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Desejo de mulher grávida

Um episódio policial de 1900 teve, na cidade de Natal, a mais lisonjeira repercussão. O chefe de Polícia, Dr. Francisco Carlos Pinheiro da Câmara, mais conhecido por Chico Farofa, ouviu de um ladrão de galinhas a explicação de que o furto fora cometido pela necessidade de atender ao desejo de sua mulher grávida. Mandou­-o pôr em liberdade, pagando o preço das galináceas, a fim de não prejudicar a gestante. Semelhante registro ocorreu em Villanazar, em Zamora, na Espanha, segundo informação do sábio Prof. A. Castillo de Lucas (Folkmedicina, Madri, 1958), absolutamente idêntico ao que sucedera na capital potiguar:

¡La vida de la prenada,

Es vida privilegiada!

Certo é que o desejo, imprevisto, estranho, inexplicável, da mulher que está esperando, assume proporções de um dever social para a sua satisfação. Há quase vinte séculos, Dioscórides aconselhava terapêutica e indicava regime dietético. Estava convencido de sua importância para a vida fetal. Por toda a Península Ibérica, Itália, América Latina, França, é uma tradição merecedora do mais profundo respeito popular.

Chamam, não desejos, como no Brasil e em Portugal, mas antojos, que para nós é a fase dos enjoos, náuseas incoercíveis, alergias, hipersensibilidade, emoção fácil e comovedora, fisiologicamente. Envie, na França. Mas em Portugal do Padre Manuel Bernardes dizia­-se antojo na acepção de desejo: “Como em algumas mulheres pejadas, que lhes pede o seu antôjo comer cal, e carvão, e outras piores cousas”. Antes, porém, na era de Sá de Miranda, antojo era apreensão, esquisitice, preocupação:

Come de toda a vianda,

Não andes n’esses ANTOJOS.

Mas, desejos, na mesma significação contemporânea, corria no Romanceiro. No romance Dona Aldonça há uma prova, insofismavelmente anterior ao princípio do século XVI, quando a maioria dos romances foi refeita e acomodada a outros ritmos e mesmo, alguns casos, vocabulário, vindos da centúria anterior.

Ai! dizei­-me, ó Valdivinos,

Que levas na aba da capa?

– Amêndoas verdes, meu tio.

DESEJO de uma pejada.

Se o “desejo” não for satisfeito o filho nascerá com a boca aberta ou com o objeto desejado numa representação cutânea. Identicamente, na Espanha: “Si una mujer embarazada siente un deseo vehemente de algo y no lo satisface, nacerá el hijo con alguna mancha, lunar o señal en la piel que recordará el objeto deseado”, informa o Sr. A. Sánchez Perez (Supersticiones espa­ñolas, Madri, 1948). O mesmo na França, ensina o Dr. Guille­monat: “On croit vulgairement que, si cette envie n’est point satisfaite, l’enfant portera sur la peau, sous forme de tache, de tumeur, l’empreinte ineffaçable de l’objet convoité par la mère”.

No Brasil, quem se nega a cumprir o desejo terá um terçol, hordéolo, como índice do castigo. No Dicionário do folclore brasileiro, recolhi alguma notícia e bibliografia sobre o assunto.

N. M. Penzer, anotando o The ocean of story (I, apendix­-III­, Londres, 1924), na parte sobre The dohada or craving of the pregnant woman: a motif of Hindu fiction, evidencia a presença poderosa da dohada, o desejo, nas Índias e suas formas múltiplas de uso e crendice. Inclusive vários vegetais têm dohadas: “The vegetable kingdom also has its dohadas”. Uma repercussão deste desejo vegetal possuímos no Brasil. Certas árvores de fruto dependem de ser ou não tocadas ou tratadas por mulheres. Outras o plantio é privativo de um sexo, como o amendoim, que, já em 1587, Gabriel Soares de Sousa informava que plantio e colheita eram tarefas unicamente femininas. Outras es­pécies, como o mamão ou a bananeira, só o homem deve plantar e colher. Algumas devem ser abraçadas por homem para que frutifiquem. Da Espanha do Rei Carlos II (1661­-1700), há documento expressivo que Paul de Saint­-Victor divulgou. Reagindo contra as demasias protocolares de sua camareira­-mor, a Duquesa de Terra Nova, a Rainha Marie­-Louise d’Orléans deu­-lhe duas bofetadas. A fidalga, neta de Fernando Córtez, foi queixar­-se ao rei, acompanhada por quatrocentas damas de sua onipotente família. Carlos II ouviu a rainha, que se limitou a dizer: “¡Señor, esto es un antojo!”. Radiante, o rei autorizou­-a a dar na camareira­-mor quantas bofetadas quisesse. E, explicou à Duquesa de Terra Nova: “¡Cailla os, estas bofetadas son hijos del antojo!”. Restava à duquesa compreender e calar­-se, como sucedeu. E Saint­-Victor conclui: “Or, lesenviesde la grossesse avaient force de loi en Espagne. Lorsqu’une femme enceinte, fut­-ce une paysanne, désirait voir le Roi, il se mettait au balcon pour la satisfaire”.

A irresistível vontade da mulher grávida, determinando uma obrigatoriedade de satisfação, denuncia que o “desejo”, malacia, dijejo, dejejo, pica (sinonímia do Prof. Dr. Fernando São Paulo), é um índice da mulher valorizada e prestigiosa, como por­tadora da vida. Ocorreria em estágios ou fases da sociedade em plano superior de compreensão, respeito, veneração. Apesar da defesa clara e hábil de Koch­-Grunberg, recusando­-se ver na mu­lher indígena o animal de trabalho, inferior e resignado a uma missão permanente de produção e silêncio, o desejo não ocorre entre as ameríndias. São elas mulheres idênticas às demais do mundo, mas devia haver uma limitação decorrente do costume, da força religiosa na cotidianidade do uso tribal.

Creio que a inexistência no desejo entre as mulheres indíge­nas é devido à tradição da couvade, submetendo mulheres e ho­mens a um regime alimentar com delimitações intransferíveis. O desejo encontraria na couvade a impossibilidade da satisfação. Só podia e devia comer certos e determinados alimentos e não seria possível, e menos crível, a ocorrência do desejo violador do tabu, ligado à própria sobrevivência do filho, constituição orgâ­nica e destino no seio da tribo e do mundo indígena. Onde exis­tisse a couvade a mulher desejaria o lícito, o permitido, dentro das regras e jamais a variedade estonteante que se verifica nos documentários formais. A couvade não se restringe aos alimentos, mas também proíbe certos gestos, esforços, trajes, ocupações, fron­teiras asfixiantes para a vastidão do desejo, como Somadeva recolheu na Índia, há setecentos anos, e vive ainda pelo Brasil, diário e comum.