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Puxar a orelha

Nas tradições populares a orelha possui vasto documentário. Aos ladrões cortavam as orelhas (Ordenações afonsinas, livro I, título 60, § 11) e ficou no uso velho e vulgar em Portugal e Espanha, alastrando­-se pelas Américas. Decepar a orelha ao inimigo vencido era o supremo troféu. A Fé e a Ciência, ou seja, o Conhecimento, entravam pela audição. Era o pavilhão auricular dedicado a Mnemosine, a deusa da Memória. Daí o uso de puxar a orelha aos estudantes para que decorassem ou não esquecessem o que aprendiam. Processo de mnemotécnica. Qualquer história antiga e minuciosa registra esse furor de cortar orelhas. Os por­tugueses fizeram maravilhas no Oriente, empilhando as orelhas derrotadas. Começou por Vasco da Gama, cortando 800. Afonso de Albuquerque perdeu o número. No Brasil tornou­-se uso e costume. Bartolomeu Dias, esmagando um quilombo de escravos fugidos, deixou­-os a todos sem orelhas. Nada menos de 7.800 que ofereceu ao Conde de Bobadela, capitão­-general. No Dicionário do folclore brasileiro a informação é maior, incluindo o costume romano de levar as testemunhas pela orelha ao tribunal, para que prestassem depoimento.

Puxar a orelha era uma invocação à deusa da Memória, atendida pela conservação imediata do que se procurava reter mentalmente. Maneira especial de pedir a intervenção sobrenatural de Mnemosine.

O castigo de cortar as orelhas, antiquíssimo e comum, era punição por não haver ouvido, entendido, compreendido, atendido à voz da lei.

João Brígido (Ceará: homens e fatos, Rio de Janeiro, 1919), informando sobre a data de 3 de março de 1741, escreve: “Um alvará dessa data ordena que os escravos, que se encontrassem em quilombos, estando neles voluntariamente, fossem assinalados com um F, e na resistência tivessem uma orelha cortada. Esta pena se podia aplicar por simples mandado do ouvidor, do juiz de fora ou do juiz ordinário”.