39

Três cigarros no mesmo fósforo

Em 1919 estudei Medicina no Rio de Janeiro. Aulas práticas no pardieiro da Praia de Santa Luzia e as teóricas no palácio da Praia Vermelha, recém­-inaugurado. Sem nenhuma influência dos professores, alguns magníficos, e pela simples ação catalítica da Anatomia e da Fisiologia, Benjamim Batista e Oscar de Sousa, ficamos livre­-pensadores, ateus, hereges, dispensando Deus do jogo mecânico do Universo e explicando, com ignorante empáfia, os segredos humanos e cósmicos. Como nunca dispensei o Sobre­natural, uma admiração fervorosa desse tempo era dedicada ao Barão Ergonte, o poeta Múcio Scévola Lopes Teixeira, professor de Ocultismo (1857­-1928), encantador e variado na conversa fas­cinante e recordadora.

Cultivávamos a incredulidade como fundamento da liberdade “científica”, mas éramos todos profissionalmente supersticiosos. Cada um de nós possuía seus mistérios, prudências, evitações ca­balísticas.

A crendice mais geral e comum era não acender três cigarros no mesmo pau de fósforo. O terceiro cigarro era aceso tocando­-se no segundo, já fumegante. Diretamente ao fósforo, dois. Somente dois, no máximo. Tal era a lei. Acender o terceiro cigarro era estabelecer a tríade, o triângulo fatal, partindo da mesma unidade ígnea, o fósforo aceso. O terceiro cigarro funcionaria como o vér­tice do triângulo, o cimo tenebroso, apontando para o escuro do Incognoscível indecifrável. Era o mesmo fundamento de não passar­-se por debaixo de uma escada, um respeito de toda a Euro­pa e que o Embaixador Joaquim Nabuco cumpria, fielmente. Como o triângulo é base de valores mágicos, sua representação, quando não provocada intencionalmente, é uma advertência ou prenúncio alarmante.

Três cigarros no mesmo fósforo desenham o triângulo lu­minoso.

E, naquele 1919, havia o fósforo de cera que foi retirado do mercado pela superstição de dar azar, sugerindo a vela fune­rária, o cheiro do ataúde. Com esse, os três cigarros valiam uma provocação aos deuses obscuros que o Destino comandava.

O número três, de tão extensa literatura ocultista e religiosa, determina que se evite seu implemento em coisas vivas ou de imediata utilização.

As velhas cozinheiras não matavam três galinhas com a mesma faca.