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Bodes, Cabras e Cabritos

Chamamos cabra ao filho do mulato com a negra e não é simpático ao folclore sertanejo. Não há doce ruim nem cabra bom. O tratamento de “cabra” é insultuoso. Ninguém gosta de ouvir o nome. Reage quase sempre. Todas as estórias referentes aos “cabras” são pejorativas e são eles entes malfazejos, ingratos e traiçoeiros. Mas não é o cabra que evoco, mas a Cabra, capra, uma presença na cultura popular de qualquer país.

Debatem a origem europeia da cabra, vinda da Capra ibex do solutrense e madaleniano, ou da Capra egagrus, também dita C. primigenius, parecendo ter vencido a contenda essa última.

Viera da Armênia, Pérsia, sul do Cáucaso, passando ao Mediterrâneo, Sicília, Itália Peninsular, Espanha. Ainda a Capra ibex defendia sua liberdade nos Alpes e montanhas possíveis e já a C. primigenius suportava convívio e exploração humana. Ibex e egagrus aparecem nas palafitas suíças, cavernas francesas (Roque, Hérault, Baoussé­-Roussés), e na Itália neolítica, Vibrata, nos Abruzzos. O europeu levou­-a para a América. Dessa fonte nascem as estórias caprinas, com as convergências inevitáveis, na técnica de quem conta um conto, aumenta um ponto.

A cabra e seu esposo, o bode, mereceram ambiente religioso e ainda se fala no Bode de Mendes, força do ímpeto fecundador, também sabedor de segredos comprometedores ao casal como aliado às potências infernais e íntimo das bruxas e mesmo encarnando o demônio. O Bode Preto era a forma clássica do Diabo nas festas dos sabats. O Bode Sujo é sinônimo português ainda vivo no Brasil.

O arqueólogo Woolley encontrou em Ur, na Caldeia, 3.500 a.C., estatuetas de cabras, erguidas nas patas, deliciosamente esculpidas em madeira, incrustadas de ouro e lápis­-lazúli. Uma visão rápida no Ur excavation (Royal Cemetery, Oxford, 1934) dará imagem da perfeição conseguida e abre espaço às disputas, se a cabra era ornamento ou objeto votivo. Creio pouco na intenção puramente decorativa há cinquenta e cinco séculos. Tudo teria indicação mágica, religiosa, propiciatória.

Desta participação religiosa a cabra nunca se libertou inteiramente. Não se aproximou de santo algum e não há lenda ou estória em que figure como elemento favorável. Familiar, doméstica, da intimidade sertaneja, não inspira confiança integral ao povo. Em lenda alguma da literatura oral cristã comparece a cabra num plano de boa educação ou afeto. Na etiologia de sua voz, há uma condenação popular que tivemos de Portugal. “Cristo nasceu!” – cantou o galo. “Onde?”– muge o boi. “Em Belém!” – baliu a ovelha. “Mentes, mentes” – resmungou a cabra, guardando até hoje a negativa gaguejada e pagã.

Pela rusticidade da alimentação, devia aclimatar­-se rapidamen­te no século XVI e a carne, comumente assada, ainda figura nos cardápios populares. O cabrito é de tradicional louvor. Sem quase nenhuma atenção ao seu sustento e embora elevado ao título de miunça, tendo direito ao curral privativo, o inevitável chiqueiro das cabras junto à casa vaqueira do Nordeste, não dá praticamente cuidado no plano da criação.

Foi o leite de cabra a grande alimentação da criança no Brasil Velho e não o das vacas. Mais grosso, substancial, robustecedor. Em 1810, Henry Koster, indo do Recife a Fortaleza por terra, viajando a cavalo pelo interior, pôde garantir que a maioria das crianças sertanejas era alimentada pelo leite de cabra. “Children are frequently suckled by goats”. Diga­-se, de passagem, que o leite de vaca nunca foi popular no sertão. Ninguém o bebia. O leite coalhado e o queijo, sim, eram decisivos. Nunca o leite puro e sim acompanhando, como sopa, batatas, jerimum, farinha, adoçado com rapadura. O leite de cabra tinha o primeiro lugar. Era uma herança milenar, porque a cabra fora o animal leiteiro por excelência, cantado em Hesíodo, Virgílio, Teócrito, e não as vacas.

Tão grato estava o sertanejo que dera às cabras o título de comadre, galardão de supremo bem querer. “The goat that has been so employed always obtains the name of COMADRE, the term which is made use of between the mother and godmother of a child” – escreve Koster. Para que um velho vaqueiro de 1810 desse a um animal o nome de comadre, era preciso uma capitali­zação de sentimentos afetuosos e gratos. Nenhum outro gabar­-se­-ia dessa vitória. Somente a Cabra, entre todos os animais de trato útil, era Comadre. Goza da fama de dispensar água. Ou procurar beber muito parcimoniosamente. O mais difícil no sertão é o jumento morrer de fome e a cabra morrer de sede. O primeiro come tudo. A segunda quase não bebe.

O Dr. Nogueira Paranaguá (Do Rio de Janeiro ao Piauí pelo interior do País, Rio de Janeiro, 1905) escreveu sobre a cabra: “É, não só importante como fonte de renda, como útil, pela resistência de que é dotado este animal, que pode passar muitos meses sem beber água, apresentando­-se sempre nédio, além de fornecer abundante leite!”.

Permite prognósticos sobre chuvas quando escaramuçam, enfrentando­-se, chifre contra chifre, fingindo duelar, ou alinham­-se, antes do escurecer, nas proximidades do beiral da casa, como procurando abrigo.

Dizem que toda a cabra ou bode fica invisível uma hora por dia e esta é a duração de uma rápida visita ao amigo Satanás no Inferno. Contam mesma façanha na Inglaterra. O perigo do leite de cabra é transmitir ao lactente o caráter inquieto, buliçoso, arrebatado, da amamentadora. O menino demasiado vivo, arteiro, endiabrado, tem a justificativa no leite de cabra.

Fico pensando que a intranquilidade sexual do Zeus Olímpico talvez tivesse explicação no leite da cabra Amalteia, em que ele mamou.

A tradição de o corno de Amalteia ser o símbolo da abun­dância inesgotável não mereceu persistência entre os povos ibero­-americanos. Os chifres caprinos não têm o mesmo prestígio da cornamenta taurina. Apenas o pequenino e curto chevelho do cabrito alivia a dor de cabeça, a de pontada. Seria mais indicado o dos carneiros, porque brigam às cabeçadas heroicas. Deixou o cabritar, cabriolar. A “barba de bode”. O inglês diz goatee ao cavanhaque. Em alemão, Meckerer é o rabugento, resmungão, berrador, de meckern, o berrar das cabras.

O bode eternamente enamorado, mais em potencial que suficientemente, permite uma outra anedota e mesmo com certa colaboração medicamentosa, sempre no terreno sexual. Comentava­-se, na então Vila de Augusto Severo (RN), em 1910, de um grande fazendeiro que tomara chá de barba de bode, utilizando não a planta (gramíneas) mas o cavanhaque de um bode patriarcal. Fora contraproducente o resultado. Ficou com diarreia.

É um dos animais, o mais típico, para os processos feiticeiros da transferência simbólica de moléstias venéreas.

Qualquer velha bruxa de outrora, sabedora de orações e remédios fortes, informava do poder do Bode, sinônimo diabólico, temido e respeitado na ambivalência natural. Desde o hipotético Bafomet dos Templários aos bodes bufantes do sertão, a memória popular relembra episódios e alude aos mistérios insolúveis, porque, como afirmava Luís Gama:

Cesse, pois, a matinada

Porque tudo é bodarrada!