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Atirei um limão verde...

Há no Brasil um cento de quadrinhas iniciadas pelo verso: Atirei um limão verde, ou doce, cheiroso, d’água, e também flores, lencinhos, e até azeitona, sempre relativos ao gesto de pro­jeção e finalidade amorosa de ser notada a predileção ou convite.

Atirei um limão cheiroso

Na janela do meu bem,

Deu na clara e na morena,

Deu na mulata também.

Atirei um limão verde

Lá da torre de Belém;

Deu no cravo, deu na rosa,

Deu no peito de meu bem.

São versos das coleções de Sílvio Romero e Pereira da Costa. A “torre de Belém” é uma presença de Lisboa.

Durante o movimento político da Maioridade, 1840, cantava­-se:

Atirei um limão n’água,

De maduro foi ao fundo,

Os peixes todos gritaram:

– Viva Dom Pedro Segundo!

Há também em Portugal e Espanha, fontes do nosso Cancioneiro e Romanceiro, versos que assim principiam:

Daquela janela alta

Te atiraram um limão.

De tu ventana à la mía

Me tiraste un limón

Exemplos em Teófilo Braga e Rodríguez Marín. Colhido por Pitré há esse modelo da Itália:

M’e stato dato un pomo lavorato,

Ed io per pegno gli ho dato il mio core.

Latinos e gregos conheciam o costume talqualmente aparece na lírica popular brasileira. De Virgílio, Egloga III:

Malo me Galatea petit, lasciva puella,

Et fugit ad salices et se cupit ante videri.

Que intenção teria a jovem Galateia atirando um pero ao pastor Damestas e fugindo para os salgueiros, já denunciada pela oferta? Era uma declaração de amor. Ovídio (Heroicas, epístolas XX­-XXI) narra o episódio de Aconce e Cidipe no templo de Diana em Delos. O grego denuncia a paixão a Cidipe, jogando­-lhe uma maçã:

Verba licet repetas quae demtus ad arbore foetus

Pertulit ad castas, me jaciente, manus.

Na Anthologie greque (I, 24), Platão repete o rito: “Jogo­-te esta maçã: Se estás disposta a amar­-me, aceita­-a!”.

Luciano de Samosata (Diálogos das cortesãs, XII) faz a jovem Joesse queixar­-se das infidelidades de Lísias com Piralis: “Mordeste uma maçã e aproveitando o momento em que Dífilo conversava com Trason, atiraste­-a habilmente ao seu seio, sem mesmo a ocultar de mim. Piralis logo a beijou, escondendo­-a no colo, sob as rendas”.

Trezentos anos antes de Cristo, Teócrito (Idílios, V) regis­trava a tradição comum na terra helênica: “Clearista joga as maçãs ao pastor que conduz as cabras e lhe murmura doces palavras”, informa o pastor Comatas. Pela literatura oral o gesto de jogar um fruto ou flor vale afirmação e escolha amorosa. Não somente no Mil noites e uma noites como nos resumos e indica­ções bibliográficas de Victor Chauvin (Bibliographie des ouvrages arabes, VI, Liège, 1902) como em Paul Sébillot (Le folklore, Paris, 1913) os registros são vários.

René Basset, citando o conto árabe de Es Soyout, “A escolha de um marido”, do livro Anis et Djalis, alude ao costume oriental, fonte remota da inspiração brasileira: “Conta­-se que havia uma cidade onde existia a tradição de que, estando a filha do rei em estado de casar­-se, um arauto convocava a reunião dos habitantes para uma praça a fim de proceder­-se à escolha. Reunidos os homens, o rei e sua esposa entregavam à filha um limão de ouro para que ela atirasse no escolhido” (Mille et un contes,récits & légendes arabes, II, Paris, 1926). Martino Mário Moreno recolheu entre os Galas da Etiopia uma estória com esse elemento, II Principe Straccione: “Le figlie di quel Re eran tre. Con­segnato alle tre un limone ciascuna, dicendo: – Gettatelo all’uomo che amate!” (Favole et Rime Galla, XLIII, Roma, 1935).

P. Saintyves demonstrou que o arremesso é um rito de fe­cundação: “La valeur du jet magique comme rite de fécondité (Revue anthropologique, XXXIX, Paris, 1929), e Henri Gaidoz estudou La réquisition d’amour et le symbolisme de la pomme, resumo e comentário de J. Leite de Vasconcelos (Opúsculos, VII, Lisboa, 1938), com informações sobre os Arremessos simbólicos e na poesia popular portuguesa, Gaidoz, Saintyves, Vasconcelos di­zem da quase universalidade da imagem, denunciando o perdido costume, desde a Grécia Clássica até o Taiti, a joia dos mares do Sul.

Tradição famosa na Turquia, onde o sultão, na Noite da Força na semana do Ramadã, escolhia a nova favorita entre as mulheres do harém, atirando­-lhe o lenço imperial.

Pereira da Costa registrou no Recife esta quadrinha:

Atirei o meu lencinho

Por detrás de uma janela;

Que tem seu amor bonito,

Não dorme, faz sentinela.

Tanto gregos e romanos quanto árabes podiam ter levado a figura para Península Ibérica. Apenas a maçã europeia substituiu uma fruta oriental, laranja, limão. Em Portugal e Espanha as quadrinhas, quando mencionam as frutas, preferem os limões trazidos pelos árabes. Assim o Brasil verseja. Henry Lang (Das Liederbuch des Koning Denis Von Portugal, Halle, 1894) cita o anexim português: – Quem dá o limão, dá o coração! E Lang transcreve o verso popular:

Tomai lá este limão,

Não digais quem vo­-lo deu.

Guardai­-o bem guardadinho,

Que atrás do limão vou eu.

E, de minha parte, junto mais este, de Vila Real em Trás­­-os­-Montes:

Deitei o limão correndo,

À tua porta parou;

O bem que te queria e quero

O limão o demonstrou.

Havia um casamento realizado precisamente pela escolha, elegendo­-se pela entrega ou arremesso de um fruto, flor, lenço, folha. Era na Índia e denominava­-se Svayamvara. Há registro amplo no Katha Sarit Sagara, de Samodeva, The ocean of story, que C. H. Tawney traduziu para o inglês e N. M. Penzer anotou (vv. I, 88, II, 16, III, 26, 181, IV, 238­-40, V, 197, Londres, 1924­­-1925). Atirar o limão era uma das fórmulas do Svayamvara hindu.

Naturalmente essa fórmula matrimonial não se aclimatou na Europa e sim o gesto denúncia de amor.

Depois dessas notícias, compreende­-se a intenção tradicional, mesmo evaporado o conteúdo ritualístico, do costume que vive, expressivo e cheio de ternura num motivo poético, coisas que o povo diz, como esta quadrinha que ouvi na cidade do Natal:

Atirei um limão verde

No fundo duma bacia;

Deu no cravo e deu na rosa

Deu naquela que eu queria!...