para os demais dias.

Naturalmente, a tradição nos veio com o português no século XVI. Ameríndios e negros africanos não tinham crença alguma relativa ao Ano­-Novo, e sim às festas dos ciclos agrários, cerimonial ligado à semeadura ou colheita dos frutos, ou propiciativas da caça e pesca.

Portugueses e espanhóis, mantendo o respeitoso costume, trouxeram­-no para as terras da América, guardando­-o e espalhando­-o pelo uso.

Quatro séculos e meio depois, ainda a tradição vive, mesmo nas cidades, mantida numa porcentagem mínima nos arranha­-céus, mas seguida e poderosa nas populações do interior de todas as províncias do Brasil.

Cuidado com o Dia do Ano­-Bom! Obstinar­-se­-á em dar­-vos a multiplicação dos atos praticados durante suas vinte e quatro horas oblacionais. Alegria no primeiro de janeiro? Um ano jubiloso. Se cóleras, doze meses em raiva flamejante. Tristeza? O restante será melancólico. Serenidade? Os dias passarão tranquilos e doces. Materialmente, o prognóstico é idêntico para as cousas fungíveis. Uma roupa nova, um calçado recém­-comprado, maior re­curso financeiro são, no primeiro de janeiro, anúncios talvez infalíveis da conservação ou multiplicação destas entidades no período anual.

Corre a tradição pela Europa, entre latinos e saxões. “If a new suit or dress has money in the pockets, they will not be empty throughout the year, registra Radford.

J. Leite de Vasconcelos e A. C. Pires de Lima informam semelhantemente em Portugal: “O que se fizer no Dia de Ano­-Bom faz­-se todo o ano. Assim, come­-se um bom jantar, estreia­-se um fato, dá­-se um passeio – para que o mesmo continue a acontecer pelo ano adiante. Trazendo­-se uma roupa nova no Dia de Ano­-Bom, continuará a trazer­-se pelo ano adiante. É por isso que se anda nesse dia com roupa nova. Nem é bom nesse dia dar dinheiro, porque se fica a desembolsar durante o ano”.

Como fica bem claro, não estou expondo o Dia de Ano­-Bom em suas comemorações, festas e permutas de presentes, mas unicamente num determinado aspecto, tentando indicar sua indiscutível origem.

Em 1958 testemunhei essa poderosa presença da tradição. A senhora de um amigo meu, diplomada pela Escola Normal, viajada, inteligente e viva, não despediu uma criada porque o dia era o primeiro de janeiro. Não desejava passar o resto do ano despedindo empregadas.

Outro amigo, pernambucano residindo em linda casa no Recife, retardou a terminação de excelente negócio para concluí­-lo no Dia de Ano­-Bom, “correndo o risco” de vê­-lo arrebatado por um concorrente mais atrevido e hábil.

Esses pequeninos fatos ocorrem por todo o território nacional. Cada ano a sua observância determina respeitos e atitudes dentro das regras inflexíveis da tradição.

De onde teria nascido o costume ainda fiel na obediência brasileira? Veio de Roma, decorrente de gesto religioso muito mais ligado ao direito consuetudinário que às exigências regulares do culto sagrado.

Ovídio, no Fastos, poema registrando o cerimonial religioso na Roma sob Augusto, referindo­-se a janeiro, ao primeiro dia, minudencia:

Ruim palavra sussurrar não ouse!

Convém ao dia bom palavras boas.

Sobre a trova de presentes, o deus Janus explica ao poeta:

Mal findou, repliquei – “Que significa1

Este presentearmo­-nos com tâmaras,

Encarquilhados figos, e cheiroso

Cândido mel em barrilinhos alvos?”

– “São presságios, são votos; – me responde

Quer­-se que desta sorte auspiciado

Corra sab’roso e doce o ano inteiro!”

Aí se inicia o mesmo respeito pela continuidade do que for começado no primeiro dia do ano. Assim os romanos ofereciam frutas doces, o mel, as coisas mimosas ao paladar. Esses presentes eram as strenae, determinando reciprocidade entre todas as classes sociais (Luís da Câmara Cascudo, “Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil”, Presente de Ano­-Bom. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1963).

1 Tradução de Antônio Feliciano de Castilho (1800­-1875).